Cacilhas, Ginjal, Abel Manta (1886-1982), c. 1950. Museu Municipal de Abel Manta |
A notação temporal, o cunho biografista e rememorativo apontam, de imediato, para uma narrativa cronologicamente indiciada por etapas que funcionam como obstáculos a transpor pelo jovem de dezassete anos que em poucos meses vai descobrir, através de múltiplas peripécias, as contradições do seu sentir mais secreto, bem como o lento desabrochar de uma consciência social. No romance anterior, intitulado O Tritão e publicado em 1983 (ver nossa recensão in Colóquio/Letras n.° 81), Romeu Correia evocava já a realidade que encontramos na presente obra, mas a partir de uma óptica da infância.
O cais do Ginjal, lugar de origem, encantatório e rude, continua a ser o espaço dc construção da identidade, mas agora marcado por conflitos em que o individual se confunde com o colectivo. O eixo efabulativo constituído pelo romance familiar encontra aqui o seu pleno desenvolvimento, e embora deparemos com uma constante oposição entre lugares fechados (a casa, dominada pela avó e pelas tias solteiras, onde quase nunca se passa nada) e lugares abertos (o cais e o rio, onde se acumulam os eventos), a verdade é que, por vezes, estes espaços, tal como o sonho e a realidade, se confundem, para traduzir um entrelaçar de vidas a que o adolescente assiste com perplexidade toldada às vezes de breve inquietação.
O deslumbrante encontro com a Sereia, que o confunde com o defunto tio Raul, marca o ponto de partida da narração e aponta para a descoberta do desejo que vai atravessar todo o percurso do personagem.
Romeu Correia retratado por Fernando Lemos em 1949. Casario do Ginjal |
A tonalidade erótica deste acontecimento fundador («Ao mencionar os atractivos do meu corpo, acariciava com as mãos ásperas toda a minha pele. Tremia, tal a emoção que me inundava os sentidos», p. 14) acompanhará os sucessivos encontros com a ousada Ermelinda, operária de La Paloma, que lhe grita, despudoradamente: «Eu quero ficar prenha de ti, meu amor!» (p. 98) e a perturbante descoberta da sensualidade da criada do Costa, a Albertina «que punha os homens aos pulos» (p. 102) e o deixa «a ferver de desejo» (p. 103).
O alvoroço sexual conduz a uma forma de fusão com a mulher e com o Tejo, o qual funciona como cenário envolvente onde se inscrevem as lamentações da Sereia e os gritos de prazer do personagem («Em re-dor de nós havia o rio Tejo que, de súbito, começou a ficar iluminado de luar. Uma luz de prata envolvia-nos cada vez com maior intensidade. E logo um canto de dor e angústia chega aos meus sentidos, confundindo as palavrinhas meigas da Ermelinda. Todo o meu corpo arde de prazer, perco a noção exacta de onde me encontro, eu e a minha amante somos uma só pessoa, temos o mesmo sangue que nos percorre o espaço das nossas vidas. Sinto ganas de gritar, de gritar... até morrer por instantes», p. 136).
No entanto, esta experiência dc quase morte revela-se pujante de vida, pois é através de Ermelinda, inspiradora erótica, que se fará a passagem para o mundo adulto, quer através da implicação política, quer através do nascimento do filho que anuncia o futuro. A operária procede tacticamente a uma denúncia das condições sociais dos trabalhadores, alertando a incipiente consciência do adolescente para a realidade da exploração de que foi vítima o avô José Correia c, sobretudo, para as injustiças que o cercam: «Os operários trabalham toda a vida e quando morrem nem dinheiro existe, muitas vezes, para o enterro. E contra este estado de coisas, con-tra esta miserável exploração, que os meus lutam e sofrem» (p. 75).
Embora, no início, o medo o avassale, como à maioria dos habitantes de Cacilhas, que receiam «a pevide», muito rapidamente o seu ponto de vista se modifica e acaba por consentir a missão de correio clandestino.
A Sereia, elemento fantástico ligado aos sonhos da infanda, funciona, por vezes, como a consciência que o alerta para os perigos que o espreitam. Ela acaba por suicidar-se, no fim do romance, em frente da sua janela, revelando um tempo de ilusões que se dissipa. («Ela estava ali para me alertar da minha transformação, do meu crescimento», p. 188).
Romeu Correia retratado por Fernando Lemos em 1949. Museu Calouste Gulbenkian |
Assim, a obra começa e acaba com uma referência à Sereia. Entre estes dois tempos inscreve-se todo o percurso de uma aprendizagem cuja arquitectura desenha evolução individual e o desenrolar de pequenas peripécias que enchem de colorido a modorra do cais: a aventura desastrosa da saudação ao navio inglês, organizada por um almirante de pacotilha, as proezas do Armando Arrobas que mede forças com os rufias de Lisboa, a misteriosa sedução do Toninho da Arealva, o confronto desolador com o abandono dos pais, a evidência de que também o espaço mudava de pele («Por este tempo, Cacilhas parecia uma cobra a mudar a pele», p. 59).
A arte de contar de Romeu Correia faz assim desfilar, diante dos nossos olhos, com vivacidade e poesia, um tempo dilatado de metamorfoses e rumores que al-ternam com o silêncio do Tejo, sempre definido pelo fascínio.
Entre palpitações de medo e formas diversas de coragem, assistimos em Cais do Ginjal ao desenrolar de um percurso iniciático onde se inscreve a grande aventura de uma vida, mas onde lemos também as formas de pequenos destinos que se entrecruzam para dar um sentido à epígrafe inicial, embaladora e nostálgica: «Os seios da mãe são lembrados no peito da primeira mulher amada...»
Maria Graciete Besse
(1) Colóquio/Letras, Romeu Correia, Cais do Ginjal, Editorial Notícias, 1989
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Informação relacionada:
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Tema:
Romeu Correia
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