quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Indevidamente chamada de Caparica

O desenvolvimento da propaganda turística em torno da Costa da Caparica chocava, porém, com o nítido atraso ao nível de infra-estruturas básicas de que a povoação padecia – a electrificação e a instalação de água canalizada, o saneamento básico e a construção do Bairro dos Pescadores eram reivindicações locais desde há muito colocadas, bem como a ligação por estrada à Fonte da Telha ou a construção de um estabelecimento hoteleiro [...]

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Este era, na realidade, o grande móbil das elites locais, determinadas em constituir uma estância balnear na margem sul do Tejo.

Turistas na Costa da Caparica, década de 1920.

A acção de Manuel Agro Ferreira (1879-1943) insere-se neste contexto. Este solicitador proveniente da zona de Aveiro, com escritório em Lisboa, desde alguns anos que procurava as praias da Costa por motivos de saúde do seu filho, que sofria de raquitismo.

Em 1933, aproveitando a "política de realizações" do Estado Novo e o investimento então feito na construção rodoviária, Agro Ferreira propôs a construção de uma estrada marginal ao Tejo, que ligasse Cacilhas à Costa da Caparica, à semelhança da Marginal entre Lisboa e Cascais que seria inaugurada no contexto dos centenários.

Agro Ferreira defendia que Lisboa deveria ter acompanhado o Tejo no seu desenvolvimento urbanístico, ao invés de se ter desenvolvido para o interior, pois a sua vocação natural e histórica era desenvolver-se em duas margens.

Para isso, era necessário tornar a margem sul um núcleo importante de actividades industriais, comerciais e turísticas, criando uma avenida marginal que impulsionasse este desenvolvimento.

Esta proposta suscitou o interesse do Ministério das Obras Públicas e Comunicações, presidido por Duarte Pacheco, que na mesma altura lançava um concurso público para a concessão da ponte sobre o Tejo, que viria depois a ser cancelado, mas que serviria de mote para os anos 50-60.

Agro Ferreira não deixou de continuar a sua luta ao apresentar no I Congresso Nacional de Turismo (1936) duas comunicações: "As praias da Costa, indevidamente chamada de Caparica" e "A Avenida da Margem Sul".

Na primeira, Agro Ferreira salientava o crescimento da Costa como fenómeno singular em Portugal e desenvolvia as suas teses anteriores, ao projectar na margem sul um complemento turístico a Sintra e aos Estoris, tendo como pólos centrais a Costa da Caparica, a Arrábida e o rio Sado.

Hotel da Praia do Sol,inaugurado em 1934.
Imagem: Restos de Colecção

Para que tal acontecesse, era urgente a intervenção estatal para levar a cabo um plano de urbanização na Costa da Caparica que pusesse termo à construção desordenada que até aí se havia verificado , bem como um conjunto de melhoramentos ao nível das vias de comunicação e transportes, do saneamento básico e do abastecimento de água.

Na segunda intervenção, Agro Ferreira sintetizava o seu projecto de 1933, acrescentando-lhe uma alteração, supostamente por sugestão de Duarte Pacheco: em vez de ligar Cacilhas à Trafaria, a Avenida Marginal deveria prolongar-se entre a base do Alfeite e a Costa da Caparica. (1)

A Praia do Sol - Uma vista parcial. Subida para os "Capuchos", dd. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 110.
Imagem: Fundação Portimagem

Só quem não tenha entrado a barra, a bordo dalgum transatlântico é que desconhece a impressão humilhante de ver desaproveitada a margem sul do Tejo, a "margem interdita". É uma vergonha, com franqueza!

Uma avenida que, partindo de Almada, fosse até à Trafaria, transformava magicamente a perspectiva inteira do porto. Dava, em pouco tempo, uma outra vida e uma outra animação ao rio. Modificava em meia dúzia de anos, e com todas as vantagens, a própria fisionomia da capital do País [...] (2)

Publicações de Agro Ferreira, Turismo e o Tejo e Avenida Sul do Tejo, 1933.
Imagem: Livraria Alfarrabista

As Praias da Costa — indevidamente chamada — de Caparica

A região da Costa de Caparica interessa á maior parte da população de Lisboa, pelo menos como seu melhor e mais próximo refugio, durante o verão: interessa a todos os que não queiram fazer a vida faustosa dos nossos Estoris; 

Costa da Caparica, pic-nic da Aliança Libertária, 1932.
Imagem: Mosca

os que tenham os filhos a tratar de doenças para que o regime marítimo é recomendado; aos que buscam repouso e bons ares de pinhais; áquêles para quem o regime especial com que melhor se definam estas praias, é tratamento único em Portugal.

