quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Joseph Schranz e o Tejo

Joseph, ou Giuseppe, Schranz (1803-1853) nasceu em Porto Mahón, Minorca, e foi um dos três filhos artistas do pintor Anton Schranz (1769-1839).

Uma fragata inglesa a chegar ao Tejo frente à Torre de Belém, com uma fragata portuguesa ancorada ao largo pela sua popa, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Mudou-se para Malta com os seus pais em 1818 e é sabido ter visitado Corfu pelo menos duas vezes, em 1826 com o seu irmão Giovanni (John, Johann), e novamente em 1840, altura em que fixou residência permanente em Constantinopla.

Numerosos trabalhos do artista foram vendidos em leilão, incluindo dois trabalhos vendidos pela Christie's King Street "Important Maritime Art" em 2007 por $105,660:

An English frigate arriving in the Tagus off the Belem Tower, with an anchored Portuguese frigate off her stern [Uma fragata inglesa a chegar ao Tejo frente à Torre de Belém, com uma fragata portuguesa ancorada ao largo pela sua popa];

An English frigate hove-to off the southern bank of the Tagus with small craft nearby [Uma fragata inglesa de través frente à margem sul do Tejo com pequenas embarcações nas proximidades].

Uma fragata inglesa de través frente à margem sul do Tejo com pequenas embarcações nas proximidades, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Possivelmente o melhor da familia Schranz de artistas, pintou com meticulosa atenção An Extensive View of Lisbon on the River Tejo with the Praça Do Terreiro Do Paço, the Old Cathedral and the Castelo de S. Jorge [Uma extensa vista de Lisboa no rio Tejo com a praça do Terreiro do Paço, a velha catedral e o castelo de S. Jorge].

Uma extensa vista de Lisboa no rio Tejo com a praça do Terreiro do Paço, a velha catedral e o castelo de S. Jorge, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
Imagem: MAGNOLIA BOX


Fontes:
CHRISTIE'S
MAGNOLIA BOX

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Lisboa no anno 2000

De bom grado olhamos para o passado de Portugal [...]


Lisboa era o ponto de reunião de todas as marinhas do mundo inteiro [...]


Uma série de V invertidos de cujo vértice pendia um carril a que se suspendiam as carruagens que constituiam o comboio, davam um aspecto curioso ás ruas [...]


A Trafaria estava transformada num grande centro industrial. Tinha vinte e cinco fábricas de conservas de peixe. Desde o alto de Murfacém, da Torre, do Pragal até à margem esquerda do Tejo só fábricas é que se viam [...] (1)


Para atravessar aquele emaranhado de linhas estabeleceram-se transportadores aéreos, que conduziam os passageiros aos diversos cais de mercadorias [...]


Onde contudo se podia presenciar a labuta de todos os cais era de uma torre de aço com a forma de sólido de igual resistência, de base quadrangualar e de 350 metros de altura [...]


O empregado do armazém disse dois algarismos e logo sem demora apareceu no quedro "telefotográfico" a imagem do vendedor [...] (2)


Todo o edifício dizia que o relógio era a razão de ser daquela obra, como que o coração e o cérebro e o mesmo tempo daquele momento [...] (3)


Entretanto a 5 de Junho de 1994, inaugurava-se solenemente a estação subterrânea de Lisboa nas Linhas do sul [...]


Bastaram três minutos para que o comboio parasse na estação do Seixal [...] (4)


(1) Mattos, Mello de, Illustração Portugueza, Lisboa no anno 2000, Lisboa, 26 março 1906
(2) Mattos, Mello de, Illustração Portugueza, Lisboa no anno 2000, Lisboa, 2 abril 1906
(3) Mattos, Mello de, Illustração Portugueza, Lisboa no anno 2000, Lisboa, 9 abril 1906
(4) Mattos, Mello de, Illustração Portugueza, Lisboa no anno 2000, Lisboa, 16 abril 1906

Artigos relacionados:
Lisboa monumental em 1906
Projecto de travessia do Tejo em 1889
A ponte

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Escolas por onde passei

Estávamos em 1955 chegou o dia 8 de Outubro, primeiro dia de aulas, para a maioria era a primeira vez, havia outros que eram repetentes, estávamos na primeira classe, íamos aprender a ler e a escrever, coisa que não tinha acontecido com muitas gerações anteriores á nossa, uns por necessidades das famílias, foram obrigados a ir trabalhar muito cedo para ajudarem em casa, outros não queriam aprender e fugiam da escola.

Aniki-Bóbó, Manuel de Oliveira, 1942.
Imagem: HARVARD FILM ARCHIVE

Nesse dia lá estávamos todos preparados para o arranque de uma nova vida, uns levavam batas brancas outros com a sua roupa normal acompanhados pelo tradicional caderno de duas linhas, uma ardósia, um lápis e uma borracha, material essencial para o arranque do ano lectivo.

Almada, escola Conde de Ferreira,  1954 - 1955.
Imagem: almaDalmada

Muitos daqueles meninos já os conhecíamos de vista mas não tínhamos muita aproximação, a partir daquele dia criámos fortes amizades, algumas chegaram até ao dia em que estou a escrever estas linhas.

LIVRO DA PRIMEIRA CLASSE, ed. 1954.
Imagem: Restos de Colecção

Eram rapazes da Romeira, das Barrocas, da Praceta, do Brejo, do Chegadinho (Alagoa), do Bairro, da Ramalha, da Mutela, do Altinho e do centro da Cova da Piedade, eram lugares da freguesia (fundada em 7 de Fevereiro de 1928).

Antes da uma hora já estavam todos junto á escola á espera do professor neste caso foi uma professora a D. Ilda era uma senhora com cerca de 50 anos já tinha alguns cabelos grisalhos de estatura média um pouco para o forte e com uma voz muito suave logo nos cumprimentou e deu ordem para entrarmos para a sala de aula, a escola funcionava numa vivenda, era uma escola provisória (Escola do Posto) e assim se manteve durante muitos anos até á sua extinção, por ali passaram centenas de rapazes que aprenderam a ler e a escrever, a escola ficava na actual Rua Pedro Matos Filipe junto da drogaria do Hermínio (o Hermínio era um homem alto e forte era do Pragal e falava muito alto), fazia esquina com a Av. da Fundação hoje o local está em degradação total.

