domingo, 30 de agosto de 2015

Originais de Robert Batty

Para o Museu da Cidade [de Lisboa] ofereceu Fernando Rau, coleccionador de arte, em especial de gravuras, de que era conhecedor profundo, pouco antes de morrer, uma valiosa colecçõo de nove pequenas aguarelas, a sépia, originais do tenente-coronel do exército inglês, Robert Batty (1789 - 1849), que estivera na Península, integrado no exército de Wellington, durante a Guerra Peninsular.

Robert Batty (pai) por W. Daniell (detalhe), 1810,
segundo G. Dance, 1799.
Imagem: Wellcome Library

Estes originais, que se vieram juntar a outros que aquele museu já possuia, fazem parte dos estudos daquele militar-artista, quando da sua estadia em Lisboa e que mais tarde foram reproduzidos em gravura no álbum "Select Views of some of the principal cities of Europe", publicado em Londres, em 1832.

Lisbon from Almada, Drawn by Lt. Col. Batty, Engraved by William Miller, 1830.
Imagem: Wikimedia

Entre os originais agora oferecidos figuram os estudos das gravuras reprodudas naquele álbum, sob os titulos Praça do Pelourinho; Lisboa vista de Almada; e Lisboa vista da capela de N.a Senhora do Monte.

Lisbon from the chapel hill of Nossa Senhora do Monte, Drawn by Lt. Col. Batty, 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Os restantes, que representam o Convento de N.a Senhora da Graça (três versões), a Torre do Bugio e uma paisagem ribeirinha não identificada, não foram reproduzidas naquele álbum.

Agumas gravuras de Robert Batty doadas por Fernando Rau.
Imagem: Hemeroteca Digital

Todos os aguarelas, cujas dimensões variam entre 0,028x0,037 e 0,072x0,123, estão assinadas. (1)


(1) Lisboa, Revista Municipal, II série, n.° 1, 1979

Mais informação:
Dictionary of painters and engravers, biographical and critical...
Robert Batty


Artigo relacionado:
Almada bélica e bucólica no século XIX

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

História alternativa

Plano de Urbanização de Almada Nascente — Cidade da Água já se encontra concluído e aprovado pela Assembleia Municipal. O próximo passo é o da sua publicação em Diário da República, altura em que passará a ter força legal.

Barracas junto aos armazénss do Caramujo, 2009.
Imagem: Vítor Cid Fotografia no Facebook

Recorde-se que a elaboração do plano decorreu do encerramento da Lisnave, em 2000. Durante as várias fases, foram diversos os momentos de participação da população para a construção do futuro desta área do concelho.

Corte do canal.
Imagem: Almada Nascente, PUAN, Guia de Desenho Urbano

O Plano de Urbanização constitui o documento de gestão do território necessário para que se possa avançar para os projectos e, posteriormente, para as obras. Espera-se que nos próximos três a quatro anos se verifiquem já obras no terreno.

Praça do Tejo.
Imagem: Almada Nascente, PUAN, Guia de Desenho Urbano

Assim que estiverem criadas e a funcionar as sociedades gestoras locais previstas no projecto do Arco Ribeirinho Sul, existem condições para se iniciar a operacionalização do plano.

Uma cidade da água

Fazendo parte de uma estratégia do Município de planeamento inovador, adaptado às novas necessidades e gerador de maior qualidade de vida, a Visão desta "nova cidade" assenta em cinco variantes principais:

— Um lugar para trabalhar, através das condições para a instalação de actividades diversas, comércio, serviços e equipamentos de apoio à comunidade local.

Corte entre o Complexo Multiusos e a Praça do Tejo.
Imagem: Almada Nascente, PUAN, Guia de Desenho Urbano

— Um lugar de relação com a água, potenciando a proximidade com o rio. Um terminal de cruzeiros, uma marina, um museu do Estuário do Tejo e um museu nacional da Indústria Naval são alguns exemplos.