Praia do Sol, Caparica, ed. Guia de Portugal Artístico, M. Costa Ramalho, 1934.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Nesta vastíssima e salubérrima região encontra a população de Lisboa, além de extensos areais e mar aberto - "um grande parque florestal, relvados frescos, árvores copadas, onde brinque, ria, jogue, tome ar puro e verdadeiramente se divirta em intimo convívio com a Natureza durante os dias em que possa fugir ao triste acotovelamento pelas ruas estreitas da cidade e dos cafés em que a mocidade vicía as horas de ócio"; basta atravessar o Tejo...

A Praia do Sol, Panorama dos Capuchos, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 107, década de 1930.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Estas praias são terapeuticamente indispensáveis á saúde moral e física da população, ao revigoramento, higiéne e formação dos filhos da décima parte da população do país — que tantos são, pelo menos, os habitantes de Lisboa [...]

Lançada a Praia do Sol, foi forçoso reconhecer que a multidão se aglomerava em dois ou três quilómetros dos 40 ou 50 quilómetros que constituem esta costa ao sul de Lisboa.

Dezenas de milhar de pessoas de diferentes tendencias, de diferente educação e de diferentes meios sociais, acorriam ao mesmo ponto restrito, prejudicando-se mutuamente, criando assim, uns aos outros, mal estar, contrariedade e desagrado.

Costa da Caparica, Vista geral, ed. Passaporte, 01.
Imagem: Delcampe

Inventou-se então a Lisboa-Praia, mais perto da Capital, servida pela ponte da Cova do Vapor e a cêrca de uma légua da Praia do Sol, pela beira-mar.

É indispensável e urgente elaborar uma planta para a Praia do Sol, planta em que se definam arruamentos urbanos de forma a que se não possa construir fóra do que fôr projectado.

Costa da Caparica, Vista parcial e o Hotel Praia do Sol, ed. Passaporte, 24, década de 1950.
Imagem: Delcampe

Para garantia de que essa planta seja respeitada por tôdas as entidades locais, deverá ela ser aprovada pelo Conselho Superior de Obras Públicas.

Assim se evitarão os inconvenientes observados e que tão justos protestos têm levantado, de se estar a construir uma povoação tendente a tomar grandes proporções, sem visão larga do seu futuro, em moldes acanhados e inestéticos, em que muitas vezes as construções ultrapassam os alinhamentos, sem respeito pelas plantas existentes, actualmente, bôas ou más que sejam.

Costa da Caparica, Hotel Praia do Sol, ed. Passaporte, 10, década de 1950.
Imagem: Delcampe

A continuar assim, a povoação resultará um aglomerado de casas não só banal mas condenável sob muitos aspectos. (3)


(1) Martins, Pedro, A caminho de um novo paradigma de praia: a Costa da Caparica nos anos 1920-1970
(2) Casario do Ginjal cf. Ferreira, Manuel d’Agro, Avenida Sul do Tejo, Cacilhas-Trafaria", Lisboa, 1933
(3) Ferreira, Manuel d’Agro, As Praias da Costa - indevidamente chamada - de Caparica: Relatório e Plano Geral, I Congresso Nacional de Turismo, Lisboa, 1936

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Um lugar ao sol

A primeira colónia balnear da FNAT [inaugurada a 31 de Julho de 1938] é, assim, instalada na Mata da Caparica, com a designação "Um Lugar ao Sol" [...]

Costa da Caparica, FNAT, Colónia de férias Um Lugar ao Sol.
Imagem: Delcampe

A diferença mais significativa entre "Um Lugar ao Sol" e as restantes colónias balneares, está no facto de esta ter sido construída de raiz para o efeito, pensada como uma "cidade de férias", enquanto as restantes resultariam da adaptação de edifícios já existentes àquela função [...]

Introduzindo o conceito de "Turismo de massas" em Portugal, ou, neste contexto específico, talvez mais "para as massas", a filosofia de "Um lugar ao Sol" do Estado Novo nada tinha a ver com a visão futurista de Cassiano Branco para a Praia Atlântico, apresentada cinco anos antes, embora ambas anunciassem, pioneiramente, a conquista de direitos sociais que só com a regulamentação das férias pagas, em 1937, se vieram a concretizar, e timidamente [...]