Cova da Piedade, escola do Bairro das Casas Económicas, c. 1968.
Imagem: Eleutério L. M. Varela

Ainda não tínhamos os lugares marcados éramos cerca de trinta alunos sentámo-nos no lugar que estivesse vago e por ultimo entrou a Senhora Professora D. Ilda. Deu-nos as boas-vindas e falou das normas que teríamos de respeitar durante o período das aulas, a forma como nos devíamos comportar ao entrar e á saída da escola assim como durante as aulas, este primeiro dia foi de apresentação ficamos a saber o nome de cada um dos companheiros.

Lembro o João de Deus e o irmão que era deficiente e grande passarinheiro, o Canina, o Vítor Henriques, José Francisco, O Borrego, o Vítor (gordo) morava em frente á escola, o João (Soneca), o Morgado, o Câmara, o Funileiro, o Ferreira, o José Martins Vieira foi jogador do Desportivo e seu capitão e músico na SFUAP (mais tarde foi o 1º. Presidente da Câmara Municipal de Almada após o 25 de Abril de 1974), o Pereira, o Mário, o Alberto (Massaroca), o Diniz, o Zeca (Sardinha) (foi um óptimo cantor em diversos conjuntos musicais) ainda hoje canta, o Jorge Alberto Roseiro (Laica), o Campos e eu próprio (Alberto Jorge) e outros que não me vem á memoria.

Almada, alunos da Escola Conde de Ferreira, c. 1948.
Imagem: Antigos Alunos da Escola Conde Ferreira - Almada no Facebook

É mesmo curioso um Jorge Alberto e um Alberto Jorge na primeira classe, o destino estava marcado ao sermos companheiros de carteira com os nomes trocados, ainda hoje somos bons amigos.

Foram os primeiros passos na nossa aprendizagem e como eles foram importantes para a nossa formação. Até fazermos a 4ª Classe ainda passamos por outras escolas, algumas sem condições mas era o que havia naquele tempo, as escolas não eram mistas ou seja dum lado a escola das meninas do outro lado os rapazes, tivemos aulas na escola das meninas que ainda hoje existe na Av. da Fundação era a única classe de rapazes que havia naquela escola (tivemos só um ano por falta de salas), também frequentamos a escola das meninas que ainda existe no Bairro da Nossa Senhora da Piedade (Escola do Bairro) (por pouco tempo), estivemos na Escola do Gomes com o Prof. Leitão que era o director da escola e vivia no primeiro andar da mesma e por ultimo frequentamos a velhinha Escola do Brejo que hoje já não existe, era perto das bombas de gasolinas que hoje ali existem e do Estádio José Martins Vieira (Campo do Desportivo).

Escola Primária António José Gomes, inaugurada em 1911, projecto do arquitecto Adães Bermudes.
Imagem: Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial

Lembro-me do velho pátio que servia de recreio á escola, a sala de aula ficava no primeiro andar (chovia lá dentro como na rua) tínhamos que subir uma enorme escadaria para entrar na escola, em tempo de chuva a azinhaga do Brejo enchia-se de água, ali perto ficava uma mercearia conhecida pelo Armazém, aí entroncava uma azinhaga que ia para o campo do Desportivo (Campo Silva Nunes) também ela ficava alagada com as chuvadas da época, os Invernos eram intensivos e muito prolongados, lembro que muitas vezes ajudamos a desentupir as saídas das águas e quando chegávamos á escola estávamos completamente encharcados logo a professora nos mandava para casa para mudarmos de roupa, nesse dia já não voltávamos á escola, tínhamos mais tempo para a brincadeira.

Cova da Piedade, Azinhaga do Brejo, edifício da Escola do Brejo, década de 1980.
Imagem: José Luis Covita

Depois chegou altura de fazermos o exame da 4ª. Classe fomos fazê-lo á Escola do Campo em Almada junto do Cemitério da Vila, ao completarmos a instrução primária fizemos a admissão á escola técnica, o exame foi na Escola António da Costa na Rua D. João I em Almada, já no Ciclo Preparatório e como as instalações eram pequenas fomos colocados na Escola Emídio Navarro (já tem mais de cinquenta anos) junto da antiga azinhaga de Mata Cães e perto dos Caranguejais um bairro de lata que ali existia (hoje existe a Escola António da Costa e o Teatro Municipal), nesse local havia um fabrico de cortiça do Jacinto do Carmo Marques que foi jogador do Liberdade-Mutela e do Benfica um dos vencedores da Taça Latina, frequentamos o ciclo preparatório nessa escola e continuamos na Emídio Navarro (O seu patrono foi Ministro das Obras Publicas, morreu em 1905) a frequentar o Curso Geral do Comercio já no período da noite porque era hora de começar a trabalhar.

Em 2.° plano a Escola Prepatória D. António da Costa no dia 25 de abril de 1975.
Imagem: almaDalmada

Quero deixar uma homenagem muito sentida á Professora D.Ilda (infelizmente já desaparecida) que me ensinou a ler e a escrever assim como a muitas centenas de meninos como eu, onde ela estiver o meu reconhecido obrigado.

Hoje ao escrever sobre as minhas escolas, é importante dar a conhecer aos vindouros os locais das escolas que frequentamos e os amigos que criamos num tempo em que as dificuldades eram enormes.

Na esquerda mão um livro me pintaste,
Na outra a palmatória,
Com carregado, ríspido focinho,
Dictando leis em tribunal de pinho.

Imagem: Obras completas de Nicolau Tolentino de Almeida

Hoje, tudo é mais fácil, só quero dizer aos mais novos que aproveitem as óptimas condições que lhes são oferecidas e que gostem da vossa escola como eu gostei da minha. (1)


(1) Uma história por Alberto Silva

Artigos relacionados:
A escola da dona Assunção
SFUAP, origens, teatro e escola
Clube Desportivo da Cova da Piedade


Mais informação:
Ensino Primário

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Os Simples

O melhor Carnaval com o conjunto musical Os Simples, Clube de Instrução e Recreio do Laranjeiro, 1975.
Imagem: Carlos Cunha

in Internet Archive
Os Simples nasceram em 1973 na Trafaria e com músicos maioritariamente da Trafaria que faziam música em vários grupos.

Os Simples, banda musical da Trafaria, década de 1970.
Imagem: Mais um blog inútil.

