terça-feira, 24 de junho de 2014

O corredor do Ginjal

Pátio do Ginjal com vista enquadrada pelo vão de entrada.
Imagem: Gil, Ana Filipa da Costa, Projectar com o lugar. Indústrias criativas. Escola de artes cénicas do Ginjal, Faculdade de Arquitectura, Lisboa, 2010.

O cais do Ginjal foi mandado construir em 1860, quando presidia à edilidade almadense o dr. Francisco Inácio Lopes (1806 — 1893).

Planta do Rio Tejo e suas margens (detalhe), 1883.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Filho do concelho e médico de renome, este cidadão operou uma obra valiosíssiima na margem sul do Tejo.

Amigo pessoal do ministro do reino Fontes Pereira de Melo (1819 — 1887), e igualmente "regenerador", por duas vezes presidiu à Câmara Municipal de Almada [...]

Il molo di Cacilhas (Lisbona), parte II.
Vídeo: petrotubo

Assistir à construção de um bote reserva-nos grandes surpresas, pois ficamos a saber que se começa pela parte da embarcação que anda debaixo de água, como a quilha, o cavername e o costado.

Bote no Corredor do Ginjal.
Imagem: 

Há um ano, os três amigos aparelharam a madeira a golpes de serra e de plaina.

No domingo seguinte (eles só trabalhavam aos domingos) enterraram dois tacos de pinho na terra do barracão e sobre eles assentaram a comprida tábua da quilha.

Depois, fora um nunca acabar de enxó e de plaina para operar a curva das cavernas.

Houve ainda uma tarefa inicial muito penosa e demorada: aparelhar a linha da proa.

Esta fora arrancada a um tarolo cheio de nós e arrevesado.

Mas após uma manhã de luta contra a teimosia da madeira, dura que nem um corno, os três calafates acabaram por sair vitoriosos e erguer o nariz da bonita canoa.

Nasceu assim a proa da futura "Flor do Ginjal".

Corredor do Ginjal, Nuno Pinheiro, 1978.
Imagem: flickr

Esta obra estava a ser realizada no Corredor, nome de um lugar de passagem para as moradias do Marreta e do José Segundo, servindo ainda de caminho para a quinta da velha Elisa.

Corredor do Ginjal, acesso ao pátio.
Imagem: Correia, Romeu, O Tritão,.

O barracão onde carpinteiravam a "Flor" estava há anos abandonado, pois fora ali uma dependência da antiga tanoaria do Francisco de Cerca. (1)

Tanoaria Francisco da Cerca, corredor do Ginjal, 1900.
Imagem:   Correia, Romeu, Op. Cit.

O retiro do Luís dos Galos estava muito afreguesado.

Mesas colocadas no cais como era uso no Verão.

Os almoços de domingo eram sempre mais demorados, com os convivas em arrastadas conversas e discussões.

Já havia guitarras e violas sobre mesas e cadeiras, esperando a vez de serem dedilhadas.

Fadistas, Rafael Bordalo Pinheiro, 1877.
Gravura, João Pedroso.

Entrei e dirigi-me à cozinha, onde a tia Emilia preparava os petiscos.

Ela sorriu-me e perguntou-me:

— Já arranjaste trabalho?

— Ainda não, tia Emilia. Só para a semana volto à doca para saber a resposta.

— Deus queira, rapazinho.

— Isto está cada vez pior... — resmunguei.

Perto de nós, uma voz, rouca e irónica, meteu o bedelho na conversa.

— Quem está aí a dizer mal do nosso homem providencial?

Volto-me, assustado, acreditando mais uma vez no Porfírio, mas esbarro com o Carlos Pitocero.

O velho riu-se, fraterno, pousando a palma da mão sobre o meu ombro:

— É belo e reconfortante ouvir um jovem descrer da receita milagreira do tirano. Os velhos depositam as melhores esperanças na ressureição deste desgraçado povo. E cabe a vocês, com o sangue na guelra, descer à rua e lutar, lutar sem dar tréguas ao passado caquético e bolorento!... (2)


(1) Correia, Romeu, O Tritão, Lisboa, Editorial Notícias, 1982, 174 págs.

(2) Correia, Romeu, Cais do Ginjal, Lisboa, Editorial Notícias, 1989, 188 págs.

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