Costa da Caparica, Jardim da FNAT, ed. Passaporte, 46, década de 1960.
Imagem: Delcampe

Em 1934, os Sindicatos Nacionais dos Bancários, Escritórios, Seguros, Balcão e Música apresentam à Comissão do Centro de Estudos Corporativos da União Nacional, presidida pelo engenheiro Higino de Matos Queiroz, a proposta conjunta da criação de uma "Colónia de Férias e Repouso" para o usufruto dos seus filiados.

A iniciativa é bem recebida pelas entidades oficiais e assumida pelos Serviços de Acção Social do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência (INTP), organismo integrado na Presidência do Conselho de Ministros e a funcionar sob a supervisão do Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social.

Para a concretização desta obra é pedida à Direcção Geral da Fazenda Pública a cedência de terrenos do Estado na Mata da Caparica, área classificada em regime florestal e abrangida pela zona de servidão militar das Baterias de Alpena e Raposeira [...]

Costa da Caparica, Bairro de Santo António e Foz do Tejo, ed. Passaporte, 2, década de 1960.
Imagem: Delcampe, Oliveira

A escolha da melhor implantação para o estabelecimento deste equipamento levanta alguma polémica. A Direcção Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas defende uma outra localização que não no interior da Mata, argumentando que "no interesse da população [e da própria instituição que se vai fundar] tão meritória obra pode ser realizada sem prejuízo da massa de pinhal existente" [...]

É na sequência deste pedido de cedência de terrenos que é criada a FNAT, a 13 de Junho de 1935, instituição à qual é feita a cessão da parcela escolhida e "que a princípio se destinava [apenas] a manter e dirigir" a Colónia de Férias, mas, logo, vê a sua acção estendida a “um campo mais largo, capaz de abranger todos os trabalhadores portugueses e promover o aproveitamento do seu tempo livre" [...]

Costa da Caparica, Colónia de Férias da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

O jornal O Século [ed. 13 Julho 1938] visita as instalações, ainda antes da obra concluída, para nos dar conta da disposição geral do conjunto:

"Separados, existem dois dormitórios para solteiros, outros tantos para casados, e um para raparigas.

Costa da Caparica, alunas do Centro Católico Português no pinhal, 1938.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Mais afastado, foi construído o pavilhão que se destina ao pessoal e onde se instalou também a lavandaria e armazem.

Cada quarto tem quatro camas dispostas como nos beliches de bordo. Só os que se destinam aos (...) casados possuem apenas uma cama, além de outra de menores dimensões para os filhos. Nos refeitórios existem duches, lavabos e retretes privativas. (...)

A área total da colónia é de cento e oitenta mil metros quadrados. Ali se pensa, em breve, construir uma secção para crianças, dotada de uma piscina com água do mar."

Interessante é que, em apenas três anos, a superfície de pinhal ocupada pela instalação da Colónia de Férias tinha aumentado de cerca de 40.000 metros quadrados para 180.000, mais que quadruplicando a área cedida no "Têrmo de Cessão" de 19 de Agosto de 1935 [...]

Costa da Caparica, FNAT - Um lugar ao Sol, Vista aérea, ed. Neogravura.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Após a inauguração oficial da Colónia da Costa da Caparica, um outro artigo deste jornal fazia referência ao facto de os autores do projecto, "embora respeitando fielmente a tradição arquitectónica das construções portuguesas [, terem aproveitado] muitos ensinamentos colhidos na visita que fizeram no ano passado, às colónias de férias oficiais, italianas e alemãs".

Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (F.N.A.T.).
Costa da Caparica, aspecto do almoço dos trabalhadores dos Sindicatos Nacionais, 1937.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Acrescentava, ainda, que em todo o conjunto se podiam reconhecer as feições de uma obra que Salazar desejava "simples, despretenciosa, agradável, higiénica e confortável" [...]

Costa da Caparica, Colónia de Férias da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

O sino da FNAT é o alarme que faz levantar da cama os preguiçosos às 8 horas da manhã, às 9 horas toca a sineta para o pequeno almoço, às 10 horas vai-se até à praia privativa da FNAT, onde o banheiro é conhecido pelo Tarzan.

António Gonçalves Ribeiro, Tarzan da Costa.
Imagem: Notícias da Gandaia

Por volta das 12 e 30, os colonos (...) regressam e cada um dirige-se para os seus aposentos onde um duche fresco dessalga o corpo. Entretanto ouve-se a sineta, convidando (...) ao almoço.

Costa da Caparica, Entrada ao refeitório da FNAT, ed. Passaporte, 45, década de 1960.
Imagem: Delcampe

À tarde dorme-se a sesta, joga-se uma partida de pingue-pongue, ou uma bilharada. Os mais idosos (...) passam a tarde jogando o loto.

