Brigue Pedro Nunes, João Pedroso Gomes da Silva, 1857. Palácio Nacional da Ajuda |
Com effeito a scena da fuga, ou ausência daquelle volume inerte e pesadíssimo, que se move como animado de força própria, ou impellido por mãos de fadas, hé tão singular, e produz na alma sensações tão gratas e novas, apesar de esperadas, que nos extasiam.
Por pequeno que hum navio seja, hé sempre grandíssimo em relação ao individuo (homem) que o ha de tripular, e fazer mover pelo mechanismo da roda do leme que o ajuda a dar-lhe direcção: duzentas toneladas, por exemplo que hé só a parte que hum pequeno navio immerge, corresponde ao volume e peso de dois mil e seiscentos homens; e hé hum homem só, nesse acto do lançamento ao mar, que parece dar-lhe o primeiro impulso, para a carreira que o leva a fender o fluido que o ha de sustentar na posição conveniente ao seu arriscadíssimo e aventuroso serviço.
Na sua carreira fumegante, como que se despede para sempre da terra que o vio levantar-sc pouco a pouco d'entre hum montão de madeiros dispersos a destacados, sem figura alguma regular, até ao admiravel aggregamento delles, que, á primeira vista nada tem de commiim entre si, e donde resulta a final aquelle composto das mais bellas formas, das mais graciosas linhas curvas em tão diversos planos, dos contornos mais elegantes e variados, que apresenta o lindo casco de hum navio bem construído; onde só ha de rectilinea a quilha, na construcção moderna, pois na antiga era esta também curva:
"Que a morte intimam com fragor horrendo,
De longe ás curvas quilhas."
como descreve o nosso Diniz [Ode a Vasco da Gama].
Que esmero no calafeto do fundo, que segurança no cavilhame das cavernas e braços, na pregadura do costado, e do forro impermeável ao filtramento de qualquer gola d'agua; que união nas taboas do convés e cobertas, que meio engenhoso e solido de fixar os váus, dormentes, e trincanizes?!
Como de tantos milhares de partes disparatadas e heterogeneas, se compoz hum todo movel em todos os sentidos, invariavel na sua forma, qualquer que seja a posição que occupe, e resistindo ao choque poderosíssimo das ondas encapelladas sem se desconjunctar?!
Admirável cousa na verdade, e tanto mais admirável, quanto mais se medita na perfeição e complexo desta machina chamada navio, onde todas as artes, e sciencias que a industria e intelligencia humanas imaginaram, são necessárias para o acabamento e desempenho a que se destina.
Navio de guerra disse o imaginativo creador da Revolução de Setembro, era em si "idéa, espada e caminho"! Sim, hé "idéa, espada e caminho"; e só a sua idéa podia compor esta definição que resume quanto o mesmo navio significa, tripulado e conimandado por quem entenda e falle correctamente a lingua do militar marítimo.
Brigue Pedro Nunes (detalhe), João Pedroso Gomes da Silva, 1857. Palácio Nacional da Ajuda |
Dois navios de guerra, pois, ainda que pequenos, cahiram no dia 21 de junho de 1850 ao mar, dos estaleiros do arsenal da marinha de Lisboa, em presença de milhares e milhares de espectadores!
O menor delles que hé a escuna Angra riscada pelo sr. Moraes, parece-nos poder desde já affirmar que ha de servir bem e nobremente ao seu fim; quanto ao de maior lote, o brigue Pedro Nunes aguardaremos as provas que a experiência der, para fazermos juizo do seu mérito como navio de guerra.
No entre tanto, mais doas flâmulas portuguezas tremularão nos seus topes por esses mares, e talvez vão ainda a remotas plagas mostrar de novo a intrepidez e sabedoria que n'outras eras tanto distinguiram os Vascos da Gama, os Joões de Castro, os Antonios Galvões, os Farias, e os Magalhães.
Talvez, dizemos nós, porque não hé só nos grandes navios que se realisam navegações arriscadas, nem tão pouco só nas batalhas de muitas náos e fragatas que se mostra a valentia e audácia dos. homens de guerra, como bem o demonstrou o capitão Pevrieux na noite de 16 de agosto de 1801 a bordo da canhoneira Volcan contra Nelson no ataque de Boulonha, e o nosso destemido Quintella na curveta Andorinha contra a fragata franceza Chiffonne perto da Bahia no dia 19 de maio de 1801.
Cabimento do Pedro Nunes e da escuna Angra.
— Relatando porém o facto de hoje, diremos que ás duas e três quartos da tarde, que era a hora do preamar, deviam estes dois navios cahir na agua, mas como se esperasse por El-Rei até ás quatro, e a maré começasse a baixar, sem que o mesmo senhor apparecesse, permittio Sua Alteza o sr. Infante D. Luiz que o brigue Pedro Nunes partisse em quanto podia nadar; e com effeito elle escorregou admiravelmente pela carreira, deixando os milhares de espectadores maravilhados do modo por que fez aquelle trajecto, e fluctuou sobre as aguas do Tejo que tão fagueiras lhe lambiam o costado.
Pouco depois chegaram Suas Magestades, El-Rei e seu augusto pai com toda a real familia que assistiram ao cahimento da escuna Angra, a qual ainda mais veloz que o Pedro Nunes levantou pelo attricto dos cachorros na carreira, hum fumo immenso, efendeo as aguas do mesmo Tejo, com huma velocidade de 10 a 12 milhas, cercando-se de cachões de espuma alvíssima que a rapidez do sulco produzio.
O corpo de marinheiros da armada com a sua musica, achava-se postado entre os dois estaleiros com a frente para o mar, a companhia de guardas marinhas com correias, armas e bandeira fazia a guarda de honra a Suas Magestades, como em tão solemne acto sempre se praticou; o arsenal estava apinhado de curiosos de ambos os sexos e de todas as classes e jerarchias; o reducto da inspecção, era occupado pela corte e ministros estrangeiros com suas famílias; no cáes da mesma inspecção havia hum toldo e cadeiras para os altos funccionarios e membros das camaras legislativas; as janellas da sala do risco e da escola naval foram offerecidas e franqueadas a muitas senhoras que as adornaram com a sua presença e beldade, terminando a funcção ao aprazimento de todos, e sem o menor transtorno ou desgosto, o que hé de bom agouro para os navios que lhe deram causa, e aos quaes desejámos o melhor e mais patriótico futuro. (1)
Brigue Pedro Nunes (detalhe), João Pedroso Gomes da Silva, 1857. Palácio Nacional da Ajuda |
Nascido em 31 de outubro de 1838 [o infante D. Luiz], um anno depois do senhor D. Pedro V, e obedecendo á vocação precoce, assentou praça na armada aos oito annos de idade, e foi nomeado guarda marinha em 9 de outubro de 1846.
Promovido ao posto de segundo tenente em 19 de maio de 1851, ao de capitão tenente em 29 de outubro de 1854, e ao de capitão de fragata em 24 de março de 1858, encetou com menos de vinte annos a vida do mar, assumindo em 12 de setembro de 1857 o commando de brigue Pedro Nunes, e cruzando na costa de Portugal desde o dia 18 de janeiro do seguinte anno, sujeito em tudo como simples official ás obrigações e á responsabilidade do serviço naval. (2)
(1) Joaquim Pedro Celestino Soares, Quadros navaes, 1861
(2) Coroa poética no consorcio de suas magestades fidelissimas... 1862