segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Lisboa monumental em 1906

Lisboa monumental, ilustração, Alonso (Joaquim Guilherme Santos Silva, 1871 — 1948).
Imagem: Hemeroteca Digital

Os governos que teem sempre a construir, por essas terras e vilórias, edifícios pequenos para escolas, créches, etc., deveriam fazer executar de quando em quando algum d'estes projectosinhos sahidos das provas escoláres, e que o respectivo jury, reforçado por elementos das letras, todos os annos levasse á atenção das obras publicas e municípios [...].(1)

Fialho de Almeida, 1857 — 1911.
Imagem: ciberduvidas

Mas se é certa a teimosia dos commerciantes, por bronca, faz suspeitar que por trás d'ella alguma tramoia a Companhia Real fomenta e move, não menos descabida parece a ancia que tem os engenheiros da Sul e Sueste em querer construir a estação terminal nos aterros do caes jacente á alfandega, sem primeiro trazerem a linha de Cacilhas ou Almada, seu prolongamento logico ou natural.

Pois verdadeiramente se antolha que a pressa grande deva ser completar quanto antes a linha ferrea entresonhada, vazar as mercadoria d'embarque em caes fonteiros a Lisboa, pôr n'esses caes navios acostáveis desembarcando artigos que se destinam ao interior das terras d'além rio — dar pretexto emfim a que a nossa capital real outra margem se desdobre, e uma nova cidade, abrangendo desde o pontal de Cacilhas á Trafaria, lentamente alastre á beira d'agua, primeiro em armazens e fabricas e officinas, logo com casarias e ruas moradias, trepando as lombas dos morros, pinchando aos cimos, quando a afluencia de gente que necessariamente o caminho de ferro trará consigo, se juntar ess'outra que a mudança do Arsenal de marinha e officinas subsidiares, e ainda a da Escola Naval, sua consequencia immediata num futuro mais ou menos proximo certo virão concentrar na margem esquerda, frente á capital.

Lisboa monumental, ilustração, Alonso (Joaquim Guilherme Santos Silva, 1871 — 1948).
Imagem: Hemeroteca Digital

E tudo isto daria já para a nova cidade uma migração muito importante, que sommada com a vizinhança das villas e logares que enxameiam no aro d'entre Trafaria e Cacilhas póde determinar robustamento o inicio do faubúr novo, da outra grande Lisboa de forjas e martelos, a Lisboa fabril, erriçada de chaminés e fumos londrinos, mirando ameaçadoramente, dou outro lado da agua, a cidade-côrte, em seus volvos d'orgia, seus arquejos de gaz e de festanga — do outro lado d'agua, em cujo espelho o labyrintho dos steamers, ao mugir cavo das sereias, encheria de grandeza o porto formidavel.

Acumular portanto na outra margem a Lisboa commercial e fabril, de grande labuta e grande trafego; ir para essa margem empurrando, á formiga, muitas industrias que por Alcantara e Poço do Bispo funccionam no meio de bairros por ellas infectados; desobstruir por uma gradual e lenta transferencia, a beira-mar de Lisboa velha, dos hangares barracões e feios depositos de mercadorias que ali se ajuntam, vedando ao lisboeta de gemma a margem do seu Tejo: tudo isto significa um desiderato maravilhoso para a belleza da terra e methodisação hygienica da industria, ajudando o desenvolvimento rapido d'uma cidade que com pretensões a chave do Atlantico e paraiso de touristes, ainda não poude sahir das virtudes prohibitivas e velharias confusas de qualquer terra hespanhola ou brazileira.

Só quando a "Lisboa da outra banda" tomasse desenvolvimento uniforme de cidade, e as duas lisboas, direita e esquerda, desenroladas polas duas margens do rio, proclamassem a urgencia da sua homogenisação n'um todo idilico, é que a ideia da ponte ou pontes monumentais de 9:000 contos (que já começa a endoidar bestuntos da puericia mandante, amiga de exibicionismo) deveria ser posta a amadurar, conjunctamente coma do projecto de estação fluvial sul e sueste, cujas obras, a contrario do que oiço, não parecem por agora tão urgentes como a conclusão da via ferrea até Cacilhas ou Almada.

Lisboa monumental, ilustração, Alonso (Joaquim Guilherme Santos Silva, 1871 — 1948).
Imagem: Hemeroteca Digital

Varios, e em epocas differentes, desde 1880 para cá, teem sido os projectos de pontes sonhados para ligar a capital com amargem esquerda do Tejo.