A formação que, em minha opinião, teve imensa qualidade (para a altura) e eventualmente o maior sucesso.

Bateria: Dário
Baixo: Manuel José
Metais: Carlos Oliveira ("China") e Manuel Eixa
Teclas: José Carlos
Guitarra: Matos (jovem guitarrista que posteriormente ingressou como viola baixo nos "UHF" de grande talento)
Cantor: Jorge Gomes (tinha deixado os "6 de Portugal")


Os Simples, banda musical da Trafaria, década de 1970.
Imagem: Mais um blog inútil.

in Internet Archive

[...] recordar todos estes temas que foram tocados num dia de ensaios num das garagens dos Bombeiros Voluntários da Trafaria, 

Trafaria, Quartel dos Bombeiros Voluntários.

o grupo na altura era o Manuel Eixa no Saxofone Alto e vozes, eu Carlos Oliveira no Trompete e vozes, o Manuel José no Baixo Eléctrico, O Dário (que tinha uns óculos de fundo de garrafa) na Bateria, o "Resmembas" (desculpa meu amigo mas esqueci o teu nome) no Orgão Fender Rhodes com "Leslie", a ultima tecnologia em teclas na altura, e o Victor na Voz principal [...]

Os Simples, banda musical da Trafaria, década de 1970.
Imagem: Mais um blog inútil.

Com diversas formações durou até ao princípio da década de 80. Da última constituição ainda saiu a formação do TATOO. (1)


(1) Mais um blog inútil.

domingo, 20 de setembro de 2015

Uma arribada em calma branca


UM dia de dezembro, um soberbo dia de dezembro no nosso paiz é, para mim, o ideal da belleza diurna de todas as quadras do anno.

Não tem os relvões esmaltados, pomares floridos, searas ondeantes, gorgear de ninhos como na primavera; nem os vinhedos colmados de cachos, o trigo loiro, sombras remorosas de arvores de fructos opimos como o verão e o outono.

Mas tem o pungir virginal da esperança nas folhas das terras lavradias, os cristaes serpentinos dos córregos e algares, as veias prateadas dos ribeiros e as calhandras aos paires pelos ares.

Vem abrindo a manhã; é rápido o crepúsculo; o norte brando e límpido menea a coma flexivel dos pinheiros bravos; o azul do ceu carregado como o dos Apeninos, o sol, incendiado, resae da orla do nascente, os diamantes da geada á fíor da terra, e na rede das arvores desfolhadas. Na esphera immaculada, no ar luminoso e vivificador a suprema formosura, annunciando, no poder latente da natureza, os dias prósperos do futuro.

Foi n'uma d'essas madrugadas inolvidáveis de dezembro, em 1877, que eu sahi a bater os montados da Rosa e da Oliva. Na volta á Trafaria, encontrei de improviso Júlio Mardel. Vi nha com um rapaz que eu conhecia — Lúcio do Sacramento — regente agrícola, protegido de Simões Margiochi.

*

Duas palavras sobre Júlio Mardel.

Conheci-o no berço. Não ha ninguém de certa roda e certa edade, que o não conheça e o não aprecie no muito que vale. O que nem todos podem calcular é o que elle foi em pequeno. Não conheci na minha longa vida criança egual.

Tinha conceitos, replicas brilhantes — algumas já correm impressas. Quando convinha, guardava a compostura de um homem feito. Era tal a vivacidade, o talento a borbotões, que sahia d'aquelle cérebro infantil, que in fundia mais do que espanto; quasi medo!

A precocidade assombrosa, reunia a simplesa e as graças da puerícia. Um dia, teria elle dez annos, levei-o a jantar a casa de Rebello da Silva. Vinha galantíssimo; todo de veludo preto, e trajando com o bom gosto peculiar n'aquella excepcional familia.

Por essa época, o eminente escriptor e orador recebia ás quintas, e domingos, a jantar, os seus íntimos: Rodrigo Felner, A. Xavier Rodrigues Cordeiro, Francisco Maria Bordallo, António Pedro Lopes de Mendonça.

Alexandre Herculano nas quintas era quasi sempre certo. N'esse tempo morava Rebello na rua de S. Bento, próximo á travessa de Santo Amaro. Ao lado vivia Latino Coelho, e em frente João de Andrade Corvo.

Corvo, também não raro, vinha jantar; Latino, abstemio como um anachoreta, apenas apparecia ás noites.

Com taes convivas, pôde calcular-se como corria o tempo, e talvez devesse tomar-se como leviandade minha levar um pequeno, que mal teria dez annos, a passar largas horas com homens d'aquelles. Pois encantou e maravilhou a todos.

Pena foi, di-lo-ei, pena foi, que apesar do que vale, Júlio Mardel não hou vesse desenvolvido mais profusamente, n'um estudo methodico e aturado, as poderosas faculdades do seu engenho nativo.

*

A canoa, que havia de transportar-nos a Lisboa, era tripulada por três rapazes braceiros e pelo velho mestre Casaca já entrado em annos, porém robusto ainda. Os meus companheiros de viagem: Júlio, Lúcio e meu afilhado António Tovas.

Quatro remeiros para atravessar o Tejo em noite plenamente calma e n'um dos pontos mais estreitos do rio, talvez pareçam de sobra. E que as aguas do monte vinham de tal modo arrebatadas que próximo á barra eram doces.

As chuvas do outono haviam sido caudaes.

Júlio Mardel, ao pôr os pés no barco, invocou o grande épico, exclamando:

"Oh! mal haja o primeiro que no mundo
Nas ondas vela poz um secco lenho!" [Camões, Luis de, Os Lusíadas, Canto IV, Estância 152]

E commentou o texto, declarando que não havia homem em todo o universo mais poltrão do que elle no mar.

Vendo, porém, a tranquilidade da noite, continuou dando largas á veia inexgotavel da sua faiscante palavra.

Mettemos ao rez do Almarás, montes que vão da Trafaria ao Pontal de Cacilhas.

*

A tarde findava. A lua, em fogo, como o sol posto, levantava-se do nascente.

Momento que raras vezes, sob um céu diaphano e luminoso, logram apanhar os que adoram os painéis inimitáveis da natureza no incomparável rio do nosso paiz.