Corte da Praça Lisnave e do Museu da Indústria Naval.
Imagem: Almada Nascente, PUAN, Guia de Desenho Urbano

— Um lugar para habitar, valorizando a arquitectura bioclimática, a diversidade da oferta residencial e o desenvolvimento de espaços exteriores.

The Long Tomorrow, argumento Dan O'Bannon, desenho Moebius, Metal Hurlant, 1976.
Imagem: mindless ones

— Um lugar de cultura, tirando partido das condições naturais e apostando nos festivais, eventos e exposições, na arte pública e nos museus.

Vista da Praça da Cova da Piedade e dos silos.
Imagem: Almada Nascente, PUAN, Guia de Desenho Urbano

— Um lugar de conhecimento, com a instalação de um pólo universitário, desenvolvimento do Parque Tecnológico da Mutela e a criação de um centro de Ciência e Tecnologia, entre outras infra-estruturas.

Defender o ambiente

Almada Nascente - Cidade da Água é sinónimo de inovação e sustentabilidade. O Plano de Urbanização estipula uma série de medidas que vão traduzir-se num maior respeito pelo ambiente, diminuindo a "pegada ecológica" desta nova cidade. Desde a forma como serão concebidos os edifícios até ao tipo de iluminação pública, nada será deixado ao acaso. (1)

Cova da Piedade, ETAR da Mutela.
Imagem: INFINITO'S

O "Estudo de Caracterização Ambiental, Geológica e Geotécnica (ECAGG) e Plano de Urbanização (PU) da Frente Ribeirinha Nascente da Cidade de Almada" foi adjudicado pela Câmara Municipal de Almada ao Consórcio formado pela Atkins, Richard Rogers Partnership e Santa-Rita Arquitectos.


Assumindo a abordagem integrada e articulada de componentes de carácter ambiental e urbanística, este estudo incide sobre uma área de 115 ha que se estende entre Cacilhas, a norte, e Cova da Piedade, a sul, abrangendo o antigo estaleiro naval da Margueira.

Uma abordagem e análise integrada das condições existentes na cidade de Almada
poderão dar indicações para estabelecer novas metas para Almada Nascente.
Imagem: Almada Nascente, PUAN, Visao Estrategica Frente Ribeirinha Nascente

O documento que agora se apresenta corresponde ao primeiro resultado desta integração propondo-se desenvolver uma Visão Estratégica para a Frente Ribeirinha Nascente da Cidade de Almada [...] (2)

Vision of San Francisco, Alexander Weygers, 1950.
Imagem: WebUrbanist


(1) Boletim Municipal, Camara Municipal de Almada, outubro 2009
(2) Almada Nascente - Documentos

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Anatomia comparada

Detendo-me aqui e ali, mais uma vez, atravesso para a outra margem.


Perdendo-me nas silhuetas esbatidas dos pequenos barcos, desço da Afurada à Granja, por praias que me são queridas tanto como as de Caparica.

Costa da Caparica, Romper do Sol, Adriano de Sousa Lopes (1879 - 1944).
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

E podia ir mais longe, Costa Nova, Mira, Vieira, Nazaré, como o Raul Brandão, mas não quero.

Barco de Mar, companha de S. José, praia de Mira.
Imagem: ahcravo's Blog

Assim, junto ao mar, pelo Canidelo, Madalena, Valadares, na Aguda... a mística destes barcos, que como obstinado resolvo desmontar, recupera as velhas bateiras no horizonte dos já finados caparicanos.

Costa da Caparica, Adriano de Sousa Lopes (1879 - 1944).
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

E sem melhor recurso, socorro-me da descrição do holandês que um dia, muito antes de mim, aportou aos areais da costa vareira, fazendo-se adoptar pelas gentes e pelos barcos:
As bateiras, em geral, tinham o formato de meia-lua, em que os bicos da prôa, da ré e o arqueado do fundo se acentuavam progressivamente do norte para o sul do país.

Praia da Aguda, João Marques de Oliveira (1853 - 1927), 1924.
Imagem: do Porto e não só

A bateira da praia da Aguda era um barco do tipo misto entre a bateira da Afurada e o da bateira do mar da arte da xávega da costa de Aveiro. O fundo era chato, sem quilha, podendo navegar a remos ou à vela. 

