quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Almada no mapa do rio Tejo e da cidade de Lisboa em 1663 por Dirk Stoop

Chegaram esta manhã as gravuras do rio Tejo e da Cidade de Lisboa, que mediu com a sua própria mão e imprimiu por ordem do rei. My Lord agrada-se com isso, mas eu penso que deveria ter sido melhor feito se não tivesse sido um trabalho ocasional. Além disso, informei-o da tiragem sobre cetim branco, que ele logo encomendou. (1)  

Map of the river Tagus and the city of Lisbon (detail), Dirk Stoop, 1663.
British Museum

O primeiro conjunto de gravuras que Stoop produziu em 1662 após a sua chegada a Inglaterra foi uma série muito rara de oito longas vistas horizontais que mostram cada etapa da viagem de Catarina a Londres, desde a chegada de Lord Montagu ao Tejo, com a frota inglesa enviada para a transportar, até à procissão triunfal ao longo do Tamisa (Hollstein 31-8). 

Cada gravura tem textos em inglês e português, e cada um deles é dedicado a uma pessoa diferente, desde Lord Montagu (o Conde de Sandwich) e ao rei Charles, ao Mayor da Cidade de Londres.


A água-forte exibida aqui mostrada foi feita no ano seguinte e destaca-se da série anterior. A história encontra-se no diário de Pepys de 24 de Agosto de 1663 [v. acima ...]

Esta é a única impressão sobrevivente da água-forte e está impressa em cetim branco, como sugeriu Pepys. A falta de editor mostra que se tratava de uma água-forte particular não comercial. A cota de armas real dedica-a ao rei, enquanto as armas de Sandwich acima da cártula do título mostram seu papel no assunto.

Map of the river Tagus and the city of Lisbon, Dirk Stoop, 1663.
British Museum

O canto inferior esquerdo mostra o retrato de Sandwich a segurar a sua régua de medição, e o modo incompleto como o plano foca o estuário do Tejo prova que foi tirada do seu plano feito no local.

Map of the river Tagus and the city of Lisbon (detail), Dirk Stoop, 1663.
British Museum

Uma nota de rodapé de Sir Oliver Millar ao diário de Pepys (IV p.286) sugere que a fonte é um plano no diário de Sandwich, no qual ele registrou 'O restante das minhas observações do rio de Lisboa são aperfeiçoadas e impressas na minha gravura de cobre sobre a orientação de Kinges.' Evelyn regista que Sandwich também era um gravador amador ('Sculptura' p.131).


A depreciação de Pepys da água-forte como meio de impressão é uma expressão típica da preferência estética contemporânea em favor da gravura. Assim como seu desejo de vê-las impressos em seda em vez de papel. (2)


(1) The Diary of Samuel Pepys, Monday 24 August 1663

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A filha do povo — 1486 (IV de IV)

Ás mesmas horas, pouco distante, nos paços d' Alcaçova, como o dia fôra abrasador, D. João II e alguns fidalgos e jurisconsultos passeavam n,uma esplanada, que dominava a cidade e o Tejo. 

View of Lisbon.
Convento de S. Paulo e do Castelo de Almada no séc. xviii, autor desconecido, séc. xix.
Museu de Lisboa (MC.DES.1141)

Eram varios os grupos, e convergiam, como de rasão, as attenções de todos para aquelle onde estava el-rei, composto de pessoas mais distinctas pelos seus serviços e fidelidade á corôa, do que pelos seus brasões e nascimento. Ali se viam Diogo d'Azambuja, que as navegações e guerras haviam tornado manco e velho! D. Diogo d' Almeida, o amigo d'infancia do rei e tão feliz nas expedições d'Africa; Ayres da Silva e Antão de Faria, seus camareiros e privados; os doutores Ruy da Graan, depois compilador das Ordenações Manoelinas, e Diogo Pinheiro, elevado a bispo do Funchal, e alguns outros, cujos nomes as chronicas do tempo nos memoram hoje [...] 


Coimbra, Março do 1862. 



(1) Revista Contemporânea de Portugal e Brazil n.° 3, 1862

sábado, 19 de setembro de 2020

A filha do povo — 1486 (III de IV)

No longo, obscuro e tormentoso periodo de quasi dez seculos que fórma a idade média, constantemente, se pelejou uma lucta encarniçada entre os varios elementos constitutivos da sociedade europea. 

O feudalismo, a theocracia, a democracia e a realeza, tomando va-riadas fórmas, debateram-se, triumpharam, successiva e momentaneamente uns sobre os outros, e dcsfalleceram para tornar a surgir, trium-pbar e desfallecer. 

Estas tentativas de organisação social, todas grandiosas e mais ou menos fundadas no espírito do homem e nas circunstancias do tempo, abortaram, ora pelo seu exclusivismo, ora pela extincção do proprio fundamento, ora, finalmente, porque obstavam á civilisação que do reciproco attrito de todas começava a raiar.

Áquem do facto, momentoso por si e sobre tudo pelos seus effeitos, que separa os tempos modernos dos da meia idade, a lucta continuou até hoje; mas em períodos mais vastos, mais definidos, ou antes com luz mais intensa sobre elles, que n'ol-os deixa ver mais em relevo e côres mais vivas. 

Pereceram quasi de todo já o feudalismo e a theocracia; os estremecimentos que, de quando em quando, ainda lhes senlimos são os arrancos do moribundo. Tentar dar-lhes vida é emprehender uma resurreição, o que só compete ao espírito de Deus e não ao do homem. Extinguir-lhes antes os raros bafejos d'ella que ainda conservarem: é poupar-lhes soffrimentos, é alliviar a humanidade d'esse espectaculo de receios e dôr.

Agora luctam ainda, n'um ou n'outro ponto, a realeza, que julga vigorosos os moribundos e por elles illudida, pois os sente ainda es-trebuxar por toda a parte, e a democrncia que aspira á liberdade e ao progresso. Ba de finalisar-se esta peleja, e hão de os contendores, dando um abraço de fraternidade e paz, conhecerem que está no seu amor reciproco o conseguimento da pacificação e do mais facil era-pido desenvolvimento da sociedade humana.

Ora ao sair da idade média, na segunda metade do seculo quinze, a realeza alliara·se com o povo para destruir o seu maior inimigo, aquelle que mais de perto a offuscava e affrontava.


Os dois alliados davam então no feudalismo o mais terrivel golpe, o que o prostraria no solo, e de que não mais se havia de levantar. Predominava este facto por toda a Europa.

Henrique VII na Inglaterra, Maximiliano na Atlemanha, Luiz XI na França, Fernando e lzabel na Hespanha e João nem Portugal eram os athletas reaes n'aquella peleja, em que os populares foram illudi-dos e espoliados, e de que só victoriosos e preponderantes saf ram os sceptros.

Foi D. João II dos mais terriveis contendores: o seu panegyrista, sem querer mesmo, retingir-lhe de sangue, assombreou-lhe de terror muitas paginas da Chronica.