E até às 17 horas pouco movimento se nota na Colónia.

Costa da Caparica, FNAT, Salão de Jogos 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Por volta das 18 horas os colonos mais novos jogam voleibol e patinam.

Cerca das 20 horas a sineta faz-se ouvir novamente — São horas de jantar. Depois, o Bar e as salas de diversão enchem-se de pessoas e, por vezes, faz-se um Pé de Dança.

A partir das 23 horas o silêncio reina em absoluto [...]

Pela publicação celebrativa dos Dez Anos de Alegria no Trabalho ficamos a saber que, em 1945, o complexo da colónia "Um Lugar ao Sol" era constituído por 29 edifícios. Número que, em comparação com os 7 pavilhões inicialmente construídos, testemunhava o sucesso da iniciativa junto dos Sindicatos Nacionais.

Um ano depois, na presença do Presidente da República, o General António Oscar de Fragoso Carmona, são inauguradas as novas instalações da Cozinha e do Refeitório, assim como novas unidades de alojamento, passando a Colónia a contar com 30 pavilhões, aumentando a sua capacidade para cerca de 1.000 veraneantes por turno.

Vinte anos depois da criação da FNAT, em 1954, eram já 38 os pavilhões existentes, que permitiam receber, em simultâneo, 1.555 pessoas, obrigando a uma nova ampliação do refeitório e ao complemento da oferta de serviços facilitados dentro do espaço da Colónia. Entre eles, a construção de um Parque de Campismo, em 1953 [...]

Cada "Pavilhão Familiar para Casais com Filhos" era composto por onze quartos e por instalações sanitárias colectivas, distribuídos a partir de um corredor central ao qual se acedia, de um dos extremos do volume, através de um pequeno pátio com pérgolas.

Costa da Caparica, Colónia de férias da FNAT Pavilhão n° 1, ed. Passaporte, 100, década de 1960.
Imagem: Delcampe

A área dos quartos era reduzida, cerca de 10 m2, considerando que neles dormiam um casal com dois filhos, estes instalados em beliches, e que em cada quarto havia, ainda, uma pequena área com retrete e lavabo.

Na selecção dos pedidos de inscrição na Colónia de Férias, a que tinham acesso apenas os trabalhadores "que se situavam em categorias profissionais inferiores à de chefe de secção", eram considerados prioritários os beneficiários da FNAT que se fizessem acompanhar do maior número de filhos e os que auferissem de menores rendimentos; os que tivessem indicação médica expressa, comprovada pelos serviços da Fundação, da "necessidade absoluta de uma estadia à beira mar"; os sócios mais antigos; quem residisse o mais afastado do litoral; e quem menos vezes tivesse utilizado a colónia balnear.

Festa na colónia de férias Um Lugar ao Sol.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Qualquer dúvida seria resolvida por sorteio. (1)


(1) Lobo, Susana Luísa Mexia, Arquitectura e Turismo: Planos e Projectos. As Cenografias do Lazer na Costa Portuguesa. Da 1.ª República à Democracia, Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, 2013

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domingo, 22 de novembro de 2015

O centro cívico

Pela apreciação do Conselho Superior de Obras Públicas ficamos, ainda, a saber que a primeira fase de execução do Plano de Almada passava pela construção de um novo Centro Cívico nesta vila.

Plano Parcial de Urbanização de Almada (PPUA), Implantação do Cento Cívico, 1947.
Imagem: Ver Almada crescer: 10 anos do Museu da Cidade (catálogo)

Intervenção que pelo rigor e pormenor com que é elaborada não levanta quaisquer objecções por parte daquele organismo [...]

Almada, Tribunal, J Lemos, 03, década de 1960.
Imagem: Delcampe

Em conclusão, o Parecer considera "que a parte que se refere à análise, programa e estudo da urbanização do concelho de Almada, está em condições de servir de base aos ante-planos dos vários aglomerados" [...] (1)

Almada, Jardim Sá Linhares, ed. Postalfoto, 11, década de 1950.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard


(1) Lobo, Susana Luísa Mexia, Arquitectura e Turismo: Planos e Projectos. As Cenografias do Lazer na Costa Portuguesa. Da 1.ª República à Democracia, Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, 2013

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sábado, 21 de novembro de 2015

Amor de verão


A praia da minha infancia é hoje uma silhueta à contraluz,

Costa da Caparica, Aspecto da praia, ed. desc., s/n, c. 1960.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Recortada nos reflexos do mar, ou no espelho das falácias,

Pormenor da praia da Caparica, ed. Fotex, 149.
Imagem: Delcampe, Oliveira

Ou nas sombras das dunas, ou na mata de pinheiros e acácias,

Costa da Caparica, Uma Rua da Mata, ed. Passaporte, 27, década de 1960.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Onde recordo brincar com minha amiga, com paixão que seduz.