Media em média 8 metros de comprimento, 2,2 metros de boca e 0,8 metros de altura de pontal (a meio da embarcação). Era um barco alongado feito em pinho, cuja prôa se erguia até ao bico numa curva bem lançada.

O céu da prôa tinha um espaço coberto onde era guardada a vela, a roupa e a comida. O cabo do ferro ou fateixa (âncora) era amarrado em cima a dois golfiões.


in Weber, Mike, Jesus, Paulo, Santos, Assunção, Cem Anos na Praia da Aguda 1888 – 1988, Porto, Afrontamento, 2002

Costa da Caparica Meia Lua, Revista Ulisse.
Imagem: Caxinas... de "Lugar" a Freguesia

Distraídamente vou dissecando um e outro barco:  a arte da xávega que o da Aguda não conhece, porque as rochas da praia não querem; o leme de xarolo, trocado pela espadilha, a vela perdidos pelo de Caparica, quando deixou de transportar aos mercados... sem vela, o Meia Lua não arrola nas águas, bate-as à força de braços, a mesma força que puxa a rede a terra, a mesma que o vara no areal.

Costa da Caparica, Ilustracao Portuguesa, 1920.
Imagem: Hemerotreca Digital

E quando as silhuetas partem sou normalmente desagradável e mal-educado, quero lá saber.

Costa da Caparica, Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

E a coleccionar pôres do sol e molhando os pés nessas águas, a norte, me perco como um mouro, um "combertido", onde ninguém me liga.


Referências:
Weber, Mike, Jesus, Paulo, Santos, Assunção, Cem Anos na Praia da Aguda 1888 – 1988, Porto, Afrontamento, 2002
Caxinas... de "Lugar" a Freguesia
Sobre algumas embarcações que navegam na ria de Aveiro, e não só...


Artigos relacionados:
Ílhavos
Os saveiros meia lua da Costa da Caparica

Arte xávega descrita por Romeu Correia

Tema:
Saveiro meia lua

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O céu da minha rua

Qual foi a pior peça que escreveu?

— Escrevi "O céu da minha Rua" em oito dias. É a pior peça que eu tenho mas a Amália Rodrigues representou-a na televisão em 1958. (1)

O Céu da Minha Rua, fotografia de cena, Amália Rodrigues e Varela Silva, 1958.
Imagem: RTP Arquivo

Numa noite de Verão, creio que em 1959, numa esplanada da Avenida descreveu-me a Amália gravando "O Céu da Minha Rua", tema musical da série que a RTP produziu a partir do seu romance homónimo. 

O Céu da Minha Rua, fotografia de cena, Elvira Velez e Amália Rodrigues, 1958.
Imagem: RTP Arquivo

Não saiu bem durante uma série de tentativas e quando o realizador queria desistir, às quatro ou cinco da manhã, Amália fez uma última tentativa, rasgando as meias com as unhas enquanto cantava.


E saiu bem. "Uma mulher muito inteligente e cheia de raça", concluiu. (2)


(1) Anais de Almada, Revista Cultural, Nº 1, 1998
(2) Romeu Correia — um escritor que não devemos esquecer

sábado, 22 de agosto de 2015

Nossa Senhora do Castelo

Devido a sucessivas obras, este edifício, construído em 1795 para conter a Câmara, o tribunal, as finanças e a cadeia, encontra-se de tal modo alterado, que é possível encontrar portas e janelas entaipadas, salas pequenas sem entradas (normais) e outras aberturas de difícil interpretação.