Com sua vontade ferrea immolou sem piedade os nobres mais altivos e poderosos que receiava lhe fizessem estremecer o throno.

Atravez dos seculos e das paginas da historia, ainda hoje divisamos o pavor, que infundia na classe, por tão largo tempo, rival dos reis e oppressora dos povos, o olhar de João II.

Não devem pois maravilhar as hesitações e receios do filho do conde de Caminha. Apenas chegado a Lisboa, viu elle quanto eram justas; prenderam·n'o e conduziram-n'o a um carcere do Limoeiro, já então convertido em prisão real.

São passados quinze dias que ali jaz.

Eil'o pallido, magro e enfraquecido; sentado junto de um bofete, n'uma cadeira d'espaldar de lavor simples. Á primeira vista não parece o mesmo; desfigurou-o a tortura, esse meio hediondo e cruel que a justiça antiga empregava para descobrir a verdade. Dilacerou-Jbe os membros, rasgou-lhe as carnes, infligiu-lhe as dõres mais vivas, e conseguiu apenas ouvir ao cavalleiro reiterados protestos de innocencia.

Proximo a D. Alvaro, de joelhos, sobre um coxim de panno escuro, os cotovellos apoiados na cadeira e uma das mãos de Sotto-Maior, meigamente, apertada entre as suas, está Maria, triste, mas acariciadora, empregando todo o amor e ternura que lhe transparecem nos olhos formosissimos em confortar o cavalleiro, em lhe inspirar resignação, em distrahil-o de seus dolorosos soffrimentos do corpo e do espírito.

Não foi possível retel-a na sua casa d'Almada; penetrou no paço quasi escusamente, lançou-se aos pés do monarcha e disse-lhe que a neta de um dos mais honrados procuradores do povo, durante os tres reinados anteriores, lhe rogava ir encerrar-se na prisão com o misero cavalleiro seu noivo. Tantas foram as supplicas e as lagrimas que se apiedou o rei... é que tinha coração para os infelizes o filho de A ffonso V. 

View of Lisbon.
Convento de S. Paulo e do Castelo de Almada no séc. xviii, autor desconecido, séc. xix.
Museu de Lisboa (MC.DES.1141)


Um dos letrados da casa da Supplicação, com o seu rosto pallido e a sua garnacha escura, estava defronte dos dois amantes. 

Eram os jurisconsultos, que ajudavam e impelliam os reis na sua obra; as leis da antiga e da moderna Roma serviam-lhes de aríete para destruirem a nobreza e enthronisarem o absolutismo. 

— Senhor D. Alvaro, dizia o doutor, n'esla nobilíssima, porém mais que todas pungidora missão de administrar a justiça, jámais me hei sentido affiicto, como no caso que vos diz respeito. Foram empregados debalde todos os meios para descobrir se vós ereis ou não conspirador. João Dagualda porfia em accusar-vos como tal. As vossas relações com o duque de Vizeu e o bispo de Evora, com D. Fernando de Menezes e D. Pedro de Athaide, já todos mortos por justiça de el-rei, — e aqui o doutor fez uma profunda mesura, — e principalmente a vossa ida a Castella são as unicas provas de que tinheis o intento, que vos attribuem, de matar o senhor D. João. — e de novo curvou a fronte, — rei pelo voto dos concelhos, rei principalmente por direito divino.  

IOANNES QVARTVS PORTVGALIAE REX
Kunsthistorisches Museum

— Já a isso respondi cabalmente, doutor, disse o cavalleiro com voz desfallecida. Tinha relações com esses infelizes que Deus tem, porque eram da minha classe, porque estivera com elles nos campos de batalha, porque os encontrava todos os dias nos paços de el-rei. Fui a Caslella, porque tenho lá casa e parentes, porque negocios de familia me chamavam lá. 

— Hoje assim o creio, senhor cavalleiro; os juízes porém da Supplicação não estão conformes ainda todos, e sua alteza o senhor D. João II, outras mesuras a quem sabeis, todos estes feitos são presentes, e de cuja vontade depende sobre tudo a sentença, porque a lei e o querer de Deus; e o querer de Deus é o querer do principe, está de tal modo decidido a manter como lhe compete, o poder da corôa. e a defender este reino contra os conloios de Castella, que, sinceramente, muito vos receio pela vida.

Maria estremeceu, e o seu alvo rosto tin~iu-se d'aquella cór ama-rello-escuro que dá a melancholia profunda e prolongada ou o medo grande. A D. Alvaro não se lhe agitou um musculo, e respondeu no seu primeiro tom:

— Faça-se a vontade da Virgem Mãi de Deus!

— E depois nós os homens de justiça, continuou o doutor, não sabemos explicar aquella contumacia de João Dagualda, antigo servidor dos vossos, em accusar-vos como traidor, e cm querer mal á bclla e santa menina que ahi tendes. O haverdes-lhe fustigado as faces não é sufficiente causa para n'um homem da sua condição arreigar tama· nho odio. De provardes ou não sua calumnia suspensa vos está a vida. E como havemos declarai-a tal não o sabemos nós.
 

— Sei eu! disse Maria, — levantando·se de um salto, as faces affogueadas, os olhos faiscantes, — sei-o eu, e não o disse já, porque me vexava, porque Alvaro ordenou-me que vol-o occultasse, porque pensei que ereis mais providentes, julguei que a cegueira da justiça era em quanto á condição dos réos para a todos applicar igualmente a lei, e que lhe era facil, na sua perspicacia e rectidão, descriminar o bem do mal, o innocente do criminoso, descobrir com todos os seus immensos meios de sciencia e dinheiro aonde a verdade, aonde a calumnia! Mas enganei-me, e, visto que a vida de Alvaro depende d'essa revelação, hei de desobedecer-lhe, tudo direi a el-rei; direi por que o servo abjecto e vil me quer mal, e como sabe, que, se Alvaro morrer, eu morrerei lambem, por isso quer leval-o ao cadafalso. Mas não ha de ir. O cavalleiro e eu, — disse com voz inspirada, — temos por egide a protecção da Virgem; disseram-me que el-rei é tambem devoto da Mãi de Deus: irei fallar-lhe em seu nome, e em nome de todo o povo de Portugal; irei dizer-lhe que o sangue do innocente, espadanando-lhe para a corôa, lhe ha de marear o brilho, mostrar-lhe-hei que os direitos dos populares não se sustentam, sacrificando-lha o justo, dir-lhe-hei que a independencia portugueza tem por si o coração de todos os portuguezes, e que nada podem as ambições de Isabel, a castelhana, contra um povo forte do seu direito; dir-lhe-hei finalmente, o que tiver sobre o coração 1 Vinde pois, doutor 1 levai-me aos paços do rei de Portugal, aos paços. d'aquelle que, segundo vós dizei11~ administra n'esta nossa terra a justiça de Deus!

