Familia de Romeu Correia no corredor do Ginjal, c. 1900. O Tritão, Editorial Notícias, 1982 |
Espaço da origem, o cais é ponto de chegada e de partida para considerações de carácter histórico e social. Romeu Correia parte da infância como lugar dum lirismo encantatório, e percorre, com grande espontaneidade e limpidez, os domínios problemáticos de uma identidade a construir-se.
A história familiar é o eixo efabulativo que coordena o discurso numa dupla vectorização. como relação de parentesco (a rispidez do pai/a ternura do avô), como memória de um espaço exterior atravessado por encantos e ameaças.
Assim, o lugar fechado da casa familiar, domínio da autoridade, alterna com o espaço fantástico do cais, aberto para a descoberta de um mundo outro, onde as ruas da gandaia, calcorreadas na proximidade secreta das coisas, conduzem ao espaço da aventura na quinta e ao lugar mítico da gruta, espaço de iniciação onde o velho Tomás, «sabichão dos sete mares e contador de histórias maravilhosas», revela às crianças pobres do Ginjal as fronteiras de uma cosmogonia fascinante.
Vistas Stereoscopicas de Lisboa, Panorama das Margens do Tejo. Delcampe |
Situado no centro do romance, o episódio eufórico da revelação do tritão ao menino deslumbrado, frente à enorme pedra do Tramocciro, surge como clímax de um percurso pontuado em seguida pela acumulação de situações disfóricas: a entrada na escola e a descoberta das estratégias de sobrevivência num espaço de opressão; o roubo das garrafas (passa-porte para o fantástico) como motivo de humilhação pública; a redução às dimensões do limitado de um avô explorado por patrões que lhe oferecem, simbolicamente, pelo Natal, restos de trajes de cerimónia; a desmistificação progressiva do espaço de liberdade e fantasia, em que o herói revelador de magias se transforma em títere medíocre e a casa da quinta é devorada pelo fogo, restando dela apenas uma valsa tocada pelas chamas, num momento fulgurante que enche de pânico o olhar, «o sangue dos presentes».
O núcleo dramático do romance, constituído a partir de tensões afectivas, morais e sociais, surge como uma encruzilhada de vidas, um entrelaçar de tempos sobre o tempo da personagem central e articula-se com o que poderíamos chamar uma estética da veracidade, um impulso para o verídico vivencial, corroborado pela presença da fotografia de família no fim da obra e a ilustração efectiva do espaço em que decorre a acção.
Organizando-se através de uma série de experiências e de uma relação triangular (menino-avô-Tomás), o romance cria uma dinamica narrativa que oscila entre a ho-rizontalidade do drama colectivo (a vida pobre, sempre igual, da gente do cais) e a verticalidade (ascensão e queda) de um imaginário decidido a não se deixar vencer pela brutalidade da vida.
Apesar de o Ginjal ser hoje um «lugar-fantasma», definido por atributos negativos, a «romagem sentimental» que o narrador aí efectua, nas últimas páginas da obra, levando o neto pela mão, é simultaneamente amargo balanço de uma vida (Hoje tenho sessenta e tal anos e sou o que os outros me obrigaram a ser... Um homem ajuizado, útil, domesticado») e afirmação de uma exigência de tempo habitado por essa prodigiosa capacidade de acreditar em sereias e tritões, de lavar os olhos nas fontes mais puras da criação humana.
A pedra do Tramoceiro.
O Tritão, Editorial Notícias, 1982
|
A «identidade de raciocínio» que o liga à criança que foi e ao rapazinho que o acompanha numa «noite ventosa de Outono» traduz bem a dimensão do futuro, que é decerto o lugar onde se inscreve a esperança.
Maria Graciete Besse (1)
(1) Colóquio/Letras, Romeu Correia, O Tritão, Editorial Notícias, 1983
Artigos relacionados:
Colóquio/Letras: Romeu Correia, Cais do Ginjal
Colóquio/Letras: Romeu Correia, A palmatória
Informação relacionada:
Colóquio/Letras, Romeu Correia, O Tritão, Editorial Notícias, 1983
Colóquio/Letras, Romeu Correia, Cais do Ginjal
Colóquio/Letras, Romeu Correia, Nicolau Tolentino em farsa
Tema:
Romeu Correia
Sem comentários:
Enviar um comentário