segunda-feira, 29 de abril de 2019

Almada e Val de Piedade no diário de Dorothy Quillinan

Seja o que for que tenha provocado o ataque de Byron contra os portugueses parece ter dissipado a raiva do seu sistema, pois fez anjos dos espanhóis, no seguinte passo das suas viagens. Com contrariedade específica à troça de Byron, Dorothy Quillinan, filha de Wordsworth, determinou-se "ajudar a remover os preconceitos que fazem de Portugal uma terra a evitar". A sua permanência em Portugal em 1845 foi registada num diário. (1)

Doroty Quillinan (Dora Wordsworth) (1804-1847).
The Times

*     *
*

Tomámos novamente um barco em Belém e fomos a remos até Almada, no lado oposto do rio. Aqui deixámos os nossos barqueiros, que receberam contentes a soma que tinhamos combinado por nos trazerem tão longe, e por isso lhes demos um pouco mais, "para beber"; subimos a calçada inclinada, a qual se dirige, com belas vistas abaixo e além do rio, para a pequena vila, onde as ruas são sujas, tal como Mr. Southey [Robert Southey] descreve as de Lisboa como tendo sido meio século atrás.

Vista de Lisboa tomada da margem esquerda do Tejo, Joseph Fortuné Séraphin Layraud, 1874.
Musée Saint-Loup, Troyes, no flickr

Pedi para ser levada a uma venda pobre, mas de aparência limpa, e aqui fomos servidos por um belo jovem, de modos superiores à sua condição, que nos trouxe água fresca, serviu-nos vinho do barril, e pôs diante de nós laranjas, mais do que aquelas que pedimos  — laranjas com folhas verdes frescas agarradas  — trouxe-nos facas e pratos, e então, como um verdadeiro cavalheiro  — pois há cavalheiros da moda na natureza  — deixou-nos comer o nosso almoço imperturbados pela sua presença  — deixou-nos na sua loja, o seu balcão a nossa mesa, na qual, num extremo, estavam empilhadas laranjas, garrafas diversas, etc. no outro, atrás do balcão, estavam vários barris grandes de vinho, e alguns, mais pequenos, nas prateleiras acima.

A sala continha pouco mais mobília — nada, creio, excepto um pequeno banco de madeira, que o mestre tirou da parede para nos sentarmos; as paredes não tinham reboco, o telhado sem tecto, o chão de terra batida; a casa apresentava um contraste com o dono que nunca encontraria em Inglaterra.

A princípio, as laranjas não estavam incluídas na sua "conta" e, quando insistimos em pagá-las, "o total de tudo" era de cerca de três "pence" ingleses. Ele saiu para a rua para nos mostrar o caminho para o castelo e, em seguida, cortêsmente deixou-nos.

Rua da Judiaria (Almada), Silva Porto (1879-1893).
Nuno Prates, Casa dos Patudos

Fomos dentro da capela de Santiago, perto da muralha do castelo. Telhado em abóboda de aresta berço (preto e branco) muito notável. O tecto do corpo da capela pintado em painéis.

Igreja de S. Tiago.
Lisbon from Almada, Drawn by Lt. Col. Batty, Engraved by William Miller, c. 1826.
  Wikimedia

Um velho soldado à porta do castelo admitiu-nos, e conduziu-nos por todo o lugar. Castelo, não sei porque assim é chamado, por ser meramente uma fortificação de terra crua [adobe] facetada com pedra. O nosso guia não estava satisfeito em nos mostrar as vistas da muralha mais elevada, e em algumas partes fez-nos andar por três alturas diferentes.

O Tejo de Lisboa a Aldea Gallega é 12 milhas de largo, e por mais tantas milhas cidade acima parece mais um refúgio nascido no mar do que um fugitivo da distante e interior montanha espanhola, de onde viajou cerca de 400 tortuosas milhas, todo o caminho desde as terras selvagens de Albarracin.

Dora Wordsworth (1804-1847) Lisbon, April 14 (1846) see Journal Vol II p. 74.
Dora Wordsworth's Portuguese Sketch book (1845-1846)

As vistas desde o castelo de Almada são boas em todas as direcções: rio acima em direcção de Alhandra, mesmo devante, onde toda a cidade de Lisboa está espalhada à vossa frente, e abaixo da maré até Belém, além, e atrás da qual nascem os altos rochosos e irregulares de Cintra.