E radiante de enthusiasmo, de inspiração, de insania talvez, Maria travou do jurisconsulto e lêvou-o apoz si para fóra do carcere.

Coimbra, Março do 1862. 



(1) Revista Contemporânea de Portugal e Brazil n.° 3, 1862

Informação relacionada:
Necrologia de José de Souza e Mello
Pedro Alvarez de Sotomaior, conde de Camiña

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

A filha do povo — 1486 (II de IV)

Era n'uma casa pequena e rustica d' Almada, debruçada de sobre a montanha para o mar, como velha á borda de um regato, scismando nos seus amores de rapariga.
N'um pequeno aposento, notavel só pela vista magnificente que tinha a janella, e pelo aceio que n'elle reinava, estavam sentados Maria e Alvaro em pratica affectuosa e intima e com as mãos reciprocamente dadas.

Painel do silhar de azulejos no claustro da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, Salvador, Bahia (detalhe).
Casamento do Príncipe D. José com D. Maria Ana de Austria em 1729.
Dauril Alden, O Período Final do Brasil Colônia, 1750-1808

Maria recebêra a educação mais esmerada d'aquella época. 

Era de uma formosura admiravel sem ser apparatosa; despercebida a distancia, maravilhava ao contemplar-se de perto. Tinha o rosto e as mãos de uma grande alvura, não d'aquelle branco do leite igual e sem brilho; mas sim do alvo resplandecente da perola, que não cança, e até regosija a vista. O cabello farto de um louro escuro, entrançado primorosamente, moldurava-lhe o rosto; as feições todas eram regularíssimas e bellas, e azues lhe brilhavam os olhos.

N'estes e em toda ella possuía a serenidade a aparente, que realça a modestia e infunde maior paixão e mais respeitosa, das mulheres do norte. Os olhos então tinham uma luz meiga de ternura e de bondade que lhe dava ares de uma santa. Julgar-se-hia por um momento que a alma lhe remontava da terra, onde nada a prendia, e se elevava ao céo e perdia nas regiões bemaventuradas dos que estão com Deus. Se então fattava a voz, sempre suavíssima, tinha a doçura da flauta, ouvida ao longe em noite de luar e a uncção quasi divina da voz juvenil da virgem enlaçada ao orgão do mosteiro.

Painel do silhar de azulejos no claustro da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, Salvador, Bahia (detalhe).
Casamento do Príncipe D. José com D. Maria Ana de Austria em 1729.
Dauril Alden, O Período Final do Brasil Colônia, 1750-1808

Mas quando uma aura de amor ou d'outro sentimento grande vinha agitar aquelle regato puríssimo de seu viver, desapparecia inteiramente a serenidade, os olhos scintillavam-lhe com uma luz resplandecente e vivíssima, e toda ella era amor, e paixão, e enthusiasmo e delírio! Similhavam então as suas fallas um hymno ruidoso e arrebatador, e levam-nos apoz si, inspirando-nos tudo quanto é difficil, ingente e sublime. Era o amor, a gloria, e a loucura que se personificavam n'ella para nos endoudecerem.

Agora estava Maria n'aquella sua meiga serenidade habitual, mas que tinha hoje um toque mais fundo de melancholia e tristeza.

— Tu és, Alvaro, — dizia ella meigamente — cavalleiro, nobre e filho de um grande de Hespanha e Portugal, como poderás jámais desposar-me a mim, filha do povo!... — Outr'ora, — continuou, animando-se um pouco, — tinha vaidade da minha condição, enobrecia-me o ser oriunda de populares, enlevava-me, ouvindo a meu decrepito avô repetir as orações com que elle e os outros procuradores dos povos tinham em côrtes, durante muitos annos, fulminado o orgulho, abatido o poder dos fidalgos. Hoje o amor que te consagro e esse desejo teu de o quereres santificar perante a egreja, o que cu nunca te pedi, mas que era, por certo, a maior ventura de minha vida, fazem com que me lastime de não ter nascido nobre como lu, fazem com que eu renegue as crenças de meus paes, as crenças do povo.

— Não penses tal, Maria! a verdadeira nobreza, sobre tudo nas mulheres é a da alma, é a da virtude; e n'isso és tu mais nobre que rainha alguma, tu que és uma santa.

— Santa!

— Santa sim, erguida e venerada no altar de meu coração!

— A virtude minha é só devida á generosidade e elevação tuas, Alvaro.

— Á honra propria de todo o homem honrado, talvez; e deixa-me ter d'isso orgulho, Maria. Mas, se tal não fosse, não acreditava no teu amor. Já t'o hei dito, e repito-o agora bem do intimo da alma; não creio que a mulher, amando verdadeiramente, amando ardentemente um homem, lhe possa resistir. Nas mulheres é ludo o coração, quando elle resiste ao amor é porque o não sente devéras. Da parle do homem, que tem brio, é que está, é que deve estar a sufficiente força para refrear a sua paixão e a da mulher que estremece, pois não deve querer precipital-a n'um abysmo de vergonha, não deve querer arrebatar-lhe a virtude, seu atavio principal. Quantas vezes um homem, gasto dos prazeres, simulando um sentimento que não tem, vae com palavras sonorosas e requebros estudados, desvairar o espírito, já de si ardente, de uma pobre menina e arrostal-a â perdição; é esse um vil, que a sociedade a ser justa, devia para toda a vida marcar de ignomínia!

— Dcixára-se Maria suavemente descair, ajoelhára ante o cavalleiro, e beijando a sua mão delicada, alva, quasi feminil, disse:

— Tu és bom, meu Alvaro!

— Toda a bondade que tenha de ti procede, minha esposa; redarguiu elle, tomando-lhe nas mãos a cabeça, e aos labios achegando-a com amor, ensinou-rn'a a tua doce voz, inspiram-me esses teus olhos do céo.

Um bater apressado á porta do aposento fez levantar rapidamente Maria, que foi abrir.

A menina estremeceu ao dar de rosto com sua mãe pallida e assustada.

— Que é, disse ella?

— Senhor D. Alvaro, respondeu a boa senhora com voz tremula, um cavalleiro dos ginetes de Fernão Martins de Mascarenhas diz que el-rei vos ordena o acompanheis a Lisboa.

Sotto-Maior empallideceu tambem; é que uma ordem d'aquellas a um nobre, nos primeiros annos do reinado de D. João ii podia, mui facilmente, ser uma sentença de morte.

Os tres olharam-se reciprocamente, não ousando articular um som. Sem animo, vacillante, quasi desfallecida, apoiou-se Maria a uma cadeira para não cair.