Como descrever os tons das aguas, dos horisontes, onde a mancha de rubim vae cambiando na violeta da amethysta; os picos de Cintra, como ondulando, a desapparecer na penumbra do occidente, a cidade a envolver-se no veu da neblina crepuscular!

Não ha tintas, nem linhas, nem arte de génio humano que possam reproduzir com o pincel, com a palavra, com todo o vago e intenso das próprias partituras, a maravilha arrebatadora!

A alma do admirador enternece-se, extasia-se, abysma-se na contemplação momentânea do indisivel quadro!

*

Tinhamos embarcado havia largo espaço. Nos vãos, recôncavos, grutas e largas fendas d'aquelles rochedos, o ímpeto da corrente dava uns rugidos surdos e sinistros, contrastando singularmente com a funda e majestosa serenidade da noite.

Júlio Mardel emmudeceu. Os remadores, arrancando com alma, procuravam chegar a uma altura que lhes permittisse descair no caes de Belém.

Ao cabo de mais uma hora, supondo momento propicio, tentaram a travessia. A poucas remadas entravamos no fio da corrente.

O barco a descair a olhos vistos. Os homens redobrando na faina, Mar estanhado, porém a ondulação, que vinha do largo, augmentava.

Ouvia-se já distinctamenteo som pesado da vaga nos cachopos da barra:

"Como o confuso bramar
D'um mar ao longe movido. 
Que á praia vem rebentar" [Garrett, Almeida, Folhas Caídas]

Ninguém proferia palavra.

N'isto, um dos remeiros d'estibordo levou a mão á cabeça, e tirando o barrete disse, suffocado de afflicção:

— Nossa Senhora do Cabo!

Os outros responderam sombriamente:

— Nossa Senhora do Cabo!

O mais leve esmorecimento era a perdição. Se o barco desse a popa á corrente, em poucos minutos estávamos todos perdidos.

Então, com a energia dos momentos supremos, acudi aos dois canos da minha espingarda.

Quando saltámos em terra...
A disciplina restabeleceu-se. 

O pânico passou. 

Os rapazes, resolutos e vigorosos, arrependidos e envergonhados d'um momento de fraqueza, com a alma de marítimos portuguezes, atiraram-se ao punho dos remos de voga arrancada, e, soando em grossas bagas, lograram tomar a revessa, e deitaram-nos adiante do Dá Fundo.

Quando saltámos em terra, os calhaus da praia pareceram-nos tapis da Pérsia.

As estrellas no ceu profundo, desvanecidas com o luar esplendido; na superfície espelhada do Tejo e, barra-fóra, a tremulina.

Encanto ethéreo de noite e de mar! 

O mar, porém, embora manso como cordeiro, é sempre pérfido e tigrino.


*

Mettemos caminho de Belém. 

Os Jerónimos inundados de luz nas linhas altivas e elegantes. Nós, perdido o senso esthetico, não tinhamos olhos senão para ver se estava allumiada ainda a casa de pasto do Caçador d'El-rei, João Lourenço, por antonomásia — o João da Burra.

Estava e tinha a canja de gallinha, a sua cosinha á portugueza e o trato fino e polido da sua pessoa opulenta de formas e sympathica. Também se foi na força da vida.

Eu não lamento a solidão dos velhos. Os velhos sempre teem alguns vivos, e sempre uma legião de mortos!

Dos meus companheiros d'aquella notável travessia. Lúcio do Sacramento sucumbiu ha muito. Júlio Mardel, e meu afilhado António Maria Tovas, estão vivos, e Deus os conserve!

Monte de Caparica, Torre. Outubro, 25 — 1906 (1)



(1) Bulhão Pato, Raimundo António de, Uma arribada em calma branca

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Do Vale da Enxurrada à Foz do Rego

Das recentes dissertações que nos referem (2 de 2)

A área de estudo é limitada a norte pela linha de costa da frente ribeirinha, a este pela Vala da Enxurrada que desagua no Rio Tejo e que limita assim a área de intervenção na vila da Trafaria, bem como é limitada pela área de intervenção específica da faixa de proteção à Arriba Fóssil da Costa de Caparica (faixa de 70 metros para o interior a contar da crista da arriba, segundo a Resolução do Concelho de Ministros nº178/2008, 24 de Novembro), a sul é limitada igualmente por uma linha de água, a Ribeira da Foz do Rego e a oeste é limitada pela linha de costa na frente oceânica.

Trafaria, Valle da Enxurrada, ed. J. Quirino Rocha, 3, década de 1900.
Imagem: Delcampe

A Arriba Fóssil da Costa de Caparica foi classificada como área protegida segundo o Decreto-Lei nº 168/84, de 22 de Maio, pelo seu excecional valor paisagístico, geológico e geomorfológico.

Costa da Caparica, vista da Quinta de Santo António e da Mata Florestal, tomada do Alto do Robalo, década de 1930.
Imagem: ed. desc.

Para além de diversos estratos de camadas subhorizontais de rochas sedimentares, de conteúdo fossilífero e de origem flúvio-marinha, a área da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa de Caparica é igualmente uma reserva botânica de elevado interesse, a Mata Nacional dos Medos, classificada segundo o Decreto-Lei nº 444/71, de 23 de Outubro.

Escarpements formés par le Miocène et Pliocène entre Costa de Caparica et Adissa [Adiça], cliché P Choffat, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

A paisagem protegida que compreende parte da arriba fóssil estende-se por 13 km na plataforma litoral, desde a Costa de Caparica à Lagoa de Albufeira e tem uma superfície aproximada de 1599 hectares. (1)



(1) Oliveira, Marta N. S. C., Evolução Natural e Antrópica Trafaria - Cova do Vapor - Costa de Caparica, Lisboa, UL, 2015

Temas:
Costa da Caparica
Trafaria

Informação relacionada:
Almada, entre o Rio e o Mar
Vídeo: cmalmada

Almada - Banhada por um Mar de histórias
Vídeo: cmalmada

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Art Deco

Das recentes dissertações que nos referem (1 de 2)

Art Deco: estilo que surgiu na década de 1920 ganhando força nos anos 30 na Europa e na América do Norte e do Sul e que abrangeu a moda, a arquitectura, as artes plásticas, o design gráfico, a tipografia e o design industrial.

Ilustração de Cassiano Branco, L'Illustration 4963, 16 April 1938.
Imagem: Old french Adverts

O estilo deve o seu nome à Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais modernas (em francês: Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes), realizada em Paris, em 1925.