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Horizontes

A aplicação do Plano de Urbanização de Almada (1946) é o motor de mudanças profundas na ocupação e forma de povoamento, alteração de usos do solo e das formas de concentração populacional, condicionando a sustentabilidade e administração territorial futura. 

Almada, Cacilhas - Vista Parcial, ed. J. Lemos, s/n, década de 1950.
Vista da Avenida Frederico Ulrich, atual 25 de Abril, Vila Brandão e morro do moinho.
Imagem: José Luis Covita

Nasce uma nova cidade, com outras dinâmicas económicas e sociais.

Abertura das novas avenidas de Cacilhas para a Cova da Piedade e Almada, 1954.
Imagem: Mário Cruz Fernandes in , As Margueiras, Contributos para a história de Cacilhas

A estrutura da vila é redesenhada, projetando-se o seu desenvolvimento para leste, incluindo áreas industriais de dimensão acentuada (Cova da Piedade e Cacilhas) e as zonas rurais no seu perímetro de influência (Pragal, Laranjeiro, Feijó).

Criam-se instrumentos de planeamento urbano para a intervenção em áreas maioritariamente rurais: expropriações de terrenos com caráter público (para novas vias, bairros de casas económicas, centro cívico e avenidas centrais) e tipologias de planos para construção massiva de novas infraestruturas.

Projecto da Avenida Engenheiro José Frederico Ulrich, 1951-1952.
Imagem: Ver Almada crescer: 10 anos do Museu da Cidade (catálogo)

A construção da parte nova da vila decorre num ritmo lento em comparação com a afluência de novos habitantes: os consumidores de água no Concelho aumentam de 5 mil em 1951 para 18 mil em 1961; a Companhia dos Telefones de Almada tem uma lista de espera de 2 anos para obtenção de telefone doméstico. (1)


(1) Ver Almada crescer: 10 anos do Museu da Cidade (catálogo)

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Leitura adicional:
Rodrigues, Jorge de Sousa, Infra-estruturas e urbanização da margem sul: Almada, séculos XIX e XX, 2000, 35 págs.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Tanoeiros

O jacto de água quente da caldeira não cessa de correr para os canecos. Um, logo outro, e outro, vazam-se na bocarra do funil, até o ventre da vasilha chocalhar de fartura.

Tanoeiros no Ginjal, décadas 1920-1930.
Imagem: Apolónia Simões in Ver Almada crescer: 10 anos do Museu da Cidade (catálogo)

E chega o momento de o funil dar lugar ao batoque de pau. Então, bate-se a água no vasilhame, ora rolado sobre si, ora insistindo sobre os pentes e os fundos, a convidar evasão de vapor. E, se esguicha repuxo ou chiadeira — temos fenda ou nó por vedar.

Pedra de giz no bolso, mal a "fuga" surgia Alfredo punha sinal: pequeno círculo para os nós, dois traços para junta mal unida. Quando a ferida está sob um arco, este tem de ser retirado. Mas não sucedeu isso desta vez... — Estás a sonhar com os arcos! — retorquiu-lhe Camarinhas, que estava em manhã de alegria.

—  Isso parece da junta, mas é nó!... Passa pra cá o barril!

O filho de Gracinda empurrou a vasilha e o tanoeiro passou dedos sobre a "fuga". A lâmina do raspador preparou a ferida, tirou finas aparas, e bastou uma broca com a pena da marreta para fazer estancar o esguicho. Partida a haste remanescente da broca, foi o local muito bem batido e novamente raspado.

Tanoeiros.
Imagem: Memórias e Identidades da Cooperativa de Consumo Piedense

E assim se alongou a faina nos suadoiros: rabujenta para uns, reinadia para outros. Nem a hora do almoço lhes apazigou a língua. Vários batoques foram às telhas, dando gáudio aos triunfadores. Canecos sobre canecos emborcaram água quente nas estranhas do vasilhame.

Era uma encomenda urgente, que iria, depois das cinco, para um dos exportadores do Ginjal. Lavrantes e casqueiros, desde o início da semana, esgarçavam na empreitada com assomos de vontade. Saltavam aparas ao fio da lâmina das raspilhas, que os lavrantes puxavam junto ao ventre.