Sua mãe foi a primeira que fallou:

— Senhor D. Alvaro — disse com voz sumida — fugi! Uma grande tristeza, como terror do futuro, me ennegrece o corarão. Chegastes ha pouco, de Castella, e sabeis, que se diz por cá tramar a rainha lzabel com os nobres de Portugal contra a corôa de D. João ii. Talvez alguem, que vos queira mal, fosse calumniar-vos junto de el-rei. É tão difficil ao bom provar a sua innocencia, quanto é facil ao malvado fazer uma accusação. Livre, menos custoso será a vossa mercê convencer sua..alleza de que foi enganado, preso, nem a justiça vos dará para isso tempo. Fugi! Saí pela porta do jardim, e breve estareis fóra da villa. Tomae na Amora um cavallo, ide a Setubal e lá embarcae para Castella ou para França. Acreditae-me, senhor, não arrosteis com a sanha terrível do homem, que assassinou o duque de Vizeu.

— Julgo que tendes razão... Digo-vos em consciencia, e por alma de minha santa mãe vos affirmo, ciue jámais tramei contra o rei de Portugal!... mas esta verdade mais difficilmcnte do que em parte alguma a provarei no fundo de um carcere!... Que dizes, Maria? ha no teu coração de amante, que tantas vezes a presciencia illumina, alguma voz a aconselhar-me que me ausente da côrte?

— Não! — respondeu em tom seguro, scintillando-lhe os olhos, colorindo-se-lhe o rosto, alteando-se na sua figura esbelta. — Não! que jámais diria a um homem que é nobre, nobre d'alma, que fugisse ante a justiça da minha patria. El-rei D. João é o amigo do povo, tu nunca fizeste mal a este, elle não te fará mal a ti. Adevinha-me o coração que tens de arrostar um grande perigo. Mas vae, que o exige a honra! Contra a calumnia prevalecerá a innocencia: el-rei é justiceiro, e a Virgem será por nós!

Painel do silhar de azulejos no claustro da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, Salvador, Bahia (detalhe).
Casamento do Príncipe D. José com D. Maria Ana de Austria em 1729.
Dauril Alden, O Período Final do Brasil Colônia, 1750-1808asil Colônia 1750-1808

E Maria declamou isto com tal enthusiasmo no gesto, com tanto fulgor nos olhos, com tamanha paixão na voz que D. Alvaro, arrebatado, tomou-a nos braços, estreitou-a ao seu coração, beijou-a na fronte e disse-lhe, affastando-se:

— És tu, filha do povo, que ensinas ao nobre a verdadeira nobreza! Adeus! Reza por mim á Rainha do Céo!

Coimbra, Março do 1862. 



(1) Revista Contemporânea de Portugal e Brazil n.° 3, 1862

Informação relacionada:
Necrologia de José de Souza e Mello
Pedro Alvarez de Sotomaior, conde de Camiña

terça-feira, 1 de setembro de 2020

A filha do povo — 1486 (I de IV)

Bellos arraiaes d'Almada! Sois em noites estivas, quando não sopra com violencia a ventania do norte, o regosijo d'aquellas formosas filhas da margem esquerda do Tejo. Formosas sim, que ainda as não vi tanto e em tão grande numero em outro algum logar!
 
View of Lisbon (detalhe).
Castelo de Almada no séc. xviii, autor desconecido, séc. xix.
Museu de Lisboa (MC.DES.1141)

E ali perpassam, á palida luz das lanternas festivaes, dezenas e dezenas d'ellas; todas moças, alegres, lindas e trajadas com simples e encantadora elegancia.

São reuniões aquellas, como de familia: todos se conhecem, fallam e tratam intimamente. É vasto o salão, e sublima-lhe o tecto a abobada amplíssima do céo; ora escuro e recamado de eslrellas rutilantes, ora azul e explendidamente illuminado pelo brilho suavíssimo da lua.

Amo os arraiaes d' Almada! Gosto de ver todas aquellas raparigas, pavoneando-se ao mesmo tempo modestas e vaidosas, gosando do ar puríssimo da villa, embriagando-se no doce amor da juventude. 

Pois não sabeis, lindas, que o mesmo solo, que tão descuidadamente pizaes, foi, ha mais de tres seculos e meio, scenario de amo-res tão puros como os vossos; porém mais ardentes e mais contrriados do que são por certo os que boje tendes. 

Era por uma noite de lua cheia do mez de agosto de 1486. 

Nunca de nuvens fôra tão limpo o céo, nem tão luzido o luar; similhava uma noite dos tropicos, em que a rainha aerea brilha mais do que o sol de inverno cm terras europeas. 

N'aquelle pequeno adro do convento de S. Paulo dos dominicos de Almada batia a lua em chapa. De junto á cruz de pedra, que se le-vanta no meio, via-se ao lado a simples casa religiosa; lá ao longe a linha escura e longa das casarias de Lisboa; mais longe ainda a serra de Palmella; mais proximo um mar de prata, que scintillava e' bramia, correndo para o oceano; e, então, mui perto já, mas na frente e do outro lado, o castello d'Almada e as habitações da villa.

View of Lisbon (detalhe).
Convento de S. Paulo em Almada no séc. xviii, autor desconecido, séc. xix.
Museu de Lisboa (MC.DES.1141)

E era uma noite linda, e, para mais augmentar o encanto da natureza, o orgão da egreja e o cantar dos frades vinham povoar o espaço com as harmonias magestosas dos canticos sagrados.

Ha nas mesmas fórmas externas do catholicisrno uma poesia divina, que as mais das vezes dá uncção e sublimidade a tudo. 

Junlo á cruz estava sentada uma esbelta menina, vestida de branco, e preso na cabeça um véo preto que lhe descaia donairoso sobre as costas. A alvura do seu rosto quasi que excedia á do vestido; não se divisava porém se eram bcllas as feições, porque estava como occulta na penumbra do cruzeiro. De quando em quando voltava a fronte na direção da porta do templo. 

Havia alguns minutos que assim estava como em expectativa, quando saiu da igreja um moço cavalleiro, muito conhecido n'aquelles sitios, D. Alvaro de Sotto Maior; nobre de nascimento e mais nobre ainda pela gentileza do seu porte, pelo seu valor muitas vezes provado, pelos sentimentos elevados de sua alma.

— Então rezaste, Alvaro? — disse com voz melodiosa o vulto branco, levantando-se e indo para o mancebo. 

— Rezei! Sinto n'alma doce consolação, prazer ineffavel, quando ajoelho ante a imagem da Santa Virgem e lhe peço por ti, Maria; e lhe imploro que te dê felicidade junto de mim, que t'a conceda por intermedio meu. 

— Nem de ti me póde vir senão felicidade, meu Alvaro. Mas senti agora grande pena de não te acompanhar á egreja. 

— Pezou-me tambem a mim ... Que pela nave do templo havia apeuas tres ou quatro vultos de devotos, bons velhos, affeiçoados nossos; mas o côro estava cheio de frades... se te vissem entrar comigo sósinha, e a estas horas, o que diriam ámanhã por toda a villa em suas murmurações?
 
— Foi melhor assim. Eu esperei, e tu foste prostarte junto do altar illuminado da Mãe de Deus. — Já que nos roubaram a nossa imagem de tanta uncção e milagre...