Podíamos ver as casas brancas cintilar à luz do sol. A sul está o rico vale da Piedade, de onde Sartorius toma seu título de Visconde, e onde está a sua casa convento — estranho título, estranha casa estranha e estranha história para um blue-jacket [marinheiro de guerra] inglês!

E o galante Admiral Viscount Piety tem outra propriedade conventual em Cintra. Ambas foram compradas com os fundos recebidos do governo português pelos seus serviços a Don Pedro, o subversor das instituições monásticas.

Deixámos o nosso soldado guia, dando-lhe pelo seu incómodo uma pequena gratificação com a qual ficou mais do que satisfeito. Descemos a encosta, pelo lado oposto aquele pelo qual tinhamos subido para o cais de Cacilhas, passando debaixo de muros de jardim, sobre e abaixo dos quais pendiam ramos e festões de bem cheirosas e ricamente coloridas flores de várias espécies, e através de ruas não particularmente limpas, mas não tão sujas como aquelas de Almada.

Antes de alcançarmos o cais tivemos uma multidão ruidosa de barqueiros, cada um apregoado preços  mais baixos que os outros para passagem do rio. O barulho que faziam era tão grande que não podiam escutar Mr. 's assegurar-lhes que necessitávamos de burros e não de barcos.

Cacilhas vista do Tejo, gravura xilográfica, João Pedroso, 1846
O Panorama, n° 18, 1847

Por fim, quando isto foi entendido, a turbulência apenas aumentou, e realmente pensei que Mr. estava prestes a ser demolido entre barqueiros e burriqueiros, quando para minha surpresa, ele gritou para mim, "Venha, , monte este cinzento." Fui imediatamente assistida pela pessoa mais próxima, e perguntei-me por qual magia.

A tempestade foi acalmada. R montou um outro; Mr.  montou um terceiro. Forçámos o nosso caminho através da multidão, seguidos pelo nosso alto, magro, guia de olhos pretos, com o seu barrete escarlate tombando sobre o ombro direito, em direcção à vila, e então à esquerda para o vale da "Piedade". O assunto ficou então arrumado.

"Não falem mas oiçam-me. Quero três burros para nos levarem ao convento da Piedade, e darei seis vinténs cada para irem e voltarem, guia e burros esperam por nós tanto tempo quanto possa ser necessário."

Uma vez a proposta aceite pela pessoa mais próxima dele; os outros donos dos burros ficaram em paz, e pusemo-nos à estrada. Nada particularmente impressionante na aparência do vale que é rodeado de colinas suaves, algumas delas cobertas de pinheiros, sendo que em geral há uma grande procura de madeira em ambos os lados, norte e sul, do Tejo.

Passámos por dentro de um lugar que me lembrou uma aldeia inglesa, ou melhor, irlandesa, com os seus espaços verdejantes, e as suas casas franjeando o verde —  uma corrente lamacenta de água furtivamante passava-lhe através. Uma ponte muito velha e curiosa com três arcos, pequena, baixa, e circular, evidentemente romana, passava sobre a corrente para uma estalagem de aspecto inconfortável, como é costume ver-se em Stanmore com "good entertainment for man and horse" pintado em letras pretas muito grandes nas paredes lavadas de branco; aqui similarmente estava pintado "Casa de Pasto."


Cova da Piedade, Arnaldo Fonseca, 1890
Boletim do Grémio Portuguez d’Amadores Photographicos

— Passámos por várias sebes de aloés e cactos; palmeiras aqui e ali, e bonitas flores por todo o lado.  Vinte minutos de passeio trouxeram-nos ao portão do convento, que é em pedra talhada, e formoso, e sobremontado por uma cruz simples e bonita.

Muito do convento foi destruído, e a parte que resta não é formosa — um lance de pedra destaca-se, a única quebra na longa linha direita da frente. Um criado inglês dirigiu-no através do jardim, onde estava uma bonita imagem, um pequeno moinho, algo como os nossos moinhos de debulha, sombreado por um grupo de palmeiras.

Quinta dos Frades. De Paço do Desembargador d'El Rei a Museu da Cidade de Almada, António Policarpo, 2017.
Rostos

Então subimos as escadas de pedra, entrámos numa sala larga e baixa onde está uma mesa de bilhar, e onde estão pendurados retratos de santos e monges e muita relíquias curiosas de tempos passados. Voltámos à nossa direita através de uma antecâmera onde estavam pendurados mais monges e santos, e ao fim da qual está outra divisão longa e baixa, a sala de estar, com janelas nos três lados — tão bonita esta sala! uma mescla de conforto inglês com frescura portuguesa e riquezas orientais de côr e explendor.

