segunda-feira, 28 de maio de 2018

Estaleiros de praia

Apesar da sua exígua dimensão, foi nesses estaleiros das praias do estuário do Tejo que se apoiou, ao nível da construção e reparação naval, uma boa parte da actividade marítima desta área regional.

Estaleiros da Mutela, Carlos Pinto Ramos, aguarela, 1931.
Museu José Malhoa

As unidades instaladas na praia da Margueira, e também na de Mutela, situadas na zona ribeirinha do concelho de Almada, virada a nascente, caracterizavam-se, no início do século XX, por uma grande simplicidade. 

Dispunham, normalmente, de uma ou duas carreiras, de um guincho destinado a puxar as embarcações para terra e de alguns barracões que funcionavam, simultaneamente, como oficina e depósito de ferramentas e materiais diversos.

Os restantes apetrechos ficavam espalhados pela praia onde assentavam as quilhas das embarcações em construção ou reparação.

A madeira mais utilizada nestes estaleiros era o pinho, proveniente das matas de Leiria e de Alcácer do Sal. Depois de cortados os troncos e transformados em pranchas, de comprimentos variáveis, estas eram enterradas no lodo, amarradas com correntes, e aí conservada, até que as mãos hábeis de um carpinteiro de machado lhes desse a forma necessária.

Doka velha, Leitão de Barros, 1916
[eventualmente trata-se da mesma aguarela referenciada como Estaleiro da Mutela (Mutelo) e Casas na Mutela].
Ilustração Portuguesa,n° 567, 1 de janeiro de 1917

Perto destas instalações havia sempre alguns ferreiros que, entre duas marteladas nos cascos das cavalgaduras, fabricavam as cintas, as cavilhas de entroncar e zincavam os pregos utilizados na construção das embarcações.

Na primeira década do século XX funcionavam na praia da Margueira, em permanente actividade, dois estaleiros: o do "Gouveia" e o do "Machado".

Logo ao lado, na praia de Mutela, estavam situados os da "Manga" e do "Zé da Lanchinha". Mas, a par destes, existiam outros, com carácter temporário, que duravam apenas o tempo suficiente para se construir uma embarcação.

Mais tarde, no início dos anos trinta, surgiu o estaleiro do "Durão", em Margueira, e os do "Chico Cavaco" e do "Cravidão", em Mutela.

Destas unidades saíram fragatas, varinos, canoas, batelões e, também, embarcações a motor destinadas ao transporte de passageiros entre as duas margens do Tejo, como o "Renascer" [LX-3107-TL, construído em 1917 em Olhão, como rebocador], o "Pacífico" e o "Pacato".

Vista do Arsenal do Alfeite, Caramujo e Mutela, Mario Novais, década de 1930.
flickr

A mão-de-obra com carácter permanente, utilizada em cada um destes estaleiros, era constituída por calafates, carpinteiros de machado e carpinteiros de branco, não ultrapassando, de um modo geral, os vinte homens. 

Gente que, de um modo geral, cultivava um certo elitismo e a manutenção de uma escala hierárquica bastante rígida ao nível das suas profissões, indícios de um espírito corporativo com raízes na medievalidade. 

Por sinal, era ainda comum, nesse início do século XX, a passagem do ofício de carpinteiro de machado, de pais para filhos. 

Quando o trabalho a realizar requeria um maior número de operários, os patrões recorriam à contratação de pessoal eventual. A "Malta do Sol", como eram designados os trabalhadores não especializados, que, entre outras tarefas braçais, serravam os troncos chegados dos pinhais e cobriam os cascos dos navios com alcatrão.

O Sr. Aires, um carpinteiro de machado que começou como aprendiz no estaleiro do "Zé da Lanchinha", em 1909, com quem tivemos oportunidade de conversar em 1987, quando, pela primeira vez abordámos este tema, dizia-nos, com indisfarçável orgulho que: 

"...Naquela altura um mestre era um mestre. Os patrões até chegavam a mandar ir buscar um gajo a casa de carruagem. E não julgue que se andava vestido de qualquer maneira. Havia alguns que até andavam de fato preto, chapéu de coco e laço à anarquista. É claro que, para se chegar a oficial e depois a mestre era preciso ser-se bom e suar muito. Enquanto éramos aprendizes nunca ganhávamos nada. Os pais de alguns até ofereciam dinheiro e coisas ao mestre, para eles começarem a trabalhar. O meu pai é que nunca deu nada..."