— Olvida essa que te fará entristecer... a da egreja, com o seu rosto entre as luzes e as flôres, brilhava com um fulgor mysterioso que me penetrou no coração. Olha, Maria, nós os homens, moços ainda sobretudo, levados, como de roldão, entre o ruido e paixões que nos apresenta o mundo, que nos entreteem e occupam inteiramente, olvidamos um pouco, olvidamos demasiado aquella devoção, aquella fé, que a mãe e a família nos infundem em creança. Eu sou como todos. Esqueci o nome dos innumeraveis santos a que minha mãe de joelhos e mãos postas me fazia rezar á noute, esqueci aquellas orações, cujas palavras, machinalmente, repetia sem entender. Hoje apenas sei rezar á Virgem, e de todas aquellas preces só gravada em meu coração ficou a Ave Maria. 

— E essa basta se a disseres com verdadeira fé. 

— Digo. Sinto-me sempre outro, mais forte, invulneravel quasi depois de implorar o soccorro da Virgem: tento as maiores emprezas, sou temerario mesmo. Tenho inabalavel crença de que ha de chamar em meu auxilio a protecção de Deus. No céo, entre os santos, não tenho, nem quero senão a Ella; na terra, só a ti possuo, e só te quero a ti, Maria. Tu que apesar de pobre e filha do povo, és mais, vales muito mais do que essas da minha classe, que tumulluam nos salões de D. João ii; tu, que me tens guiado na quadra procellosa, que vae passando para os. da minha stirpe, que me tens affastado, com o teu amor, d'essas conspirações todas infelizes e sanguinarias dos nobres contra o poder fatal da corôa, que nos vae cerceando os privilegios, mas engrandecendo com elles a nação; tu que me ensinaste, mais pelo coração do que pela palavra, a pospôr o interesse individual e da minha classe ao hem geral da patria portugueza; tu, pois, que te abandonaste a mim de corpo e alma, que inteiramente confiaste na minha honra; tu serás minha esposa. 

— Vossa esposa! nunca! — Gritou um vulto negro que se levantou de traz do parapeito que rodeia o adro. — Nunca! pois que o filho de D. Pedro Alvaro de Sotto-Maior, visconde de Tuy e conde de Caminha, jámais deshonrará o seu nome illustre ha quatro seculos, alliando-se com a filha de um villão!... [o personagem do conto baseia-se em Alvaro de Sotomayor y Távora, 2º conde de Caminha, sobrinho de Lourenço Pires de Tavora, 1º senhor do morgado de Caparica]

— Villão ruim de sangue e sentimentos é esse que me falla! — Clamou o cavalleiro, endireitando-se para o vulto. 

— Quem vos falla, senhor D. Alvaro, é João Dagualda, escudeiro, que foi, de vosso honrado pai, que viveu vinte annos no seio da vossa família, que foi estimado por todos os vossos, e que muitas vezes por elles arriscou a vida.

— Menos quando na batalha de Touro deixou meu pae no campo estendido entre os feridos, e se passou para as bandeiras de Izabel e de Fernando; nem quando acintosameote anda a buscar ensejo de insultar e affrontar as pessoas que estimo e que respeito. 

— Enganaram vossa mercê; foi o senhor conde quem me enviou a Izabel de Castella; o senhor conde, que depois me recommendou á hora da morte, que vos advertisse da bonra do seu nome, para que o não conspurcasseis com o da família d'essa mulher, que, apesar de ser então ainda quasi infante, já amareis, com o d'essa familia que me tem calumniado, que vos tem feito esquecer a vossa verdadeira patria e os interesses, isenções e tymbes da classe a que pertenceis, d'essa família vil e refalsada... 

Ao escutar estas palavras, D. Alvaro estremeceu, levantou rapidamente uma vara flexivel, como um vime, que tinha na destra, e verberou com ella o rosto de João Dagualda. 

Travou este de um punhal que trazia no cinto; mas, vendo Sotto Maior levar a mão á espada, saltou sobre o parapeito e d'ahi para as terras contiguas, bradando: 

— Tu me pagarás, Alvaro de Caminha. 

E desappareceu.

View of Lisbon.
Convento de S. Paulo e do Castelo de Almada no séc. xviii, autor desconecido, séc. xix.
Museu de Lisboa (MC.DES.1141)

A menina de branco tinha caído quasi desfallecida sobre os degráos do cruzeiro. O cavalheiro enclinou-se para ella, dizendo: 

— Perdoa, Maria!

— A Virgem sabe se não lhe perdoei já! — disse meiga, mas dolorosamente a donzella. Porém, voltemos para casa; o luar, que me parecia tão lindo ha pouco, enegrece-me agora o coração.

Coimbra, Março do 1862. 



(1) Revista Contemporânea de Portugal e Brazil n.° 3, 1862

Informação relacionada:
Necrologia de José de Souza e Mello
Pedro Alvarez de Sotomaior, conde de Camiña

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Almada, a propósito de Nogueira da Silva (II de II)

Estamos em 1868, em Lisboa. A época não é das mais propícias ao florescimento das artes, o que ninguém deve estranhar, porquanto impera um gosto acentuadamente provincial nos costumes, nos trajos, no jornalismo, nos interiores das casas, no teatro, na literatura, em toda a vida citadina. 

Lisboa vista do Pragal, na Outra-Banda, gravura, Nogueira da Silva, 1858.

Não interessa averiguar se este gosto é bom ou mau. Os vindouros que se deem, querendo, a esse trabalho crítico, aliás desprovido, quanto a nós, senão de significado, pelo menos de eficácia. O que dá encanto e razão de ser às modas e aos estilos de vida social, é justamente aquilo que melhor distingue as épocas umas das outras:  quase sempre; os traços mais exorbitantes, os pormenores mais caricatos. 

Quem sabe se no século XX, por exemplo (aí por 1946) as lisboetas elegantes não se atreverão a exibir uma indumentária mais aparentemente ridícula do que esta, em uso nos nossos salões e avenidas?... Todas as épocas têm os seus grotescos, as suas manias, os seus telhados de vidro. E é isso mesmo que lhes confere, meu caro leitor, nitidez, graça, distinção. 

Panorama n.° 30, 1946

Mas íamos dizendo que estamos em 1868  exactamente no dia 13 de Março. Como densa e escura núvem que de súbito cobrisse uma paisagem primaveril, acaba de espalhar-se pela cidade a notícia da morte de Nogueira da Silva. O leitor não ignora, decerto, de quem se trata, nem quanto o país fica devendo ao fino espírito, ao poderoso talento e à infatigável capacidade de trabalho do malogrado artista que esse nome usou:  nem mais nem menos do que centenas de admiráveis desenhos e gravuras em madeira.

Sim, muitas centenas! Paisagens, retratos, composições livres, ilustrações, caricaturas, cópias rigorosas (e quantas de inestimável valor documental!) de monumentos arquitectónicos, de esculturas, de peças de ourivesaria, de tábuas e azulejos dispersos pelo país - tudo atraía e impressionava a sensibilidade plástica de Nogueira da Silva, e era por ele interpretado ou transposto para o papel e a madeira com uma destreza inexcedível e uma graça inimitável.

