sábado, 24 de fevereiro de 2018

A SFUAP e a PIDE

A SFUAP (Sociedade Filarmónica União Artística Piedense) é uma Sociedade de largas tradições populares na Cova da Piedade. Tem cerca de 80 anos de existência [est. 1889], é a mais velha colectividade de Almada e a sua banda, com quarenta elementos, a sua biblioteca e o seu grupo cénico, (além da sala de cinema) sempre foram motivo de orgulho da terra pois muitos contribuíram para manter o espírito popular e de união entre os piedenses. 

Cova da Piedade, a sede da SFUAP em 1962.
Imagem : Arquivo Municipal de Lisboa

Daí que a Sociedade tenha cerca de 6000 sócios. Teatro, música, leitura, bailes, futebol (no Clube Desportivo), festas populares e mais tarde cinema, foram sempre actividades que "animaram" o povo da Cova da Piedade.

Até que... em 1960, a Sociedade vê-se a braços com alguns problemas, O número de sócios é cada vez maior, e as instalações vão-se tornando cada vez mais pequenas para comportar tantos sócios, principalmente na altura das festas.

Começa-se assim a pensar no alargamento das instalações da Sociedade. Mas para isso é preciso "muito dinheiro" e só a Câmara de Almada poderia ajudar.

Mas para isso era preciso ter influências lá dentro. Por isso, nesse ano, os sócios resolveram eleger para presidente da Assembleia Geral da Sociedade, o presidente da Junta de Freguesia, Mário Pinto, homem rico, segundo se diz, pois é genro dum grande corticeiro da Cova da Piedade e com "conhecimentos" na Câmara de Almada.


Cova da Piedade, a Junta da Freguesia em 1962.
Imagem : Arquivo Municipal de Lisboa

Instalado o "amigo" Pinto dentro da Sociedade, este resolve convidar o seu particular "amigo" Orlando Soares — funcionário da PIDE, para a Direcção da Sociedade, apresentando-o aos sócios como uma pessoa com muitas influências" e capaz de dar à Sociedade a ajuda desejada.

E assim temos a "Pide" a tomar conta dos destinos desta agremiação popular. Aos poucos vão entrando para a Direcção, os outros comparsas da camarilha do OrlandoDiamantino Xavier, José Maria (um caixeiro viajante), Anselmo (presidente da Comissão de Festas da Nossa Senhora da Piedade),e outros indivíduos (por agora não sabemos o nome deles, em breve poder-se-á informar) jk 

Ingenuamente, o povo da Cova da Piedade tinha-se deixado levar.

Cova da Piedade Largo 5 de Outubro Mercado 02

Em breve vao-se sentir os efeitos da política de tal dírecção: 

— o teatro vai morrendo (não se pode gastar o dinheiro da Sociedade com teatros)
— os bons livros da Biblioteca vao desaparecendo (o ano passado foi queimada a história da Filosofia de Bertrand Russel, publicada em fascículos e a "Vértice") 
— os bailes, antigamente autênticos pretextos para uma boa convivência, tornam-se agora no dizer do povo, numa verdadeira "xungaria" 
— a banda de música quase que deixa de existir 
— o cinema torna-se um foco de mentalização "pro-americana" — filmes de terror e cow-boys a 2$50 por sessão 

O pior ainda é que a Sociedade serve de coio à PIDE, como agente de repressão do povo da Cova da Piedade - a ordem de prisão do Sr. Sim-sim, funcionário do Arsenal do Alfeite, foi redigida por Orlando Soares na Sede da Sociedade. 

Quando se fez uma campanha para a compra de uma ambulância a oferecer para a guerra de Angola, estava o amigo Orlando a querer utilizar os fundos da Sociedade para dar uma contribuiçao e se nao o fez, foi devido à oposição de alguns dos sócios honestos que tiveram conhecimento disso e o impediram.

No entanto nao se chegou a saber se desviou ou nao algum dinheiro da Sociedade. E muito mais coisas que resta ainda averiguar. Por fim eram os ficheiros dos sóciosquase todos os homens da Piedade são sócios da SFUAPque serviam à PIDE para efectuar as suas prisõesServiço facilitado!

Uma telefonadela para o amigo OrlandoOuve lá, fulano, conheces o tipo X? Onde é que ele mora? Onde trabalha?E no outro dia de manhã, às 6 horas, à porta desse amigo, ou à porta do empregolá estava um Volkswagen verde com três pides para o ir buscar Foi assim que sucedeu com vários democratas presos não há muito tempo.

Então e quanto a ajudas à Sociedade, quanto ao seu alargamento? Bom, fizeram-se grandes projectos,  um deles, o projecto da nova sala de espectáculos, até custou 300 contos (só o projecto). 

Construiu-se até - para o povo ver que o amigo Orlando tinha na verdade grandes influênciasuma piscina que importou em cerca de 3500 contos, uma piscina que seria o orgulho do concelho - segundo as suas palavras.

Cova da Piedade, piscina da Sociedade Filarmónica União Artística Piedense, 1966.
Dimensões, em metros: comp. máx., 25; larg. máx., 21; larg. mín., 16; prof. mín., 1,20; prof. máx., 5,40; alt. máx. das pranchas de salto, 15.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

O dinheiro arranjava-se com facilidade, Contraiu-se um empréstimo à Caixa Económica o dinheiro feito nas festas de Nossa Senhora da Piedade (que estava destinado à construção de uma creche) também foi emprestado, puseram-se as entradas para a piscina a 10$00, iam pedir-se uns subsídios à Câmara e o problema resolvia-se. Na verdade está quase resolvido.