Almada, edifício dos Paços do Concelho, Leslie Howard, década de 1930.
Imagem: Museu da Cidade de Almada

Se a tudo isto se juntar a hipótese, provável, de que aqui se situou a igreja de Nossa Senhora da Assunção (desaparecida aquando do terramoto de 1755) e que dela foram aproveitados alguns restos de paredes ou fundações, teremos um panorama quase caótico, onde se torna de extrema dificuldade a interpretação das estruturas que foram aparecendo, no decorrer dos trabalhos arqueológicos. (1)

Praça Camões, Tribunal e Paços do Concelho — Almada, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

A mais antiga notícia que conhecemos relativa à Igreja de Santa Maria do Castelo, em Almada, consta de um documento da chancelaria de D. Afonso V, datado de 1443, onde se encarrega Lopo Afonso, escrivão da puridade, de administrar uma capela de João Gonçalves, alcaide de Almada, e de sua mulher, Isabel Gonçalves, capela essa situada na Igreja de Santa Maria [...]

Almada. Rua Direita e Egreja de S. Paulo Câmara Municipal, ed. Martins/Martins & Silva, 31, c. 1900
Imagem: Fundação Portimagem

Desconhece-se a data de fundação da Igreja de Santa Maria, devendo admitir-se que é de fundação posterior à de Sant'Iago [Santiago]. Para esta é geralmente aceite que remonta aos primeiros anos da reconquista cristã e, por isso, recebeu por orago o patrono da ordem dos Espatários, que foi donatária de Almada por iniciativa de D. Sancho I.

A notícia mais completa da Igreja de Santa Maria deve-se a Frei Agostinho de Santa Maria que, no seu "Santuário Mariano" editado em 1707, diz entre outras coisas que ela era sede da freguesia de Nossa Senhora da Assunção, orago da Igreja chamada de santa Maria do Castelo. Diz ainda:
"A matriz da vila de Almada é dedicada à rainha dos anjos. Maria santíssima, como são quase todas as deste reino, debaixo do título do castelo não só por que se festeja no dia de sua gloriosa assumção em que se canta o evangelho: 'intravit Iesus in quoddam castellum' mas porque foi achada em os muros do castelo, a invocação também com esse título".

Mas Frei Agostinho dá-nos melhor razão para a igreja se chamar "do castelo", sem que estivesse contida neste ou na sua proximidade:
"Tem esta igreja uma capela mor, majestosa, nela se vê um retábulo dourado, no meio de uma tribuna em que está colocada sobre um trono outra imagem grande [a anteriormente citada, de Nossa Senhora da Assunção era pequena], a quem também dão o título de castelo da Assunção".

Eis a razão fundamental porque a igreja se chamava de Santa Maria do Castelo [...]

Comparem-se algumas formas e volumetrias da ermida de Nossa senhora do Castelo em Mangualde, na imagem, com elementos equivalentes dos Paços do Concelho de Almada.
Imagem: Turismo de Mangualde

Para além destes elementos, sabe-se que a igreja foi reconstruída no reinado de D. João V, por mandado deste, enquanto que na mesma época o foi igualmente a igreja de Sant'Iago por iniciativa do irmão de D. João V, o infante D. António.

As últimas notícias fidedignas sobre a igreja reportam ao séc. XVIII e informam-nos que o edifício foi destruído pelo terramoto de 1755.

Vista geral de Lisboa, tomada perto de Almada, século XVIII.
Imagem: Museu da Cidade de Lisboa

A partir de então as várias citações de diversos autores mergulham na confusão: a igreja por se ter chamado do Castelo, é localizada dentro da fortificação, confundida com a de Sant'Iago ou dada como completamente desaparecida.

Planta do castelo de Almada em 1772.
Imagem: Rui Manuel Mesquita Mendes.

Nenhum texto conhecido a localiza com fundamento razoável [...] (2)

Almada, praça Nova e rua Direita, década de 1890.
Imagem: Hemeroteca Digital


(1) Barros, Luís, Al-madam, I série, n.º 3 Almada, Centro de Arqueologia de Almada, 1984
(2) Pereira de Sousa, R. H., idem

Artigos relacionados:
Os Paços do Concelho
O castelo, a igreja, a vila e a cerca

Informação relacionada:
Da Imagem de nosa Senhora do Castello da villa de Almada

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Na Trafaria, cena da borda-de-água

Não — tinha eu dito comigo logo de manhã cedo, ao abrir a minha porta e ao contemplar o mar —, com um tempo destes é que eu não vou trabalhar. Para onde eu vou é para a pesca.