Panorama n.° 30, 1946

Merecia a pena que alguém, algum dia, preenchesse os lazeres de umas férias com o benemérito labor de contar e classificar esses trabalhos, insertos na "Revista Popular", no "Jornal para rir", nas "Celebridades contemporâneas" e, principalmente, nos numerosos volumes do "Archivo pittoresco".

Claro está que nem todos os desenhos e gravuras do ilustrador das Obras completas de Nicolau Tolentino têm o mesmo interesse, a mesma altura.

Panorama n.° 30, 1946

Deve mesmo dizer-se, por respeito à verdade e à sua memória, que as produções de Nogueira da Silva são de irregularíssima qualidade. Nem todos os géneros se quadravam à sua vocação e ao seu temperamento. 

Na interpretação da figura, por exemplo (e particularmente no retrato) foi, por vezes, deplorável. No entanto, não era por gosto de contrariar-se nem por doentia atracção abísmica que o artista insistia nesse cultivo; - era, sem nenhuma dúvida, por mera necessidade, por obrigação profissional. 

Panorama n.° 30, 1946

Aqui temos um traço bem distinto da personalidade de Nogueira da Silva: num país em que são raros os artistas profissionais, e sobretudo na sua época, ele nada tinha de amador. Quem sabe, mesmo, se não terá sido o primeiro desenhista português verdadeiramente profissional  menos livre do que nenhum outro de satisfazer os imperativos do seu temperamento, mais vítima da fatalidade de ser "pau para toda a obra?"

A infelicidade obstinou-se em perseguir e ensombrar a sua estrela, que tinha brilho bastante para resplandecer no pardo firmamento da arte nacional. Quase não houve revez que não o afligisse, injustiça que não o ofendesse, miséria que não o ameaçasse.

Panorama n.° 30, 1946

Desde a incompreensão paterna à quase cegueira, desde a fome ao vexame de ser acusado de curandeiro, Nogueira da Silva conheceu e suportou, com um estoicismo exemplar, as maiores adversidades - inclusivê a de ter prestado as melhores provas num concurso para a regência da cadeira de Desenho da Escola Politécnica, e ficar aguardando ein vão (por razões que nunca se chegaram a apurar) a decisão do juri...

A arte venceu, mais uma vez, mas também mais uma vez saíu mal-ferida da batalha. As mutilações que sofreu esta forte e singular personalidade, são. bem notórias e confrangedoras. No entanto, cabe ao laborioso artista o mérito de ter reformado e desenvolvido, entre nós, a gravura em madeira, até então só apreciàvelmente cultivada por Manuel Maria Bordalo Pinheiro e José Maria Batista Coelho.

Vista de Almada tomada do Campo de S. Paulo, Nogueira da Silva, grav. Coelho Junior, 1859.
Archivo Pittoresco, Hemeroteca Digital

É aí, repetimos, que se encontra o maior número de trabalhos de Nogueira da Silva, atestando, além da espantosa multiplicidade do seus recμrsos técnicos, a penetrante acuidade do seu espírito de observação e o afinado gosto do seu humorismo  virtudes às quais não foi estranha a influência dos mais famosos desenhadores e gravadores franceses contemporâneos, sobretudo de Gavarni. 

Panorama n.° 30, 1946

Como ilustrador, julgamos possível e justo que algum cronista do próximo século (aí por volta do ano de 1942...) afirme que o volume das Obras completas de Nicolau Tolentino é "uma das raras edições portuguesas do século XIX que, não sendo classificável como livro de arte  por excesso de tiragem e modéstia de materiais  é, todavia, um espécime perfeito de livro ilustrado. Pois onde se vê, como nele, uma harmonia tão grande entre o espírito do autor e dp ilustrador da sua obra?" 

— "Nogueira da: Silva não ilustrou mais nenhum livro. Sete anos depois, morreu. Faz de conta que tivemos dezenas de Nogueiras da Silva. Vale lá a pena recordar o seu nome?"


Panorama n.° 30, 1946

Como caricaturista, Francisco Augusto (iamo-nos esquecendo de dizer que eram estes os seus prenomes) foi dos mais engraçados que desde sempre se contam na história da arte nacional. O "D. Quichote" do século XIX e muitas das caricaturas que publicou  acompanhadas de biografias, crónicas e legendas humorísticas da sua autoria  nas "Celebridades contemporâneas", no "Jornal para rir", no "Archivo pittoresco" e noutros periódicos da época, deram brado e fizeram escola. 

A ironia do seu traço, apontada aos ridículos da baixa burguesia, aos narizes-de-cera, às vaidades balofas, era por vezes contundente, mas nunca grosseiramente ofensiva. É que o seu humor provinha menos de ressentimentos, do que de uma visão mais evoluída, ·mais urbana dos homens e das coisas.

Panorama n.° 30, 1946

Nogueira da Silva foi um artista da cidade. Por isso lhe repugnava, mais do que tudo, o "arrivismo", o recem-chegadismo provinciano. E afinal, feitas bem as contas, talvez tenha sido essa pecha da vida portuguesa — tão evidentemente acentuada no seu tempo — a causa fundamental das suas vicissitudes.


(Conforme com o original).

CARLOS QUEIROZ (1)


(1) Panorama n.° 30, 1946

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Almada, a propósito de Nogueira da Silva (I de II)

Fica esta villa fronteira á cidade de Lislooa na outra margem do Tejo. São duas irmãs apartadas que folgam de se estar vendo, assentadas no alto uma e outra e ambas namoradas dos navios que vêm de todo o mundo, rio acima, lançar ferro por entre ellas.

Vista de Almada tomada do Campo de S. Paulo, Nogueira da Silva, grav. Coelho Junior, 1859.
Archivo Pittoresco, Hemeroteca Digital

Lisboa, a morgada, não tem mais escondida, em sombra e fabulas a sua origem, de que. Almada a sua. 

Sôa porém, e se crê, haver esta sido fundada imoles inglezes de Guilherme de Longa-espada, do quem D. Afonso. Henriques se ajudou no arrancar Lisboa oro mouros; e que nome de Amada lhe ficara por corrupção de Vimadel; que na linguagem de então significava povoado grande; nome que da terra se pegou a um nobre seu morador, de quem descende, ao que rezam genealogicos, a esclarecida familia dos Almadas; ainda que outros querem que Almada se appellidasse o sitio, por ser esse. ou com esse parecido, o nume de um arabe (Almades ou Almadão) que alli dominava. 

Conjectura-se todavia que a primeira fundação do logar fôra muito mais antiga, existindo já elle em tempo dos romanos dos romanos com a denominação Caetobrix ou Caetobrica. 

