N'um pequeno aposento, notavel só pela vista magnificente que tinha a janella, e pelo aceio que n'elle reinava, estavam sentados Maria e Alvaro em pratica affectuosa e intima e com as mãos reciprocamente dadas.
Maria recebêra a educação mais esmerada d'aquella época.
Era de uma formosura admiravel sem ser apparatosa; despercebida a distancia, maravilhava ao contemplar-se de perto. Tinha o rosto e as mãos de uma grande alvura, não d'aquelle branco do leite igual e sem brilho; mas sim do alvo resplandecente da perola, que não cança, e até regosija a vista. O cabello farto de um louro escuro, entrançado primorosamente, moldurava-lhe o rosto; as feições todas eram regularíssimas e bellas, e azues lhe brilhavam os olhos.
N'estes e em toda ella possuía a serenidade a aparente, que realça a modestia e infunde maior paixão e mais respeitosa, das mulheres do norte. Os olhos então tinham uma luz meiga de ternura e de bondade que lhe dava ares de uma santa. Julgar-se-hia por um momento que a alma lhe remontava da terra, onde nada a prendia, e se elevava ao céo e perdia nas regiões bemaventuradas dos que estão com Deus. Se então fattava a voz, sempre suavíssima, tinha a doçura da flauta, ouvida ao longe em noite de luar e a uncção quasi divina da voz juvenil da virgem enlaçada ao orgão do mosteiro.
Mas quando uma aura de amor ou d'outro sentimento grande vinha agitar aquelle regato puríssimo de seu viver, desapparecia inteiramente a serenidade, os olhos scintillavam-lhe com uma luz resplandecente e vivíssima, e toda ella era amor, e paixão, e enthusiasmo e delírio! Similhavam então as suas fallas um hymno ruidoso e arrebatador, e levam-nos apoz si, inspirando-nos tudo quanto é difficil, ingente e sublime. Era o amor, a gloria, e a loucura que se personificavam n'ella para nos endoudecerem.
Agora estava Maria n'aquella sua meiga serenidade habitual, mas que tinha hoje um toque mais fundo de melancholia e tristeza.
— Tu és, Alvaro, — dizia ella meigamente — cavalleiro, nobre e filho de um grande de Hespanha e Portugal, como poderás jámais desposar-me a mim, filha do povo!... — Outr'ora, — continuou, animando-se um pouco, — tinha vaidade da minha condição, enobrecia-me o ser oriunda de populares, enlevava-me, ouvindo a meu decrepito avô repetir as orações com que elle e os outros procuradores dos povos tinham em côrtes, durante muitos annos, fulminado o orgulho, abatido o poder dos fidalgos. Hoje o amor que te consagro e esse desejo teu de o quereres santificar perante a egreja, o que cu nunca te pedi, mas que era, por certo, a maior ventura de minha vida, fazem com que me lastime de não ter nascido nobre como lu, fazem com que eu renegue as crenças de meus paes, as crenças do povo.
— Não penses tal, Maria! a verdadeira nobreza, sobre tudo nas mulheres é a da alma, é a da virtude; e n'isso és tu mais nobre que rainha alguma, tu que és uma santa.
— Santa!
— Santa sim, erguida e venerada no altar de meu coração!
— A virtude minha é só devida á generosidade e elevação tuas, Alvaro.
— Á honra propria de todo o homem honrado, talvez; e deixa-me ter d'isso orgulho, Maria. Mas, se tal não fosse, não acreditava no teu amor. Já t'o hei dito, e repito-o agora bem do intimo da alma; não creio que a mulher, amando verdadeiramente, amando ardentemente um homem, lhe possa resistir. Nas mulheres é ludo o coração, quando elle resiste ao amor é porque o não sente devéras. Da parle do homem, que tem brio, é que está, é que deve estar a sufficiente força para refrear a sua paixão e a da mulher que estremece, pois não deve querer precipital-a n'um abysmo de vergonha, não deve querer arrebatar-lhe a virtude, seu atavio principal. Quantas vezes um homem, gasto dos prazeres, simulando um sentimento que não tem, vae com palavras sonorosas e requebros estudados, desvairar o espírito, já de si ardente, de uma pobre menina e arrostal-a â perdição; é esse um vil, que a sociedade a ser justa, devia para toda a vida marcar de ignomínia!