Trafaria, ilustração Roque Gameiro, 1899.
Imagem: Hemeroteca Digital

E, trazendo o cesto com os aparelhos para a beira da água, sentado no chão, em mangas de camisa, arregaçado até os joelhos, com os pés nus na tépida consolação da areia, abri a minha faca e pus-me a cortar sardinha e a iscar os anzóis. A melhor camada é o casulo; mas nem sempre se pode ter casulo e nestes casos é preciso cortar a sardinha em regra, diagonalmente, e saber metê-la no anzol, enfiando-a na metade do lado da cabeça por um dos olhos, dando-lhe uma volta com a espinha na outra metade. É um trabalho engenhoso.

Balançando na água, o meu bote esperava por mim amarrado à fateixa. Uma intensa luz de um azul de turquesa envolvia a grande natureza ridente, salgada das exalações da água, cheirando aos mexilhões frescos que dois barcos saveiros em forma de meia-lua estavam pescando no Calhau, a trinta metros da praia para o lado do Bugio.

Os primeiros bandos de rolas, picadas pelo vento leste, cortavam o espaço num voo doce, fazendo tremular na areia reluzente da vazante a sombra pardacenta e fugitiva das asas. Alguns maçaricos reais debicavam a salsugem da maré em pulos esbeltos, prateados pelo sol.

— Vê aquela rapariga que vai saltar com um pequeno ao colo para o bote branco que está amarrado ao nosso? — disse-me o pescador José Pirralho, que iscava também um aparelho, acocorado no chão ao pé de mim.

Aquela é a Rita Carrã que vai a Lisboa ver o marido, o João Galhote, do brigue Ligeiro, que entrou hoje de madrugada. É um brigue que anda no mar há perto de um ano.

O João Galhote embarcou logo depois de casar. Esteve apenas três meses com a mulher e vai ver agora o filho nascido, que ele ainda não conhece...

— Olá, ó tia Rita! se o seu José vier logo consigo para baixo faça sinal do bote com o lenço, que é para lhe botarmos um foguete e para repicarmos o sino.

E ela, em pé na embarcação, rindo, vestida de festa, com o pequeno rechonchudo e louro sentado no braço, agradecia dizendo adeus com a mão — Até logo! até logo!

Portugese Shipping in the Mouth of the Tagus, S. Clegg, 1840.
Imagem: BBC Your Paintings

Deitado o aparelho, lancei a minha bênção à boia e remei para terra. Boa coisa, remar! De calças arregaçadas e pernas nuas, com o peito ao vento, a elasticidade de um bom remo espadeirando a água comunica-se ao nosso arcaboiço, e parece que nesse exercício triunfal todos os ossos cantam como canta o estorvo de couro cru amarrado ao tolete quando se pica a boia.

Dizem os do Algarve, que, para remar, tudo puxa desde as unhas dos pés até às pontas dos cabelos. Quando se rema estirado, pranchando o corpo todo no mergulho do remo, o esforço empregado distribui-se igualmente por todos os músculos das pernas, dos braços, do tórax e dos rins, dando a máxima plenitude da força, a mais intensa sensação de poder e de vitória.

Remar é dizer ao oceano — Chegue-se para trás que vai aqui um homem! — e ver o oceano obedecer.

Tinha vindo para casa almoçar e esperar à sombra a maré para levantar o aparelho, quando ouvi gritar por socorro na praia. 

Chego à janela e vejo na água límpida e serena, beijada do sol do meio-dia, as duas mãos de um homem que se afundia junto de um bote amarrado a oito ou dez braças da terra.

Alguns pescadores saltam num saveiro varado na praia e remam para o ponto em que se tinham submergido as duas mãos que eu vira agitarem-se no ar. Sonda-se o lugar; procura-se por toda a parte, com cabos, com remos, com varas; lança-se uma rede. É tudo inútil. O afogado desapareceu.