Em fins do ano passado os sócios tomam conhecimento que a Sociedade iria ser penhorada pois tinha que pagar imediatamente encargos no valor de 61 contos; dinheiro que a Sociedade não possuía que os cálculos apresentados pelo Orlando Soares tinham saído furadosos sócios não acorriam à tão bela piscina. 

Evidentemente a poucos quilómetros da Costa da Caparica gastando apenas 5$00 numa ida e volta o povo da Cova da Piedade continuava a preferir a praia. E os subsídios da Camarabom, o dinheiro da Câmara nunca ninguém sabe para onde vai!não apareciam.

E depois a piscina não foi muito ao agrado dos sócios e a opinião deles também não tinha sido pedida (aliás nem os consultaram)Só uma coisa resultara na ideia de Orlando: fazer acabar com a SFUAP; tira-la das mãos do povo.

Cova da Piedade, piscina da SFUAP, 1967.

Mas alto lá, povo agora tinha aprendido com esta experiência longa de 8 anos Não se acaba com a sua Sociedade" assim com duas cantigas. 

Ao grito de alarme "A Sociedade vai ser penhorada" acorreram os sócios em massa. Estamos em fins de Dezembro 1967. A Direcção que se mantivera na Sociedade durante 8 anos tinha que apresentar o seu relatório de contas e explicar o que se passava. 

Faz-se uma Assembleia (nunca na Cova da Piedade se fez uma tão grande Assembleiaeram centenas de sócios a encher a sala de espectáculos, a exigir uma explicação). O Orlando Soares aparece mas vendo o caso mal parado desaparece e não põe mais os pés nas Assembleias que se irão seguir.

O povo exige: o julgamento da comissão-pide tem que ser completo, o problema tem que ser esclarecido, façam-se as assembleias que se fizerem. O relatório é feito, a situação torna-se clara para todos. A Direcção fez despesas insuportáveis para a Sociedade, há dinheiro que desapareceu não se sabe para onde. É evidente que os sócios tém sido espoliados.

Então o povo reage, reage fortemente como só ele sabe reagir nestas ocasiões. "Estamos a ser burlados, sim, e a culpa é nossa porque temos medo"é a voz corrente. Um sécio sobe ao palco da sala e diz em voz alta para a assistência:Meus senhores, eu não tenho medo! Quando uma direcção não é capaz de dirigir uma sociedade o melhor é ir-se embora.Apoiado! Nós também nãotemos medogrita a multidão na salaFora, fora com eles! É a apoteose final. 

A Direcção é obrigada a demitir-se, levando "em cima" um voto de desconfiança de todos os sócios. O Conselho Fiscal recusa-se a aprovar o relatório de contas (Está falseado! - afirmam os sócios entre si). 

É eleita uma nova Direcção, constituída agora por sócios que já deram garantias de seriedade noutras instituições da terra. Aliás o seu programa para já, é mesmo democrático: os problemas da sociedade serão resolvidos se todos quiserem colaborar.

Programa do 79.° Aniversário da Sociedade Filarmónica União Artística Piedense (23/10/1968).
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

O povo começou a organizar-se. Formou-se já uma "comissão de angariação de fundos", com 15 elementos, que tém vindo a pedir dinheiro a toda a gente (batem a todas as portas). Já conseguiram arranjar mais do que é necessário para pagar a dívida mais imediata: os 61 contos de encargos. Alias as sociedades irmãs lá da terra, prontificaram-se a dar uma grande ajuda. Até as mais pequeninas, com muitos sacrifícios. É verdade, não quiseram deixar de participar neste acto de solidariedade.

A Sociedade, por um descargo de consciéncia ainda, resolveu pedir a ajuda da Câmara. Que ao menos lhes desse agua para a piscina. Mas foi uma nova ilusão. "O Senhor Presidente" informa que a Câmara não pode "fornecer agua de borla". 

Mais uma liçào que aproveitará muito ao povo. Agora todos começam a convencer-se de que só eles é que poderão e saberão construir. Começa a surgir um movimento de unidade ente as colectividades populares, não só da zona, mas de toda a margem Sul.

A SFUAP fez um apelo a todas as outras Sociedades para que a ajudem a resolver os seus problemas. Quanto ao "Orlando" parece que as coisas estao a correr mal. A sua demissão deu tal brado que segundo consta vai ser transferido para a cidade da Guarda. Atenção Guarda mais um patife para a vossa terra.

NOTAS

Acerca destes indivíduos, não consta que sejam da Pide, mas sempre se prestaram a colaborar com o Orlando e a manter-se com ele na Direcção.

Uma outra actividade dos pides: o Orlando e camarilha tém um programa de radio, chamado "Imagens Piedenses" [emitido entre 18 de Abril de 1966 e 25 de Abril de 1974] e transmitida pelos "Emissores Associados de Lisboa" aos domingos de manhã. 

A coberto deste "programa, o reporter do Orlando "metia-se em todas as realizações das colectividades do concelho para gravar conversas. Pez isto especialmente na Homenagem feita pelas colectividades da Piedade e do Laranjeiro ao escritor Ferreira de Castro.

Ferreira de Castro na Cooperativa de Consumo Piedense, 1964.
Imagem: Memórias e Identidades da Cooperativa de Consumo Piedense

Depois mais tarde, cem uma grande lata, informou alguns amigas que e pide o tinha abordado e lhe levara as fitas de gravação [...] (1)


(1) Casa Comum, A PIDE foi expulsa da Cova da Piedade, 1967

Artigo relacionado:
SFUAP, origens, teatro e escola

Mais informação:
Casa Comum, Relato de situação na Sociedade Filarmónica União Artistica Piedense, 1967
Diário de Lisboa, 16 de janeiro de 1968