Fasten Your Seat Belt, Stephan Paris, 2010.
Imagem: DeviantArt

Essencialmente era um estilo decorativo que combinava luxo, e ornamentação formal, e que apresentava cores discretas, traços sintéticos, formas estilizadas ou geométricas.

Costa da Caparica, vista aérea, 1930 — 1932.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A aproximação da construção à área costeira limitou a forma de ver a possibilidade e potencialidades locais de crescimento urbano, resultando em aglomerados habitacionais próximos da praia, por vezes até de uma forma potencialmente perigosa.

Costa de Caparica, Praia Atlântico.
Pormenor de Solução Urbanística, Cassiano Branco, Arquitecto, 1930.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Por estas razões talvez o plano de Cassiano Branco fosse utópico para a época mas também será verdade afirmar que seria em muitos aspectos um plano actual, realista caso tivesse sido implementado, atribuído um rumo bem diferente àquela região.

Breakwater Hotel, South Miami Beach.
Imagem: Art Deco Tours

Observemos então a proposta de Cassiano Branco ou o postal e, a partir dele, desenvolvemos algumas reflexões, necessariamente especulativas essencialmente porque não existem textos que acompanhem a reflexão sobre o território, que pretendem descodificar as motivações, compreender os enquadramentos e comentar um desejo de uma nova cidade.

Hotel, Pormenor de Solução Urbanística, Cassiano Branco, Arquitecto, 1934.
Imagem: Costa da Caparica: de Cassiano Branco à realidade

O postal que representa uma proposta utópica para a Costa da Caparica, que seguramente não é somente um simples postal, prefigura uma cidade de lazer, particularmente apetrechada com equipamentos desportivos, lúdicos e culturais, que também, seguramente, não são imagem de Portugal dos anos 30, como não é igualmente representativa das tendências urbanísticas impostas pelo Estado-Novo.

Casino, Pormenor de Solução Urbanística, Cassiano Branco, Arquitecto, 1934.
Imagem: Costa da Caparica: de Cassiano Branco à realidade

Efectivamente, só na década seguinte se realizaram em Portugal alguns Planos de Urbanização de algumas estâncias de férias do litoral, cujos programas são quase exclusivamente a habitação unifamiliar, o hotel, o mercado e a igreja, não tendo contudo um caracter tão abrangente no território como o Plano da Costa da Caparica de Cassiano Branco.

Costa da Caparica, Hotel Praia do Sol, ed. Passaporte, 10, década de 1950.
Imagem: Delcampe

Refira-se uma vez mais que os limites deste plano não são claros mas, referenciando a extensão da Arriba Fóssil, quase que podemos afirmar que ele se estende desde a Costa da Caparica até à zona da Fonte-da-Telha.

Costa da Caparica, ed. Gama Freixo.
Imagem: Delcampe

São propostas registadas em planta que apresentam uma estrutura viária disciplinada e hierarquizada em função de pequenas rotundas ou praças, à qual corresponde também uma hierarquização do programa.

Costa da Caparica, ed. Gama Freixo.
Imagem: Delcampe

Prevalece um cenário de Cidade-Jardim muitas vezes associado à intenção de preservação e aproveitamento do património vegetal pré-existente.

Costa da Caparica, Miradouro dos Capuchos e Caparica, ed. Passaporte, 39, década de 1950.
Imagem: Delcampe, Oliveira

A cidade jardim é um modelo de cidade concebido por Ebenezer Howard, no final do Séc. XIX, consistindo em uma comunidade autónoma cercada por um cinturão verde num meio-termo entre campo e cidade.

San Alfonso del Mar Crystal Lagoon, Algarrobo, Chile.
Imagem: Mail Online

A ideia era aproveitar as vantagens do campo eliminando as desvantagens da grande cidade, mas nem sempre pode ser um sinónimo de eco-cidade. (1)

Costa da Caparica, vista aérea, c. 1980.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard


(1) Rufino, A. M. A. C. P, Costa da Caparica: de Cassiano Branco à realidade, Lisboa, , 2014

Artigos relacionados:
Costa da Caparica — urbanismos
A ponte

Informação relacionada:
Arquivo RTP: Vida & Obra de Cassiano Branco

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Os festejos de 24 de julho de 1874

Para ampliar a commemoração histórica, que se comprehende no capitulo antecedente, darei em seguida o programma da primeira grande commissão organisada em Lisboa para os festejos de 24 de julho e a relação d'esses festejos, relativa a 1874, e copiada de Diário de Noticias n.° 3:037, do dito anno. 

Sede do Diário de Noticias, fundado em 1864, na antiga rua dos Calafates no edifício da Typographia Universal in Edição comemorativa do cincoentenário do Diario de Notícias
Imagem: Hemeroteca Digital

Á falta de informação mais minuciosa e completa, quando menos far-se-ha idéa do modo como o povo liberal relembra tamanho facto histórico, e aqui ficará tal registo.

Programma dos festejos do dia 24 de julho, anniversario da entrada do exercito libertador em Lisboa

1.° No dia 23 de julho, celebrar-se-ha na egreja dos Martyres, pelas 11 horas da manhã, uma missa commemorativa, por aquelles portuguezes que succumbiram nas lactas politicas, travadas no paiz, e que terminaram em 1834.

2.° Ao romper da aurora no dia 24 de julho, subirão ao ar 6 girandolas de foguetes em cada uma das freguezias da captal, içando-se a bandeira nacional por essa occasião nas torres das respectivas egrejas.

Estandarte Liberal, Bandeira nacional de Portugal de 1830 a 1910.
Imagem: Wikipédia

3.° A uma hora da tarde haverá um solemne Te-Deum na egreja de Santa Justa e Rufina (S. Domingos) findo o qual, a grande commissào encamínhar-se-ha ao tumulo do duque da Terceira, e sobre elle deporá uma coroa.

4.° Convidar-se-hão as philarmonicas de Lisboa para ao romper do dia 24, tocarem o hymno nacional na praça de D. Pedro, junto da estatua, percorrerem as ruas da cidade, e fixarem-se nas primeiras praças e largos mais importantes, durante a noite.

5.° O passeio do Rocio será gratuitamente franquiado nessa noite, onde tocarão 3 bandas de musica.