É do folheto "Ainda a estação fluvial das linhas do sul e sueste" do sr. engenheiro A. Santos Viegas que extracto a enumeração desses projectos:

Em 1888, projecto do americano Lye: vinha a ponte d'Almada ao Thesouro Velho, e ahi ficava a estação de mercadorias do sul e sueste, com entrada pelo Largo das Duas Igrejas [Praça do Chiado]. "A este plano, acrescenta o sr. Santos Viegas, alvitra-se agora acrescentar elevadores que nas alturas do Caes do Sodré transportariam vagões entre a linha superior e a estação da companhia". Custaria de 8 a 10:000 contos.

Em 1889: projecto de Bartissol e Seyring [sic, Seyrig], fazendo da estação do Rocio a testa das linhas sul e sueste, quando ainda a companhia Real pensava d'açambarcar os caminhos de ferro do estado. Custava 9:000 contos, a que opinões meticulosas ajuntam mais 1:000 para expropriações.

Em 1890: projecto do engenheiro Proença Vieira, que iria de'Almada a um ponto ao norte da rocha do Conde de Óbidos, seguindo a linha ferrea até cêrca de Campolide. Custava 7:500 contos mas é possível que chegasse a muito mais, visto haver sítios do rio onde as fundações dos pilares iriam até 60 metros de fundo, e no projecto não se faziam calculos explicitamente rigorosos ácêrca d'essas fundações.

Depois de 1891 houve mais dois projectos. Um, do fallecido Miguel Paes, de todos os expostos o mais sensato sob o ponto de vista de ligação ferro-viaria, vinha do Pinhal Novo onde toda a rede do sul se acha reunida n'um tronco unico, o espigão do Montijo, e d'ahi por uma immensa ponte, aos Grillos, fóra da zona de grande navegação do Tejo. N'este sitio, teria a ponte muito menor importancia para a viação ordinária. A construcção seria mais facil, mas a extensão muito maior, devendo o custo exceder pouco mais de 4:000 contos.

Finalmente o ultimo projecto de travessia do Tejo era a concessão a uma empreza americana, d'uma ponte ara peões, carros, "tramways" electricos e caminhos de ferro, entre Almada e o bairro da Lapa, sem bases porem que permittissem avaliar da sua exiquibilidade.

O sr. Santos Viegas opina (e nós tambem) que a ideia Julio Vernesca da ponte sobre o Tejo deve deixar-se ás futuras gerações. Não que ella não represente um arrojado e utilissimo melhoramento, mas por ser devorante o custo, e não se devem adiar outras obras mais urgentes, como a da trazida do caminho dez ferro do sul a Cacilhasou Almada, e fundação da nova cidade da margem esquerda, em que urge desdobrar, o mais rapidamente possivel, a nossa actual Lisboa fabril e commercial.
Quanto mais présto essa via concluida, mais cedo começará, frente a Lisboa o centro de crystalização da nova cidade commercial e fabril que tanto urge.

D'ahi se o Arsenal de marinha sae, como pretendem, do seu forte edifício pombalino, deixará disponivel um cazarão enormissimo onde em qualquer canto os engenheiros do Sul e Sueste pódem talhar estação avóndo , e em ponto centrico, correndo-se por diante do edifício desde o Terreiro do Paço, cmo alguem ja propoz, uma arcada que alargue o transito da rua do Arsenal para peões, sem ser necessario recorrer a qualquer construcção moderna especial.

Fotografia aérea, destaca-se o Arsenal de Marinha, 1930 — 1932.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Não são das menos desagradaveis coisas da enseada maritima de Lisboa, essas montanha pardas da Outra Banda, sem arvores nem casas, e de cujas vertentes a cada passo esbarrondam terras contra o mar.

De ha muito, n'outro pais, essa margem sinistra estaria embelecida e arborizada, cortando-se nas gredas soltas, tratos de terra plana onde correr caes e fazer installações, cintando de muralhões o resto, e escalonando até ao cimo as terras altas, para as encher de zigue-zagues de estradas, entresachados de residencias de campo ou grandes fabricas.

Lisboa — Vista de Lisboa e Tejo, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

A cordilheira nua, com meia duzia de cazebres branquejando no amarello ruim das gredas soltas, tem uma apparencia de Africa maldita que ignobilisa o panorama, encarióca a cidade, dando dos instinctos paysagistas do luso uma ideia das mais frigidas para o conceito d'europeu civilizado que elle se dá ares de merecer. (2)


(1) Almeida, Fialho de, Illustração Portugueza, Lisboa Monumental I, Lisboa, 29 outubro 1906

(2) Almeida, Fialho de, Illustração Portugueza, Lisboa Monumental II, Lisboa, 19 novembro 1906

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