Em nossos dias, na guerra civil em que se pleitearam e sentenciaram a final os direitos da dinastia representou Almada e Cacilhas, que sob dois nomes são uma e mesma povoação, um papel que a historia, seja quem for que a escrever, ha de sempre qualificar por guapamente heroico: d'alai arrancou vôo de águia sobre Lisboa o duque da Terceira, coroando-se com a mais brilhante fortuna a temeridade mais inaudita. 

Ares puros, aguas doces e salubres, abundância de todo o necessario, prospectos infindos terras e mar, tornam Almada sitio mui cobiçado para saude e para regalo, é para as calmas do verão um suplemento de Cintra, se o póde haver, e com duas vantagens: a da economia e da facil e continuada comunicação com Lisboa, por via dos vapores que sem descanso, vão e vêm.

Possue também a sua gloria literária: alli nasceu, viveu, se finou, e jaz sepultado o nosso poeta latino Diogo de Paiva de Andrade. (1)


(1) Archivo Pittoresco n.° 37, 1859

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Ao juiz de fora em Almada, José Barbosa de Carvalho

Ao procedermos a uma busca no arquivo dos recolhimentos da Capital, instalado no recolhimento da Rua da Rosa, encontrámos lá vários documentos que pertenceram ao Dr. José Barbosa de Carvalho, que foi, primeiramente, juiz de fora em Almada, desde 18 de Agosto de 1755 (data do decreto do nomeação), até 24 do Janeiro do 1760 [...]

Vista de Lisboa tomada de Almada, século XVIII.
Museu da Cidade de Lisboa

Prisão de malfeitores por ocasiao do terremoto de 1755

Num ofício, datado de 4 de ,Novembro de 1755 e assinado por Sebastião José de Carvalho o Melo, recomendou-se ao juiz de fora de Almada que examinasse todos quantos passassem pelas terras da sua jurisdição e lançasse mão de todos os viandantes que se não legitimassem.

Marquês de Pombal, Louis-Michel van Loo e Claude-Joseph Vernet, 1767.
Imagem: Oeiras com História

A necessidade desta diligencia vem explicada no começo do oficio nestes termos: 

"Na cidade de Lisboa se espalhou  hum grande numero de ladroens tão deshumanos, e sacrilegos que abusando da calamidade coco que Deos Senhor Nosso nos avisou no dia Primeiro do corrente, acrescentaram a consternação do Povo justamente espavorido persuadindo-o a que se retirasse para longe porque se mandava bombear a cidade, para no abandono em que a puzeram com estas vagas vozes cometterem a seo salvo os muitos, roubos, e sacrillegios, com que despojaram as casas, e os Templos: passando pra essas partes carregados dos mesmos roubos e sacrillegios".

Mantimentos para os povos da Outra-banda e regulamentaçno dos preços das embareaçoes, por ocasião do terremoto

Num oficio datado de 7 do Novómbro do 1755, comunica Sebastião José de Carvalho o Melo (que o assina), ao juiz do fora de Almada, que S. M. tendo ficado muito sensibilizado com a notícia dos estragos causados polo terremoto naquela vila, mandava dizer, polo que respeitava a mantimentos, que êle podia fazer publicar não só na vila, como em todo o sou termo, que, desde o Terreiro do Paço até a Ribeira, se achava estabelecida uma feira abundantíssima do tudo o que era necessário. 

Alegoria ao Terremoto de 1755, João Glama Strobërle (1708–1792).
Wikipédia

Neste documento diz-se que com êle seguia um edital relativo aos barqueiros por ter sido S. M. informado que êles tinham vexado os povos com exorbitâncias, e impedido o comércio humano.
Barcos caellheiros para transporte da Familia Rial, e dos coches, para a Outra-banda

Cada vez que a Família Rial tinha do atravessar o Tejo, o que sucedia freqhentemente, era pelo poderoso ministro do El-Rei D. José expedido um ofício ao juiz de fora de Almada em que lhe ordenava que a certa hora tivesse prontos em determinados sítios da margem direita uns tantos barcos cacilheiros para conduzirem para a margem oposta não só as pessoas riais, como os coches, a acharia, criados, etc., os quais deveriam ser entregues ao Sargento-mor Pedro Teixeira, o conhecido amigo e criado do Soberano, a quem ora sempre cometido o encargo de dirigir os carregamentos.

Acerca do sitio em que se fazia o embarque encontram-se nos oficios as seguintes indicações:

no de 23 de Janeiro de 1756: 17 barcos, no dia seguinte, na "praia da Junqueira";
no do 15 de Maio do 1756: na "praia da Junqueira";

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa (detalhe 6/9),  Bernardo de Caula, 1763.
Biblioteca Nacional de Portugal

no do 29 do Novembro de 1756: 14 barcos no sítio do "Cais do Carvão, junto às Gallés" [conf. Visconde de Castilho: A Ribeira de Lisboa, p. 181. No mesmo livro, a p. 116, diz-se que "O Caes do Carvão, com seu armazem para deposito dessa negra mercancia, era entre dos feio e lugubre". Não se compreende, por isso, como a Familia Rial lá ia embarcar, como se depreendo não só deste ofício, como dum outro adiante citado], de sorte que lá estivessom o mais tardar até a meia-noite do próprio dia à ordem do Pedro Teixeira;

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa (detalhe 8/9),  Bernardo de Caula, 1763.
 Biblioteca Nacional de Portugal

no de 2 do Dezembro do 1756: 12 barcos cacilheiros, na "praia da Junqueira, onde se costumam embarcar as equipagens de S. M.";
no do 8 de Janeiro do 1757: 28 barcos para servido da repartição das riais cavalariças, na "praia da Junqueira";
no do 17 de Novembro do 1757: 11 barcos cacilheiros para a "ponte da Junqueira";
no do 10 do Dezembro do 1757: mandam-se vir barracas do Porto Brandão para a "ponte da Junqueira"; no do 30 do Dezembro do 1757: ordenou Sebastião José de Carvalho ao juiz do Almada que no Domingo, 1.° de Janeiro. de 1758, enviasse 28 barcos cacilheiros para a praia do Forte.da Junqueira, onde deverão estar ao meio-dia. No dia 15 tornaria o mesmo juiz a mandar igual número do barcos ao mesmo sitio, à ordem de Pedro Teixeira;
no de 12 do Dezembro do 1758: 16 barcos cacilheiros, que .deveriam vir sem falta na noite do mesmo dia "portar no Cais do Carvão, junto à fundiçao, onde ordinariantente costumão vir em semelhantes ocasiaens".