Escorria o suor do rosto e dos braços musculosos. Escorriam os peitos cabeludos. Toda a oficina rescendia a madeira queimada e a suor — que o lume e o vapor de água atiçavam. O fumo esbarrondava-se sob os forros do telhado: branco, dos suadoiros; negro e resinoso, dos fogos casqueiros.

E misturavam-se, e confundiam-se ambos — esgueirando-se, como um só, pelas trinchas das telhas, pelos esconsos das janelas e das portas. Tossia-se. Escarrava-se. Nas mãos dos casqueiros, marreta e chaço tiniam brutalmente.

Cravar rebites nos arcos, sobre as bigornas; bastir vasilhame — fazem o alvoroço da oficina. Os ouvidos há muito que se aclimataram àquela bulha, àquela afã. Também os olhos já não lacrimejam da fumarada. Depois de aparelhadas, as aduelas só precisam de lume e marreta [...]

Tinha os dedos a sangrar, entumecidos. Uma indisposição, um ardor subiam-lhe aos pulsos. Seguindo o velho remédio, por duas vezes, na sentina, urinara sobre os calos e as feridas. Perdera a paciência para Gregório e Patalarga, que, galhofeiros, não o largavam de ditos. Destrambelhou-se — e cortou falas com os gozadores. Maior ainda se tornou a mangação: cuspos à distância, choradeiras, guinchadas, e repetidos "tá quieto, ó mau!".

Alfredo começara, há pedaço, o segundo barril do dia. Crepitava já alto o fogacho entre aduelas, e ele, junto da bigorna, chanfrava os arcos e metia e cravava rebites. Boca cerrada, olhos atentos, não resvalasse a corna da marreta sobre os dedos! Fechara oito arcos.

Aspeto geral de uma tanoaria, Artur Pastor, c. 1960.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Depois, foi buscar o macaco e meteu-o ao barril: cabo de arame envolvendo o topo das aduelas por fechar. Rodando a manivela, aper-tou mais e mais. E a madeira quente cedeu e as bocas igualaram-se em abertura. Cintou um arco "em colete", outro ao bojo" — e bastiu, bastiu. Colocou a vasilha sobre o baixete e meteu o gume da enxó a acertar os topos.

Foi buscar madeira para os fundos e estendeu-a sobre a praça. Pegou no compasso e procurou seis partes iguais. Achara o centro. E riscou os fundos [...]

Livro de Horas, Lyon, 1516.
Imagem: In Terra Vineata

De começo a fabricação manual impusera-se. Era assim que os tanoeiros aprendiam o ofício, escola-mestra herdada de pais para filhos, desde os tempos dos reis barbudos e de saias. Cutelo, serrote, raspilha, enchó, marreta, bigorna — tinham-se como vulgares instrumentos de trabalho.

Tanoaria Francisco da Cerca, corredor do Ginjal, 1900.
Imagem:   Correia, Romeu, O Tritão

Mas os homens, sempre engenhosos e insatisfeitos, criavam máquinas endiabradas. Rápidos engenhos para superar o braço do homem em rendimento e precisão. No norte do País, há muito que as oficinas conheciam a maquinaria moderna. (1)


(1) Correia, Romeu, Os Tanoeiros, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1976

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Jimmy Green's, a muleta do Tejo

Muleta, embarcação de pescaria que navega na proximidade da barra de Lisboa e que, em caso de necessidade, dá piloto aos navios. (1)

Muleta do Seixal, Associação da Classe Piscatória da Villa do Seixal, 1896.
Imagem: Caxinas... de "Lugar" a Freguesia

Ao vê-la pela primeira vez, parece impossível colocá-la em qualquer categoria das embarcações à vela. A sua armadoria parece menos com o de qualquer navio racional do que com um terrível pesadelo de um geômetra. Por toda a parte tudo parece ângulos e quadrados; o número de linhas retas é desconcertante e aparentemente totalmente sem significado.

Portuguese Muleta in The Story of Sail by GS Laird Clowes and Cecil Trew.
Imagem: intheboatshed.net

Podia menosprezá-la, no melhor, como uma aberração de um tipo excecional e permitir a sagacidade de qualquer velejador entende-la, e esquecer o leigo médio acostumado apenas a embarcações de recreio ou à imagem de navios de três mastros.

Mas é quando começamos a examinar a muletta que descobrimos sua verdadeira natureza. No principal, ela ainda é um latino, como mostra a sua vela grande.

