quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Tanoeiros

O jacto de água quente da caldeira não cessa de correr para os canecos. Um, logo outro, e outro, vazam-se na bocarra do funil, até o ventre da vasilha chocalhar de fartura.

Tanoeiros no Ginjal, décadas 1920-1930.
Imagem: Apolónia Simões in Ver Almada crescer: 10 anos do Museu da Cidade (catálogo)

E chega o momento de o funil dar lugar ao batoque de pau. Então, bate-se a água no vasilhame, ora rolado sobre si, ora insistindo sobre os pentes e os fundos, a convidar evasão de vapor. E, se esguicha repuxo ou chiadeira — temos fenda ou nó por vedar.

Pedra de giz no bolso, mal a "fuga" surgia Alfredo punha sinal: pequeno círculo para os nós, dois traços para junta mal unida. Quando a ferida está sob um arco, este tem de ser retirado. Mas não sucedeu isso desta vez... — Estás a sonhar com os arcos! — retorquiu-lhe Camarinhas, que estava em manhã de alegria.

—  Isso parece da junta, mas é nó!... Passa pra cá o barril!

O filho de Gracinda empurrou a vasilha e o tanoeiro passou dedos sobre a "fuga". A lâmina do raspador preparou a ferida, tirou finas aparas, e bastou uma broca com a pena da marreta para fazer estancar o esguicho. Partida a haste remanescente da broca, foi o local muito bem batido e novamente raspado.

Tanoeiros.
Imagem: Memórias e Identidades da Cooperativa de Consumo Piedense

E assim se alongou a faina nos suadoiros: rabujenta para uns, reinadia para outros. Nem a hora do almoço lhes apazigou a língua. Vários batoques foram às telhas, dando gáudio aos triunfadores. Canecos sobre canecos emborcaram água quente nas estranhas do vasilhame.

Era uma encomenda urgente, que iria, depois das cinco, para um dos exportadores do Ginjal. Lavrantes e casqueiros, desde o início da semana, esgarçavam na empreitada com assomos de vontade. Saltavam aparas ao fio da lâmina das raspilhas, que os lavrantes puxavam junto ao ventre.

Escorria o suor do rosto e dos braços musculosos. Escorriam os peitos cabeludos. Toda a oficina rescendia a madeira queimada e a suor — que o lume e o vapor de água atiçavam. O fumo esbarrondava-se sob os forros do telhado: branco, dos suadoiros; negro e resinoso, dos fogos casqueiros.

E misturavam-se, e confundiam-se ambos — esgueirando-se, como um só, pelas trinchas das telhas, pelos esconsos das janelas e das portas. Tossia-se. Escarrava-se. Nas mãos dos casqueiros, marreta e chaço tiniam brutalmente.

Cravar rebites nos arcos, sobre as bigornas; bastir vasilhame — fazem o alvoroço da oficina. Os ouvidos há muito que se aclimataram àquela bulha, àquela afã. Também os olhos já não lacrimejam da fumarada. Depois de aparelhadas, as aduelas só precisam de lume e marreta [...]

Tinha os dedos a sangrar, entumecidos. Uma indisposição, um ardor subiam-lhe aos pulsos. Seguindo o velho remédio, por duas vezes, na sentina, urinara sobre os calos e as feridas. Perdera a paciência para Gregório e Patalarga, que, galhofeiros, não o largavam de ditos. Destrambelhou-se — e cortou falas com os gozadores. Maior ainda se tornou a mangação: cuspos à distância, choradeiras, guinchadas, e repetidos "tá quieto, ó mau!".

Alfredo começara, há pedaço, o segundo barril do dia. Crepitava já alto o fogacho entre aduelas, e ele, junto da bigorna, chanfrava os arcos e metia e cravava rebites. Boca cerrada, olhos atentos, não resvalasse a corna da marreta sobre os dedos! Fechara oito arcos.

Aspeto geral de uma tanoaria, Artur Pastor, c. 1960.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Depois, foi buscar o macaco e meteu-o ao barril: cabo de arame envolvendo o topo das aduelas por fechar. Rodando a manivela, aper-tou mais e mais. E a madeira quente cedeu e as bocas igualaram-se em abertura. Cintou um arco "em colete", outro ao bojo" — e bastiu, bastiu. Colocou a vasilha sobre o baixete e meteu o gume da enxó a acertar os topos.

Foi buscar madeira para os fundos e estendeu-a sobre a praça. Pegou no compasso e procurou seis partes iguais. Achara o centro. E riscou os fundos [...]

Livro de Horas, Lyon, 1516.
Imagem: In Terra Vineata

De começo a fabricação manual impusera-se. Era assim que os tanoeiros aprendiam o ofício, escola-mestra herdada de pais para filhos, desde os tempos dos reis barbudos e de saias. Cutelo, serrote, raspilha, enchó, marreta, bigorna — tinham-se como vulgares instrumentos de trabalho.

Tanoaria Francisco da Cerca, corredor do Ginjal, 1900.
Imagem:   Correia, Romeu, O Tritão

Mas os homens, sempre engenhosos e insatisfeitos, criavam máquinas endiabradas. Rápidos engenhos para superar o braço do homem em rendimento e precisão. No norte do País, há muito que as oficinas conheciam a maquinaria moderna. (1)


(1) Correia, Romeu, Os Tanoeiros, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1976

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