— Dcixára-se Maria suavemente descair, ajoelhára ante o cavalleiro, e beijando a sua mão delicada, alva, quasi feminil, disse:
— Tu és bom, meu Alvaro!
— Toda a bondade que tenha de ti procede, minha esposa; redarguiu elle, tomando-lhe nas mãos a cabeça, e aos labios achegando-a com amor, ensinou-rn'a a tua doce voz, inspiram-me esses teus olhos do céo.
Um bater apressado á porta do aposento fez levantar rapidamente Maria, que foi abrir.
A menina estremeceu ao dar de rosto com sua mãe pallida e assustada.
— Que é, disse ella?
— Senhor D. Alvaro, respondeu a boa senhora com voz tremula, um cavalleiro dos ginetes de Fernão Martins de Mascarenhas diz que el-rei vos ordena o acompanheis a Lisboa.
Sotto-Maior empallideceu tambem; é que uma ordem d'aquellas a um nobre, nos primeiros annos do reinado de D. João ii podia, mui facilmente, ser uma sentença de morte.
Os tres olharam-se reciprocamente, não ousando articular um som. Sem animo, vacillante, quasi desfallecida, apoiou-se Maria a uma cadeira para não cair.
Sua mãe foi a primeira que fallou:
— Senhor D. Alvaro — disse com voz sumida — fugi! Uma grande tristeza, como terror do futuro, me ennegrece o corarão. Chegastes ha pouco, de Castella, e sabeis, que se diz por cá tramar a rainha lzabel com os nobres de Portugal contra a corôa de D. João ii. Talvez alguem, que vos queira mal, fosse calumniar-vos junto de el-rei. É tão difficil ao bom provar a sua innocencia, quanto é facil ao malvado fazer uma accusação. Livre, menos custoso será a vossa mercê convencer sua..alleza de que foi enganado, preso, nem a justiça vos dará para isso tempo. Fugi! Saí pela porta do jardim, e breve estareis fóra da villa. Tomae na Amora um cavallo, ide a Setubal e lá embarcae para Castella ou para França. Acreditae-me, senhor, não arrosteis com a sanha terrível do homem, que assassinou o duque de Vizeu.
— Julgo que tendes razão... Digo-vos em consciencia, e por alma de minha santa mãe vos affirmo, ciue jámais tramei contra o rei de Portugal!... mas esta verdade mais difficilmcnte do que em parte alguma a provarei no fundo de um carcere!... Que dizes, Maria? ha no teu coração de amante, que tantas vezes a presciencia illumina, alguma voz a aconselhar-me que me ausente da côrte?
— Não! — respondeu em tom seguro, scintillando-lhe os olhos, colorindo-se-lhe o rosto, alteando-se na sua figura esbelta. — Não! que jámais diria a um homem que é nobre, nobre d'alma, que fugisse ante a justiça da minha patria. El-rei D. João é o amigo do povo, tu nunca fizeste mal a este, elle não te fará mal a ti. Adevinha-me o coração que tens de arrostar um grande perigo. Mas vae, que o exige a honra! Contra a calumnia prevalecerá a innocencia: el-rei é justiceiro, e a Virgem será por nós!
E Maria declamou isto com tal enthusiasmo no gesto, com tanto fulgor nos olhos, com tamanha paixão na voz que D. Alvaro, arrebatado, tomou-a nos braços, estreitou-a ao seu coração, beijou-a na fronte e disse-lhe, affastando-se:
— És tu, filha do povo, que ensinas ao nobre a verdadeira nobreza! Adeus! Reza por mim á Rainha do Céo!
Coimbra, Março do 1862.
(1) Revista Contemporânea de Portugal e Brazil n.° 3, 1862
Informação relacionada:
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Pedro Alvarez de Sotomaior, conde de Camiña
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