An English frigate in choppy waters in the Tagus, John Thomas Serres (1759-1825).
Imagem: Bonhams

A vante ela aparelha esses toldos quadrados [water-sails], que pertenciam aos primeiros navios de três mastros da idade média, e transmitidos, através dos períodos Tudor e Elizabeth até ao início do século XIX, quando os nossos marinheiros costumavam chamá-los de "Jimmy Green's ."

Columbine e diversos navios experimentais na barra de Lisboa. A Muleta, aqui representada numa pintura de John Christian Schetky, é referida pela tipagem do casco, Bean Cod boat (Hektjalk dos Países Baixos).
Imagem: Royal Museums Greenwich

À popa uma varredoura projeta sobre a ré algo à maneira de um lugre do oeste de Inglaterra e, portanto, velas adicionais podem ser acrescentadas.

Á frente do pano latino [bastardo] existe uma vela de estai, que parte do topo do mastro para o gurupés ou, às vezes, para o extremo do bateló.

Devante, novamente, vem a giba, e além do toldo mais baixo, há também uma pequena vela quadrada que se estende a partir de um pequeno mastro com projeção considerável para a frente [bateló], segundo o costume, é uma sobrevivência do clássico Artemon que existiu até mesmo no tempo de São Paulo.

Muleta, Tagus, The Graphic, May 1883.
Imagem: eBay

Qual o significado de toda essa complicação, pergunta? A resposta é muito simples. Estas mulettas são empregues na indústria de pesca de arrasto, e a intenção é para equilibrar as velas da proa contra a da popa, de modo a que elas possam facilmente regular a velocidade do barco, quando a rede de arrasto está lançada.

A muletta é, evidentemente, muito orgulhosa de sua ascendência, pois ainda pinta os olhos na sua proa, ainda encaixa esses picos de curiosos a vante acima da linha de água, características curiosas e sobrevivências interessantes do momento em que as galés romanas usavam para se perfurarem entre si nas águas do Mediterrâneo.

A menor destas embarcações mede 13 metros de comprimento, e a maior 18, com amplo raio.

Vista do Tejo e da Trafaria, The river Tagus at Trafaria, John Cleveley Jnr, 1775.
Imagem: Bonhams

O número máximo de tripulantes não excede dezoito homens, mas embora pareça excessiva quantidade de mãos cremos que são necessárias, quando tantas seções diferentes de pano têm de ser manuseadas, e uma rajada súbita exige que todas estas velas surpreendentes sejam ajustadas inteligentemente.

As linhas da muletta não são menos curiosas do que o seu aparelho, em vez de ter uma quilha que desce mais abaixo do que o casco, dá-se o inverso, sendo seu fundo é muito côncavo, de modo que, quando está encalhada, fica por terra sem adornamento.

Além disso, quando ela adorna sob o seu pano, tem, portanto, um maior calado do que quando está exatamente na posição vertical.

A pesca é feita com uma espécie de rede de arrasto [tartaranha], em que os cabos da rede são fixados nos batelós [varas] que se veem em cada extremidade da embarcação, permitindo que esta derive lateralmente, com as velas da popa equilibrando as da proa, e um patilhão lateral que, em certa medida, controla a sua deriva.

Pescadores no Tejo, Fishermen at work off the mouth of the Tagus, John Cleveley Jnr, 1775.
Imagem: Bonhams

A zona principal de navegação destas embarcações está nas proximidades das Berlengas, um grupo de ilhéus, que se encontram ao largo da costa portuguesa perto da barra do Tejo.

Os bicos, embora sejam principalmente ornamentais, têm os seus usos, pois estão equipados com aberturas para os cabos dos toldos e, por vezes, também são utilizados para transportar os covos com peixe. (2)

Veio até ao princípio deste século, rocegando o fundo com uma rede de arrasto— a tartaranha — rebocada e ligada aos batelós — à proa e à popa — descaindo com o vento, isto é, arrastando de lado.

Muleta do Barreiro, João Vaz.
Imagem: Revista da Armada

Note-se que o nome, vindo do latim, significa, naquela origem "mover-se com dificuldade", isto é, embarcação ronceira.

De facto a Muleta nunca marcou pelas velocidades alcançadas mas sim pelo seu aspecto geral notável ao ponto de até celebridades estrangeiras, como o Alm. Páris no seu IV volume dos "Souvenirs de la Marine", de 1888, e o nosso Baldaque da Silva, hidrógrafo de grande renome, lhe dedicarem a sua atenção, em publicações, que a citam e explicam [...]