Illuminação do Passeio Publico, litografia A. S. Castro, 1851.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

6.° Dar-se-ha no dia 24 um jantar aos presos das cadeias civis de Lisboa.

7.° Serão convidados todos os habitantes da capital a illuminarem exteriormente as suas casas na noite de 24 de julho.

8.° Solicitar-se-ha da empresa dos theatros espectáculos gratuitos na mesma noite.

Antigo Circo Price, demolido para a abertura da avenida da Liberdade, desenho do natural por Casellas in O Occidente 1883.
Imagem: Hemeroteca Digital

9.° Pedir-se ha ao governo de sua magestade que declare de grande gala o dia 24 de julho para sempre.

10.° O ex.mo duque de Loulé, presidente da grande commissão eleita em reunião popular de 14 do corrente mez, será encarregado de dar conhecimento do presente programma a sua magestade el-rei, significando-lhe o desejo que a commissâo tem de que o chefe augusto do Estado e e toda a família real assistam ás solemnidades religiosas dos dias 23 e 24 de julho.

Nuno J. S. de M. R. de M. Barreto (1804-1875), 1.° duque de Loulé.
Imagem: Wikipédia

11.° Rogar-se-ha ao em.mo patriarcha, que presida aos actos religiosos dos dias 23 e 24.

12.° Serão convidados pela imprensa o ministério, os membros do corpo legislativo, os veteranos da liberdade, os ajudantes do imperador e do duque da Terceira, os tribunaes, a imprensa, a ex.a camara municipal de Lisboa, todas as auctoridades, as corporações e as associações, para assistirem ás solemnidades dos dias 23 e 24, ou fazerem-se n'ellas representar.

13.° A commissão dará conhecimento d'este programma aos ex.o presidente do conselho de ministros e ministro do reino.

Lisboa, 17 de julho de 1872. — João António dos Santos e Silva, Joaquim Possidonio Narciso da Silva, José Ribeiro da Cunha, João Manuel Gonçalves, António de Nascimento Rozendo, Visconde dos Olivaes, Manuel José Mendes, Manuel Patricio Alvares, José Baptista d'Andrade.

Palacete Ribeiro da Cunha, em estilo neomourisco desenhado por Carlos Affonso, 1877.
Imagem: Olhai Lisboa

Começaram e terminaram os festejos commemorativoa de 24 de julho mais concorridos e mais brilhantes que nunca, sem que occorressem desordens, nem desaguisados em tão numerosos ajuntamentos como os que se viram; nem que cousa alguma viesse empanar-lhes o vivo esplendor.

O povo demonstrou, nas suas manifestações espontâneas, pacificas e enthusiasticas, que ama a liberdade e a deseja manter: e um povo assim, é digno d'ella. Registaremos aqui, pois, mais esta pagina de affirmação aos sentimentos liberaes que tão enraizados estão na capital, como em todo o reino.

Apesar de se haver combinado que só se lançariam ao ar foguetes quando desse a salva no castello de S. Jorge, durante a noite de 23 para 24, e em diversos pontos da cidade, se ouviram vivas á liberdade e o estalar amiudado, e quasi sem interrupção, do fogo festival, principalmente no Rocio, onde alguns grupos queimaram fogo de sala.

Ao romper da aurora, deu o castello a salva costumada e de todos os largos e praças subiram aos ares girandolas sem conta, tocando as philarmonicas em algumas praças e por diíterentes ruas, e as bandas regimentaes ás portas dos respectivos quartéis.

Vista oriental de Lisboa tomada do jardim de S. Pedro de Alcântara, 1844.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Muito antes de nascer o dia, já estavam na praça de D. Pedro IV, e em volta do monumento, onde tinham accendido os fogachos de gaz, milhares e milhares de pessoas. Tinham vindo alli, para a alvorada as musicas de infanteria 11 e de caçadores 6, depois vieram a dos bombeiros e da viuva Roxo.

Inauguração da estátua de D Pedro IV em 1870.
Imagem: Wikipédia

A sociedade Recreio Artístico, que tinha concedido um baile campestre a favor dos veteranos da liberdade, aliás muito concorrido, cumpriu o que promettera. Foi tocar a alvorada para o campo de Sant'Anna, onde vimos reunidas mais de 1:000 pessoas.

Acabado o toque a sociedade seguiu para o Rocio, executando hymnos nacionaes, acompanhando a aquella multidão, onde se notavam muitos veteranos.

No caes de Sodré e Corpo Santo, fizeram a alvorada a banda de ex alumnos da casa pia e a philarmonica Seixalense e outra, que percorreram todo o Aterro, comprimentando-se, e eram também seguidas de numeroso povo, que dava vivas e lançava foguetes.

Pode-se dizer que, pelo movimento das ruas, uma parte importante da população viera saudar jubilosa o despontar do dia em que se commemorava uma grande data.

Desde as oito horas da manhã até ás 11 distribuiu-se, em varias freguezias, bodo aos pobres, constando de pão, carne, arroz, toucinho e esmolas de 100, 200 e 500 réis ; e notaremos os das commissôes voluntariamente organisadas em S. Paulo, S. João da Praça, Mercês, S. José, Pena, Esperança, calçada de Santa Anna, Anjos e Soccorro.

N'esta ultima freguezia havia duas commissôes. Na Encarnação havia também duas, uma da freguezia que deu esmola de 1:000 réis a 41 veteranos e outra na Rua dos Calafates. Os bodos foram distribuidos na presença das respectivas commissôes, por damas ou por meninas, tocando durante o acto as philarmonicas, que obsequiosamente se prestaram a isso.

Em algumas freguezias a abundância dos donativos deu logar a augmentar o bodo. Durante a distribuição do bodo na rua dos Calafates tocou uma orchestra, composta de professores e organisada por influencia de um dos membros da commissão.

Eram quasi três horas da tarde quando chegou á ponte dos vapores do Terreiro do Paço, a bordo do Lusitano a grande commissão de Almada com a camara municipal d'aquelle concelho, e muitos cidadãos liberaes que a acompanhavam. 

Praça do Comércio e Rio Tejo, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Na ponte esperavam estes cidadãos a grande commissão de Lisboa, representada pelo seu presidente e muitos de seus membros, vereadores do municipio de Lisboa, veteranos da liberdade, e outras pessoas, levando a bandeira da commissão lisbonense o vogal Francisco de Almeida e da associação dos veteranos o sr. Silva, empregado na alfandega e fundador da mesma associação.