Trafaria, Vista da Praia, ed. Manuel Henriques, 15, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Era um operário padeiro, de vinte e três anos de idade, o José da Viúva, que sustentava a mãe, paralítica, e duas irmãs. Fora banhar-se ao despegar do trabalho antes de ir jantar, e estava já em terra quando se lembrou que enchia a maré e que deixara longe o bote de que se servira para saltar de mergulho no mar.

Entrara na água outra vez para alar o bote, e foi então que lhe faltou o pé, que o arrastou a corrente, que se afundiu. Falou-se do caso uma hora entre os grupos dos marítimos deitados na praia ao sol.

— Aquilo não foi senão coisa que lhe deu pela cabeça...
— Ou dor!
— Que ele diz que falou ao vir acima...
— Pois sim; mas nada explicou. Mãe! mãe! foi a única coisa que ele disse.
— Com o que a água puxa para cima o corpo vai lá dar para o Porto Brandão ou para Cacilhas...

E depois, a pouco e pouco, como vinha chegando a hora de levantar os aparelhos e de recolher as redes, os botes começaram a largar para o mar, uns depois dos outros, e a praia ficou deserta sob a grande alegria do céu, no suave rumor da vaga, entrecortado de espaço a espaço pelo gemer dos moinhos e pelo cantar dos galos.

Sentia consideravelmente atenuado o meu apetite aos chamirros e aos robalos a que deitara o aparelho, e uma atração magoada prendia irresistivelmente os meus olhos ao ponto do mar em que eu acabara de ver aquelas duas mãos brancas agitando-se convulsas ao lume de água, como as asas de uma gaivota ferida.

Foi a olhar para esse ponto que descobri de repente, ao pé da praia, o bote branco que levara para Lisboa a Rita Carrã. Lembrou-me o sinal do lenço, mas o bote não deu sinal.

Barcos junto à torre do Bugio, Alfredo Keil (1850 - 1907).
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Além do remador, que vinha deitado à popa, segurando a escota da vela, o bote não trazia mais ninguém senão a Rita com o filho nos braços.

O José Galhote morrera tísico na torna-viagem do brigue Ligeiro.

O bote branco, que saíra da Trafaria com a festa da esperança e que voltava com a desolação da viuvez, deixou cair a vela como uma continência funerária sobre o mesmo lugar em que se submergira o José da Viúva, e esta bela e comovente cerimónia do acaso fez-me ter inveja ao destino do morto.

Pobre José da Viúva! o teu modesto nome, triste e simpático, não será repetido em artigos banais pela Imprensa, nem figurará em epitáfios idiotas nos mausoléus do cemitério dos Prazeres.

O prior da tua freguesia, ultimamente acusado de ter morto com uma paulada na cabeça uma das ovelhas do seu rebanho, não veio grunhir o latim da agonia sobre a tua última hora.

Trafaria, Vista parcial e estrada da Costa, ed. J. Quirino Rocha, 2, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Invocando o nome da tua mãe, expiraste na mais doce e na mais incontestada das religiões, a religião do amor.

Sepultando-te no mar, libertaste-te dos gatos-pingados, dos chantres, dos veludinhos pretos franjados de galões amarelos, dos pingos das tochas, do badalar dos sinos nas torres, do pregar dos alfinetes na mortalha, de tudo enfim quanto desnatura a morte, tornando lúgubre e repulsiva a doce passagem da luta inclemente da vida para o repouso do nada.

Trafaria, a praia.
Imagem: Delcampe

Nessa noite o chinchorro do tio António Janeiro trouxe para terra um cadáver de envolta com os linguados que foi pescar à meia-noite, e o tio João Loira, velho fadista, foi mais uma vez requisitado em nome da caridade para depor por alguns minutos a sua guitarra no chinquilho do Marcelino e ir, piscando os seus olhinhos vermelhos e cantarolando o Quizumba, abrir a cova e enterrar o José da Viúva debaixo dos três ciprestes que ensombram o cemitério da aldeia. (1)


(1) Ortigão, Ramalho, As Farpas