The Praҫa do Comércio Lisbon, John Cleveley Jnr, 1775.
Imagem: Bonhams

O seu velame era tão característico, que o desfraldar das velas, dava para a identificar quando arrastava a grande distância. Ficava de silhueta inconfundível.

Muleta do Seixal.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Tinha uma tripulação de 14 a 16 homens, 13 a 15 metros de comprimento, 4 de boca e 2 de pontal, costado liso.

O aparelho da Muleta compunha-se de um mastro, muito inclinado para vante, onde içava a verga duma vela grande triangular, latina e de dois compridos paus, os tais batelós, deitados para a proa e para a popa, que serviam para amurar e caçar as outras velas, e, ao mesmo tempo, para nas extremidades amarrarem os cabos que seguravam a rede, quando esta entrava em acção.

Muleta do Tejo, 1887.
Imagem: Musée nationale de la Marine

A ré, caçava no extremo do bateló um triângulo que içava na pena da vela grande, denominado varredoura de cima, e, por baixo, outro, a varredoura de baixo; e em estais que vão da cabeça do mastro para a roda de proa e para o bateló de vante, içavam umas seis ou sete pequenas velas chamadas toldos, muletins, varredoura e cozinheira, que, segundo o seu número, compensavam o efeito das velas de ré, obrigando a embarcação a manter-se atravessada, durante a pesca.

A vela grande triangular latina era a base de navegação de ir ou voltar do local de pesca: as outras, auxiliares de arrasto. (3)

Barcos de pesca ao largo da barra de Lisboa, Lisboa, 1856.
Imagem: Royal Museums Greenwich

A Muleta, também chamada bote de arrastar, usava as redes de tartaranha e pescava até fora da barra, entre o cabo da Roca e o cabo Espichel.

A beleza e a elegância desta embarcação eram-lhe dadas pelo uso das seguintes velas: varredouras à ré; moletim à proa; varredoura da vara, cojusteira, toldo da ponte e moletim de vara.

A Muleta tinha uma vela bastarda e o mastro curto e inclinado para vante e podia largar muitas e pequeninas velas servindo-se de umas vergônteas lançadas para diante pela proa e pela popa, dando-lhe regular andamento com ventos bonançosos.

Muleta, Barco Escola Português, Luis Ascêncio Tomasini (1823 - 1902).
Imagem: Caxinas... de "Lugar" a Freguesia

O seu casco tinha considerável largura a meio comprimento, e a proa era de forma arredondada e curva; na popa, pendia-lhe um grande leme, tendo mais no flanco larga pá que lhe aguentava a inclinação quando mergulhada por barlavento.

Estas embarcações, típicas dos pescadores do Seixal e do Barreiro, vieram a morrer no Tejo no início deste século, apesar de Ramalho Ortigão já em 1876 chamar a atenção para o seu fim: "… e as elegantes Muletas do Seixal, que infelizmente tendem a desaparecer da nossa baía."

Barcos no Tejo entre o Bugio e o Forte de São Julião da Barra,
Luis Ascêncio Tomasini (1823 - 1902).
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Em sua substituição, usaram-se os "modernos batéis, que pescam pelo mesmo sistema", conforme registava Baldaque da Silva em 1895.

Batel do Seixal, ou bote da tartaranha.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O batel do Seixal, ou bote da tartaranha, era de tipo misto, com casco de bote modificado e velame da Muleta adaptado ao seu menor porte. (4)

Batel do Seixal, ou bote da tartaranha.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa


(1) Diccionario de marinha, que aos officiaes da armada nacional portugueza...
(2) Chatterton, E. Keble, Fore and aft the story of the fore & aft rig from the earliest times to the present day, London, Seeley, Service & co., 1912
(3) Revista da Armada A Muleta, setembro 1975
(4) Muleta ou Bote de Arrastar

Informação relacionada:
A Muleta e a Tartaranha (séculos XV-XX)

Muleta do Barreiro
Barche e navicelle d'Europa

Informação genérica:
Construcção da Muleta do Seixal (modelismo)
Sailing ships : the story of their development from earliest times to the present day


A discreta Muleta em cenários do Tejo:

Uma fragata inglesa a chegar ao Tejo frente à Torre de Belém, com uma fragata portuguesa ancorada ao largo pela sua popa, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Uma fragata inglesa de través frente à margem sul do Tejo com pequenas embarcações nas proximidades, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
Imagem: Cabral Moncada Leilões