Diligência Importante, cometida ao Juiz de fora de Almada (Relacionada com a prisão do Duque de Aveiro) 

"S. Mag.de. he servido, que v. m. na mesma hora, em que receber este Aviso, sem a menor interrupção do tempo passe dessa Vila de Almada ao Porto de Cassilhas com toda a diligencia; e que nelle suspenda v. m. o dezembarque de todas, e quaesquer Pessoas, que ali portarem, de qualquer estado, condição, e qualidade, que sejão, sem excepção algūa; não lhes permittindo de alguma sorte, que possão sahir das embarcação, em que chegarem, desde as seis horas da madrugada athé as quatro da tarde do dia de amanham: E tendo v. m. entendido, que ao tempo, em que permittir os dezembarques, por ser chegada a referida hora; deve dar geral busca á todas as referidas Pessoas; e deve sequestrarlhes, e remetter logo segueos á esta secretaria de Estado todos os Papeis, o cartas, que forem sachados; os quais serão restituidos pela māo de v. m. ás Pessoas, áquem se apprehenderem, depois de se haver nelles feito hua diligencia muito importante para o serviço de deos, e de S. Mag.de"


"Desta forma morreram justiçados...", retrato simbólico do acto da execução dos Távoras.
Biblioteca Nacional de Portugal

"O mesmo Senhor ordena outrosim, que no cato, em que não só no espaço do tempo acima referido, mas ainda depois delle, por todo o sobredito dia, e noite, e pelo dia proximo seguinte, chegue ao caes do mesmo Porto qualquer embarcação, que não seja a publica, o da carreira ordinaria; a qual leve algum passageiro particular; v. m. faça logo apprehensão nello immediatamente, e nos Papeis, e Cartas, que lhe forem achados; mandando-os v. m. acargo de Pessoas seguras entregar na minha mão, ao tempo, em que os for descobrindo sem dilação algūa, para serem logo prezentes á S. Mag.de que ha por muito recomendado á v. m. tudo o referido, debaixo da certeza de que qualquer inesperada omissão, que houvesse aos ditos respeitos poderia ser de grande desserviço das duas Magestades, Divina, e humana. 
Deos guarde a v. m. 

Bellem a 12 de Dezembro do 1758
S.or Juiz de Fora do Almada. 

Thomé Joachim do Costa Corte R.l"

À margem tem mais o seguinte:

"P. S. A ordem retro não comprehende o Ministro, ou Ministros, ou officiaes de guerra, que poderão passar o Rio encarregados de algumas diligencias do Real serviço: Aos quais sómente ordena S. M. que v. m. deixe livremente dezembarcar com os officiaes do justiça, e soldados, que os acompanharem". 

Na mesma data foi dirigido um Aviso aos oficiais de justiça, da guerra, auxiliares e ordenanças para que dessem no juiz do fora de Almada todos os auxílios e socorros que ele lhes declarasse serem-lho necessários para a execução do certas diligências do serviço de Deus e de S. Majestade, e de que se achava pelo dito senhor encarregado no porto de Cacilhas e suas vizinhanças. (Êste documento tem um sêlo do lacre com as armas riais).


Villa Nogueira (Azeitão), Antigo Palácio dos Duques de Aveiro.
Fundação Portimagem

Tendo sido no dia 13 de Dezembro do 1758, do madrugada, que se efectuou a prisão do Duque de Aveiro, em Azeitão, nenhuma dúvida pode haver acerca do fim desta diligencia no pôrto do Cacilhas, ordenada no dia 12 do mesmo mês: Sebastião José do Carvalho, querendo impedir que o Duque lho escapasse das mãos, quando estava prestes a segurá-lo, cercou-o cuidadosamente. 

Junqueira, Maio de 1919. 
Arthur Lamas. (1)



(1) O Archeologo Portuguez

domingo, 5 de julho de 2020

Café Progresso, Largo do Costa Pinto

Quadro n.° 65. (Porphyrio Henriques da Silva) "Largo do Costa Pinto, Cacilhas" [décima quarta exposição da Sociedade Promotora das Bellas-Artes em Portugal, 1887].

Café Progresso.
almaDalmada

Ainda bem que os burros cacilheiros não estão no Largo, porque se pilham o Costa Pinto todo vestido de verde, como Porphyrio o pintou, chamam-lhe um figo, mesmo á porta do café "Progresso", n.° 79.

Café Progresso (fotomontagem).


(1) Pontos nos ii, 26 de maio de 1887

sábado, 13 de junho de 2020

Colóquio/Letras: Romeu Correia, A palmatória

A Palmatória é a biografia teatralizada de Nicolau Tolentino, poeta que viveu em Lisboa entre 1740 e 1810, deixando sinais de uma vida complicada e de uma obra praticamente esquecida nos nossos dias, a não ser em estudos académicos.

Retrato de Nicolau Tolentino, Giuseppe Trono.
Agostinho Araújo, Tipologia votiva e lição literária: o caso Tolentino

O dramaturgo Romeu Correia, já falecido, escreveu uma farsa, como o próprio Autor lhe chama, em tomo da figura do escritor e com algumas reminiscências da sua poesia. Para isso, criou duas personagens através das quais traçou o retrato de Tolentino e da sua «inquieta consciência», nas palavras do criador nosso contemporâneo.

Este procura pôr em confronto o poeta e o que resta da familia, no contexto histórico e social da época, sendo o marquês de Pombal uma sombra poderosa até à morte. Viciado no jogo, Nicolau Tolentino acaba por ser vitima irremediável do seu vício.

No entanto, em A Palmatória a figura dupla do poeta sai diminuída naquilo a que podemos chamar o valor dramático em relação à conflitualidade que surge, por um lado, entre as suas duas irmãs e, por outro, entre estas e outras personagens (as criadas, o pretendente à mão de uma das irmãs que não se decide a casar).


O que parece haver de mais interessante na peça de Romeu Correia tem a ver com o tratamento cómico que confere às personagens das duas irmãs de Tolentino, satirizadas com grande convicção, graças à inveja que as marca (ambas a sofrer pelo mesmo pretendente e pela mãe deste, que parece eterna).

A estas cenas junta-se o conflito provocado pela guerra de que é vítima o soldado que namora a criada Eutásquia, acabando por morrer de fome porque «na guerra tam-bém se morre de fome». Aliás, o cadáver do soldado é devorado pelos cães, numa Lisboa pejada de cães raivosos e de ratazanas.



Na esquerda mão um livro me pintaste,
Na outra a palmatória,
Com carregado, ríspido focinho,
Dictando leis em tribunal de pinho.



A peça de Romeu Correia possui, na linha da obra dramática do Autor, potencialidades que, devidamente exploradas, podem constituir material cénico capaz de proporcionar um espectáculo teatral digno da carreira do dramaturgo.

C. P.  [Carlos Porto ]


(1) Colóquio/Letras, Nicolau Tolentino em farsa

Artigos relacionados:
Colóquio/Letras: Romeu Correia, O Tritão
Colóquio/Letras: Romeu Correia, Cais do Ginjal

Informação relacionada:
Colóquio/Letras, Romeu Correia, O Tritão, Editorial Notícias, 1983
Colóquio/Letras, Romeu Correia, Cais do Ginjal
Colóquio/Letras, Romeu Correia, Nicolau Tolentino em farsa

Tema:
Romeu Correia