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António da Silva, o veterano da bandeira, fundador da associação.
Imagem: Archive.org

Logo que a commissão desembarcou, subiram ao ar algumas girandolas de foguetes, tanto de bordo do "Lusitano", como da praça, onde se tinham agglomerado milhares de pessoas. 

As duas commissôes, levando na frente duas philarmonicas a dos bombeiros e Primeiro de Dezembro e logo após as bandeiras indicadas, seguiram pela rua do Ouro em direcção do Rocio, onde pararam para fazer continencia á estatua do imperador D. Pedro IV.

D'ahi seguiram para a egreja de Santa Justa, entre os repetidos vivas á liberdade, e aos veteranos, que se soltavam durante o transito.

Os veteranos, parte uniformisados, parte á paizana, mas todos sob a direcção do seu presidente, não seriam menos de 200.

O vasto templo de Santa Justa, preparado para o Te-Deum pela solicitude dos procuradores e andador da irmandade do Santíssimo, sob a direcção do sr. Rosa Araújo, ostentava as suas melhores e sumptuosas galas, com superabundância de armações de custo, numero admirável de luzes e profusão de flores naturaes.

No throno e nos altares viam-se mais de 700 lumes. O templo estava completamente cheio. Vimos alli representadas todas as classes.

A imprensa também teve a condigna representação, achando-se alguns jornalistas juntos com a grande commissão, e outros no corpo da egreja.

As associações operarias e algumas escolas egualmente tinham alli delegados seus, como o grémio popular, que era representado pelo seu presidente o sr. Silva e Albuquerque.

A commissão da Pena mandou áquella solemne ceremonia as 33 meninas, que vestira de manhã, e que, durante o acto, estiveram de velas accesas e com ramos de perpetuas e laço azul e branco.

Por volta das três horas e meia chegaram, um após outro, el-rei D. Luiz e D. Fernando, os quaes foram recebidos, á porta da egreja, pelo ministério, membros da grande commissâo e veteranos, com as respectivas bandeiras, arcebispo de Mytelene, collegiada, irmandade do Santíssimo, altos funccionarios militares e civis.

As Festas da Liberdade no Porto — Veteranos da Liberdade que tomaram parte no préstito in O Occidente, 1883.
Imagem: Hemeroteca Digital

El-rei trajava o uniforme de general. Sua magestade a rainha não pôde concorrer a Lisboa por incommodo de saúde. Logo que suas magestades tomaram assento nas cadeiras de espaldar, que lhes estavam proparadas no altar-mór, lado do Evangelho, debaixo de riquíssimo docel, entoou o Te-Deum o sr. arcebispo a grande instrumental.

D. Luis I (1838-1889), rei de Portugal de 1861 a 1889.
Imagem: Palácio Nacional da Ajuda

Em frente da egreja, fazia a guarda de honra uma força de 100 homens da municipal, com capitão e dois subalternos e a musica.

A policia do largo e das ruas circumvisinhas era feita por uma força de cavallaria municipal commandada por um subalterno e guardas civis.

A entrada e saida de el-rei estalaram muitas girandolas de foguetes. O Te-Deum que era o de Marcos de Portugal, sob a regência do sr. Monteiro de Almeida, com 21 vozes e 42 instrumentistas, terminou ás 4 horas e 20 minutos.

Depois da ceremonia religiosa, el-rei dirigiu-se, em carruagem que o conduzira ao arsenal da marinha, onde o esperava o estado maior, e ahi montou a cavallo para a revista.

El-rei D. Fernando voltou para as Necessidades e em seguida regressou a Cintra, d'onde viera de propósito na véspera.

As quatro e meia, sua magestade o generalissimo do exercito, saía do arsenal em direcção á praça do Commercio, montando um soberbo cavallo baio e era seguido por um luzido estado maior, do qual faziam parte os ajudantes de campo, generaes (Jaula e D. Luiz de Mascarenhas; coronéis Folque e Cunha, e officiaes ás ordens, D. Francisco de Almeida, D. Manuel de Mello e Vito Moreira, e dos generaes Barreiros, Palmeirim, barão de Rio Zêzere, Mancos de Faria, Luiz Maldonado, Moraes Rego, Tavares de Almeida e Castello Branco e respectivos ajudantes de campo.

A divisão achava-se formada na praça do Commercio. O aspecto de todos os corpos em parada e o quadro que offerecia toda a divisão formada em columnas era deveras brilhante. Ao entrar elrei na praça as tropas apresentaram armas e as bandas tocaram o hymno real.

Finda a revista o generalissimo tomou pela rua do Oiro, seguido por toda a divisão para fazer a continência á estatua do imperador. El-rei e o seu estado maior collocaram-se sob as tribunas que se levantaram no theatro de D. Maria, para ver o desfilar de todas as tropas.

Na tribuna do centro não havia pessoa alguma da família real, e nas lateraes viam-se o ministério, parte do corpo diplomático estrangeiro, camará municipal, a grande commissão dos festejos, muitas damas, etc.

A força da guarda municipal que estivera ás portas do templo de S. Domingos, veio postar se em linha em frente de el rei, abrindo assim largo caminho para o desfilar das tropas.

A divisão passou em continência, como dissemos ; a artilheria e infanteria em columnas de divisões e a cavallaria a três. A marcha na continência em geral foi boa, havendo apenas um incidente que alterou o bom andamento da artilheria, por lhe ter caído uma parelha de muares na rua do Oiro.

Algumas divisões de caçadores e infanteria não tinham sufficiente espaço para estenderem bem em linha, indo algumas filas á rectaguarda por causa da grande massa de povo que se agglomerava em todos os pontos.

A divisão retirou pela rua Augusta e alguns corpos não seguiram para quartéis pelo itinerário indicado, por ter o sr. general commandante ordenado, á ultima hora, que seguissem o que lhes fosse mais conveniente.

A divisão compunha-se do regimento de artilheria n.° 1, com 6 metralhadoras, 36 canhões Krupps e 6 pecas de montanha, uma brigada de cavallaria com 6 esquadrões, commandada pelo sr. infante D. Augusto, levando ás suas ordens os srs. D. João de Mello e visconde de Seisal, e duas brigadas de infanteria.