O passatempo do almirante — o lagar de azeite — foi-nos mostrado, e também o foi o lagar de vinho, e a adega, que são as partes mais notáveis do edifício.

Apressámo-nos de volta a Cacilhas, para apanhar o vapor das três em ponto, mas felizmente chegámos um pouco atrasados

Praia de Cacilhas, The Harbour of Lisbon, Charles Henry Seaforth (1801 - c. 1854).
reprodução em colecção particular

— felizmente, porque alguns dos barqueiros barulhentos com os quais já tinhamos falado ofereceram-se para nos transportar por oito vinténs, e fizeram-no, muito agradados, no seu barco muito limpo, com a sua vela triangular, e desembarcaram-nos no "Caes do Sodre."

Passámos perto de três navios de guerra, o "Vasco da Gama," muito novo, "Ferdinando," e "Don Joao."

Barra de Lisboa vista do Caes do Sodré.
 Internet Archive

Tudo o que pagámos pelas grandes e bonitas vistas de hoje, incluindo barcos e barqueiros, burros e burriqueiros, e vinho e laranjas, foram was 5s. [shillings] 6d. [pennies]. Não tivemos problemas com algum dos homens; eles disseram uma vez a soma pela qual se comprometiam a nos levar, estavam contentes com isso, e bem agradados com os poucos pence pagos a mais. (2)


(1) Paul Buck, Lisbon: A Cultural and Literary Companion, Lisbon, Signal Books, 2002
(2) Quillinan, Dorothy (Wordsworth), Journal of a few months' residence in Portugal... London, E. Moxon, 1847

Artigos relacionados:
Francisco Inácio Lopes
O visconde da Piedade
Fragata D. Fernando II e Glória
etc.

Mais informação:
Dora Wordsworth's Portuguese Sketch book (1845-1846)
Referências a Portugal em Wordsworth Trust (incl. Dora Wordsworth sketchbook)
Quillinan, Uma Família Irlandesa em Portugal
Biblioteca Nacional de Portugal
Quillinan, Dorothy (Wordsworth), Journal of a few months' residence in Portugal... Volume 1
Quillinan, Dorothy (Wordsworth), Journal of a few months' residence in Portugal... Volume 2

Leitura relacionada:
Robert Southey on Portugal: Travel Narrative and the Writing of History