João Gomes Silvestre (João Marcela), mestre carpinteiro de machado, e mestre Bernardino Gomes Silvestre, calafate.
Artigos do jornal João Semana

Noutra passagem desta entrevista, quando perguntámos ao sr. Aires que recordações tinha do movimento grevista durante a primeira República, respondeu-nos peremptoriamente:

"... O que é que julga? – Não havia muitas greves. A malta do sindicato chegava à praia, dizia no primeiro estaleiro quanto é que queria e, quando chegava ao ultimo, os gajos (os patrões) já tinham aceite tudo..."

De facto o Sr. Aires tinha razão, porque, tanto quanto pudemos verificar, o numero de greves na construção naval, no período compreendido entre 1910 e 1926 foi incomparavelmente menor do que, por exemplo, na industria corticeira. Para esta situação contribuía – pensamos – o facto deste sector ser formado, sobretudo, por pequenas empresas.

Os estaleiros da Margueira e da Mutela formaram muitos calafates e carpinteiros de machado que, mais tarde, foram trabalhar para a "Companhia Portuguesa de Pesca", para a "Sociedade de Reparação de Navios", para o "Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau", para a "Parry & Son" e para o "Arsenal de Marinha".

Alguns trocaram o machado e a polaina pelo martelo de rebites, mas outros continuaram a sua arte, porque nestas empresas e, sobretudo, nos dois últimos estaleiros também se faziam trabalhos em madeira, tanto na manutenção como na construção de embarcações em ferro e, mais esporadicamente, num ou noutro iate ou batelão. 

Cova da Piedade, Mutela, aterro para construção da variante à Estrada Nacional 10.
Museu da Cidade de Almada

Nos anos cinquenta, todos os estaleiros das praias da Margueira e Mutela foram encerrados em consequência do aterro de toda a frente ribeirinha que se estende de Cacilhas à Cova da Piedade, seguido da construção de uma muralha e da avenida que ainda hoje existe. 

Na década de sessenta, como já antes referimos, foi construído nesse local o estaleiro da "Lisnave", também conhecido pelo "estaleiro da Margueira". 

A partir de então e até ao seu encerramento, na década de noventa, o concelho de Almada tornou-se no maior centro de indústria naval do estuário do Tejo e do país. 

Lisnave (Margueira), o paquete Príncipe Perfeito e petroleiro Esso Norway na doca n.° 13.
Porto de Lisboa

A par da "Lisnave", que empregava uns milhares de trabalhadores e à volta da qual foram surgindo umas quantas pequenas e médias empresas ligadas ao ramo, continuavam a laborar firmas bem mais antigas como o "Arsenal de Marinha", a "Parry & Son", a "“Sociedade de Reparações Terra e Mar", mas também importantes empresas empenhadas na pesca do alto, como o "Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau" e a "Companhia Portuguesa de Pesca".

Estas, obviamente não envolvidas na construção naval, mas dispondo de serviços de manutenção e reparação, como era o caso da "Companhia Portuguesa de Pesca", que dispunha de mais de uma centena de operários especializados, entre os quais se encontravam alguns hábeis "carpinteiros de branco" e "carpinteiros de machado", herdeiros da tradição dos ancestrais estaleiros das praias ribeirinhas do estuário do Tejo, como as as da Margueira e Mutela.

Vista do Arsenal do Alfeite, Caramujo e Mutela, Mario Novais, década de 1930.
flickr

Hoje, com excepção do "Arsenal de Marinha", tudo desapareceu. (1)


(1) O Farol, As Margueiras, Contributos para a história de Cacilhas, J.F. de Cacilhas, 2013

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Doca 13
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Kong Haakon VII na Lisnave
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etc.

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