A força de toda a divisão era de 5:210 praças, 567 cavallos, 388 muares e 48 bocas de fogo. Artilheria n.° 1 levava 510 homens, lanceiros da rainha 280 cavallos, e cavallaria n.° 4, 287; caçadores n.° 2, 430 homens; caçadores n.° 5, 578; infanteria n.° 1, 590; infanteria n.° 2, 600; infanteria n.° 5, 680; infanteria n.° 7, 625 e infanteria n.° 16, 630.

D. Carlos I em visita ao regimento de Lanceiros 2, foto de Joshua Benoliel, 1907.
Imagem: Palácio Nacional da Ajuda

Estes corpos não apresentaram maior força por terem alguns destacamentos e grande numero de praças licenciadas.

O estado de asseio de todos os corpos, e a maneira como elles se apresentaram em parada, magnificamente armados e equipados, satisfez todos os espectadores e até os mais escrupulosos em cousas militares.

A força de artilheria ia imponente. Quarenta e oito bocas de fogo, como as que nós apresentámos, é força respeitável em qualquer parte da Europa.

A cavallaria ia toda bem montada e em força quasi completa. Parte do corpo diplomático estrangeiro finda a passagem das tropas foi felicitar o sr. ministro da guerra pela maneira brilhante como se apresentou a divisão.

Os corpos da guarnição de Belém chegaram á noite a quartéis, e a banda de caçadores da rainha, depois da parada, marchou em seguida para Queluz, indo em char-á-bancs a expensas de sua magestade.

Os navios durante o dia estiveram embandeirados em arco.

Lisboa — Vista do Tejo, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Viram-se, em todo o dia, innumeros homens com perpetuas ao peito, assim como muitas damas com ramos de egual flor.

Ao pôr do sol salvou o castello e lançaram-se mais girandolas.

A concorrência que fora extraordinária aos actos públicos do dia, e que se tornara notável á tarde, por occasião da revista e continência militares, tornou-se assombrosa á noite.

Não nos lembra vêr, em época alguma do anno, nas occasiões festivas, que dâo movimento ás massas populares, a affluencia d'este anno ás ruas de Lisboa.

A illuminação foi geral e deslumbrante em muitas partes.

A mais vistosa de todas era a da praça de D. Pedro, que se compunha de quatro grandes pyramides com 1:200 bicos de gaz, terminando com fachos, que illuminavam perfeitamente a praça e a estatua.

As pyramides pela frente e rectaguarda, estavam ligadas por festões, que tinham no centro duas estrellas, que também lançavam bastante luz por muitos bicos de gaz.

O edifício do theatro de D. Maria e os demais em volta da praça viam-se egualmente illuminados. Eram do mesmo modo brilhantes as illuminaçôes das rua dos Calafates, que, desde a travessa da Queimada até á rua das Salgadeiras, tinha um sem numero de bandeiras nas janellas e cruzando a rua bandeiras, festões, lustres e balões; a do largo do Camões, que tinha illuminação em volta do monumento com 200 lumes de gaz, afora os da estrella central; as do Corpo Santo que tinha dois arcos; cães do Sodré e Aterro, que tinha outros dois. onde se lia a data de "23 de julho de 1833", bandeiras, festões, mastros com escudos e estandartes.

Theatro D Maria II, Nogueira da Silva (desenho), Coelho Junior João Pedrozo (gravura), 1863.
Imagem: Archivo Pittoresco, Hemeroteca Digital

Ali a illuminação era a balões em prodigiosa quantidade. Em outros largos e praças havia illuminações mais ou menos vistosas. A estação dos vapores Burnay, no Aterro, tinha grande numero de lanternas de cores, na frente da barraca. Seria difficil enumerar todos os edifícios particulares, além dos públicos, que apresentaram as suas fachadas illuminadas com lanternas ou gaz.

Entre outros, notaremos todos os hotéis do Chiado, sobresaindo o "Gibraltar", que hoje está no palácio Ouguella; os escriptorios da "Correspondência de Portugal" e de outras redacções; todo o edifício da Typographia Universal e escriptorios do "Diário de Noticias" e "Diário Popular"; companhia de vapores e outras; confeitaria na rampa de Santos; fabrica de gelo dos srs. Ferreira & C.a; as casas de vários cônsules e ministros estrangeiros, etc.

O Terreiro do Paço estava segundo o costume, mas em frente do caes das Columnas fundeara o vapor "Lynce", que illuminou graciosamente e durante a noite queimou alguns fogos de bengala.

O castello de S. Jorge exterior e interiormente tinha bonita illuminaçâo.

Nos coretos erguidos nos differentes pontos notámos: Caes do Sodré, philarmonicas Verdi, da Ponte Nova, e Capricho, do Barreiro; Corpo Santo, ex-alumnos da casa-pia; Ribeira Nova, Seixalense;
praça de D. Luiz, defronte da fabrica, fanfarra de curiosos; fim do Aterro, banda da guarda municipal; rua dos Calafates, philarmonica 24 Julho; rua do Currião, Timbre dos Artistas; largo do Camões, Alumnos de Minerva; Campo de Sant'Anna e largo do Tabellião, Recreio Artístico; largo da rua dos Canos, Xabreguense; largo da Esperança e Caes de Santarém, também philarmonicas; e no Rocio as bandas de infanteria de caçadores 6, e por vezes varias philarmonicas, sendo ali mais permanentes as Primeiro de Dezembro, de Aldeia Gallega, e dos bombeiros, que levava muitas figuras e apresentou-se bem uniformisada.


Barra de Lisboa vista do Caes do Sodré.
Imagem: Internet Archive

Repetimos: o modo como correram os festejos de 24, fazem o maior elogio do povo lisbonense. É agradável deixar isto registado. E cabe-nos, com egual satisfação, mencionar que, na ordem e organisação da commemoraçào solemne, pertence bom quinhão de louvor á boa vontade e ao zelo da grande commissão, e especialmente á sua commissão executiva.


(1) Aranha, Pedro Wenceslau de Brito, Esboços e recordações, Lisboa, Typographia Universal, 1875, 246 págs.

Leitura relacionada:
Maria Isabel da Conceição João, Memória e Império, Comemorações em Portugal (1180-1960), Lisboa, Universidade Aberta, 1999
O dia de hontem na Piedade