QUILLINAN, EDWARD (1791–1851)
poet, born at Oporto on 12 Aug. 1791, was the son of Edward Quillinan, an Irishman of a good but impoverished family, who had become a prosperous wine merchant at Oporto. 
His mother, whose maiden name was Ryan, died soon after her son had been sent, in 1798, to England, to be educated at Roman catholic schools. Returning to Portugal, he entered his father's counting-house, but this distasteful employment ceased upon the French invasion under Junot in 1807, which obliged the family to seek refuge in England. After spending some time without any occupation, he entered the army as a cornet in a cavalry regiment, from which, after seeing some service at Walcheren, he passed into another regiment, stationed at Canterbury. A satirical pamphlet in verse, entitled 'The Ball Room Votaries,' involved him in a series of duels, and compelled him to exchange into the 3rd dragoon guards, with which he served through the latter portion of the Peninsular war. In 1814 he made his first serious essay in poetry by publishing 'Dunluce Castle, a Poem,' which was printed at the Lee Priory Press, 4to; and it was followed by 'Stanzas by the author of Dunluce Castle' (1814, 4to), by 'The Sacrifice of Isabel,' a more important effort (1816); and by 'Elegiac Verses' addressed to Lady Brydges in memory of her son, Grey Matthew Brydges (Lee Priory, 1817, 4to). In 1817 he married Jemima, second daughter of Sir Samuel Egerton Brydges [q.v.], and subsequently served with his regiment in Ireland. In 1819 'Dunluce Castle' attracted the notice of Thomas Hamilton (1789-1842) [q.v.], the original Morgan O'Doherty of 'Blackwood's Magazine,' who ridiculed it in a review entitled 'Poems by a Heavy Dragoon.' Quillinan deferred his rejoinder until 1821, when he attacked Wilson and Lockhart, whom he erroneously supposed to be the writers, in his 'Retort Courteous,' a satire largely consisting of passages from 'Peter's Letters to his Kinsfolk,' done into verse. The misunderstanding was dissipated through the / p.104 / friendly offices of Robert Pearse Gillies [q.v.], and all parties became good friends. In the same year Quillinan retired from the army, and settled at Spring Cottage, between Rydal and Ambleside, and thus in the immediate neighbourhood of Wordsworth, whose poetry he had long devotedly admired. Scarcely was he established there when a tragic fate overtook his wife, who died from the effects of burns, 25 May 1822, leaving two daughters. 
Wordsworth was godfather of the younger daughter, and he wrote an epitaph on Mrs. Quillinan. Distracted with grief, Quillinan fled to the continent, and afterwards lived alternately in London, Paris, Portugal, and Canterbury, until 1841, when he married Wordsworth's daughter, Dorothy (see below).  The union encountered strong opposition on Wordsworth's part, not from dislike of Quillinan, but from dread of losing his daughter's society. He eventually submitted with a good grace, and became fully reconciled to Quillinan, who proved an excellent husband and son-in-law. In 1841 Quillinan published 'The Conspirators,' a three-volume novel, embodying his recollections of military service in Spain and Portugal. In 1843 he appeared in 'Blackwood' as the defender of Wordsworth against Landor, who had attacked his poetry in an imaginary conversation with Porson, published in the magazine. Quillinan's reply was a cento of all the harsh dicta of the erratic critic respecting great poets, and the effect was to invalidate in the mass an indictment whose counts it might not have been easy to answer seriatim. Landor dismissed his remarks as ' Quill-inanities ;' Wordsworth himself is said to have regarded the defence as indiscreet. 
In 1845 the delicate health of his wife induced Quillinan to travel with her for a year in Portugal and Spain, and the excursion produced a charming book from her pen (see below). In 1846 he contributed an extremely valuable article to the ' Quarterly' on Gil Vicente, the Portuguese dramatic poet. In 1847 his second wife died, and four years later (8 July 1851) Quillinan himself died (at Loughrig Holme, Ambleside) of inflammation, occasioned by taking cold upon a fishing excursion ; he was buried in Grasmere churchyard. His latter years had been chiefly employed in translations of Camoens's ' Lusaid,' five books of which were completed, and of Herculano's 'History of Portugal.' The latter, also left imperfect, was never printed ; the 'Lusiad' was published in 1853 by John Adamson [q.v.], another translator of Camoens. 
A selection from Quillinan's original poems, principally lyrical, with a memoir, was published in the same year by William Johnston, the editor of Wordsworth. Quillinan was a sensitive, irritable, but most estimable man. ' All who know him,' says Southey, writing in 1830, 'are very much attached to him.' ' Nowhere,' says Johnston, speaking of his correspondence during his wife's hopeless illness, 'has the writer of this memoir ever seen letters more distinctly marked by manly sense, combined with almost feminine tenderness.' Matthew Arnold in his 'Stanzas in Memory of Edward Quillinan,' speaks of him as ' a man unspoil'd, sweet, generous, and humane.' As an original poet his claims are of the slenderest ; his poems would hardly have been preserved but for the regard due to his personal character and his relationship to Wordsworth. His version of the 'Lusiad,' nevertheless, though wanting his final corrections, has considerable merit, and he might have rendered important service to two countries if he had devoted his life to the translation and illustration of Portuguese literature. 
His wife, DOROTHY QUILLINAN (1804-1847), 
the second child of William Wordsworth, was born on 6 Aug, 1804. She was named after Dorothy Wordsworth, her father's sister. By way of distinguishing her from her aunt, Crabb Robinson used to call her 'Dorina.' The same writer calls her the 'joy and sunshine' of the poet, who saw in her an harmonious blending of the characteristics and lineaments of his wife and sister. 'Dora,' he wrote in 1829, 'is my housekeeper, and did she not hold the pen it would run wild in her praises.' 
She published in 1847 (2 vols, 8vo, Moxon) 'A Journal of a Few Months' Residence in Portugal, and Glimpses of the South of Spain,' dedicated to her father and mother. Wordsworth's later poems contain several allusions to Dora, and she is celebrated in particular along with Edith Southey and Sara Coleridge in 'The Triad.' She died at Rydal Mount on 9 July 1847, and was buried in Grasmere churchyard.
[cf. Dictionary of National Biography, Vol.47]