quinta-feira, 31 de março de 2016

História de uma burra

Ouvimos contar o caso, e vamos confial-o á letra redonda para que d'elle se não perca a memoria.

Trafaria (Portugal), Vista geral e rio Tejo, ed. Martins/Martins & Silva, 28, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Tinha tido o porte airoso, as veias de uma transparência aristocrática, o olhar de uma suavidade indizível. Comera pouco, como esses entes quasi ideaes que pisam as alcatifas avelludadas das salas sem as acamar, e não haveria sido uma intrusa na verídica narrativa de uma reunião do "high-life".

Tinha dezeseis annos, a idade florente dos sonhos, dos desejos, dos caprichos para todas as do mesmo sexo, mas não da mesma raça... A protogonista da nossa historia é uma burra!

Dezeseis annos são na mulher a idade da walsa, das confidencias, das meias revelações. Na raça asinina são o desconsolo, a tristeza, a velhice, com todos os seus desencantamentos.

A protogonista da nossa historia nasceu na Trafaria, e pertencia, ou pertence... N'esta duvida entre o passado e o presente é que vai envolvido o mysterio de que tiramos esta verídica narrativa.

Ha na Trafaria um homem chamado Roberto, directo senhor de uma vacca, de meia dúzia de cabras, e de uns torrões pouco productivos, como quasi todos os que ficam ao sopé do monte de Caparica, antigo solar do snr. marquez de Vallada, denunciado ainda hoje ao vulgo por dous palácios em completas ruinas, como convém á velha fidalguia de sangue.

Caparica, Pera, casa de campo, anteriormente pertencente ao Marquês de Valada, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

O Roberto é um homem de cincoenta e tantos annos, que faz pela vida, que deita a pé seis léguas, ou mais se lhe forem precisas para o seu trafego, mas que precisa de um animal seguro de pernas, e de pouco alimento, que o aligeire das cargas mais pesadas quando tem de deitar até Cacilhas, ou levar a sua cara-metade ao cyrio de Nossa Senhora do Cabo.

Previdente como um labutador consciencioso, o Roberto comprou uma burra em 1868, quasi nas vésperas do snr. bispo de Vizeu trocar temporáriamente o báculo pela presidência do conselho de ministros.

Bispo de Vizeu, 1880.
Album de Glorias, Raphael Bordallo Pinheiro.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A Janota, assim se chama a burra, tinha já então sete annos, e não se podia gabar de haver levado boa vida nas mãos de um moleiro, que lhe amolgava diariamente o espinhaço com três ou quatro saccas de farinha, aproveitando-lhe o préstimo nas horas vagas, carregando-a com pyramidaes cargas de tojo.

Moinho e moleiro do Oeste, Domingos Alvão, 1934.
Imagem: Moinhos de Portugal no Facebook

Apesar de todos os pezares, a jumenta era jovial, e aparentada, no dizer dos entendedores de genealogias, com o feliz quadrúpede que o príncipe de Galles comprou em Cintra, para levar para Inglaterra, como um specimen dos productos naturaes da terra dos seus fieis alliados, receando que não lhe chegassem frescas a Londres as queijadas da Sapa.

Podem os bons exemplos deixar de ter imitadores, mas ainda não houve absurdo governativo que deixasse de fazer proselytos. A fúria das economias andava então no ar como o pó, e o Roberto que se não pôde gabar de ter um engenho original, deitou-se a imitar o programma do snr. bispo de Vizeu, pondo a burra a meia ração, como o illustre prelado fizera aos empregados públicos!

As consequências d'este systema económico não tardaram a chegar. A burra que nunca fizera cara ao trabalho, que não exigia mesmo gratificação de palhada para dar conta de qualquer missão espinhosa, começou a definhar de dia para dia, a olhar indifferente para a vacca que girava como ella debaixo da mesma firma commercial, até que deixou pender a cabeça sobre a manjedoura, na altitude resignada de uma beata que adormeceu a rezar o terço.

Era uma victima do orçamento particular do dono. Uma consócia insciente dos planos financeiros da época.

A instrucção publica: a grande burra, Raphael Bordallo Pinheiro, A Parodia, n.° 53, 1901.
Imagem: Hemeroteca Digital

Agora vai começar a parte sentimental d'esta historia. Que pensa o leitor que fez Roberto ao seu braço direito, á burra que tinha incontestável direito a ser aposentada com a ração por inteiro, e a passar os últimos dias da vida, não digo cavaqueando na botica do bairro, com um empregado publico aposentado, mas retouçando livre da albarda a rara verdura que esmeralda o caminho da Sobreda?

Zé Povinho, 1880.
Album de Glorias, Raphael Bordallo Pinheiro.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Mandou-a deitar á margem!

Á margem! São duas palavras só, mas significam o inferno e a eternidade, como de um bipede seu cliente disse o visconde de Castilho, na sua immortal epistola á imperatriz do Brazil.

Á sentença seguiu-se a execução. A burra, a Janota, a intrépida caminheira, a paciente carregadora, foi levada de corda ao pescoço até os juncaes, e lá abandonada ao seu destino, para meditar, se o soubesse fazer, na injustiça dos homens, e na instabilidade da fortuna.

O que são os juncaes? Perguntai-o a Bulhão Pato, ao intrépido caçador, ao apaixonado pelas grandezas da natureza, mesmo nas suas mais agrestes manifestações; ao poeta, que por amar as boninas não deixa de bemquerer ao rosmaninho, nem de se affeiçoar ao sargaço que orla os trilhos tortuosos que conduzem ao topo das encostas escabrosas.

Bulhão Pato, 1880.
Album de Glorias, Raphael Bordallo Pinheiro.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Os juncaes são, a palavra o está dizendo, um terreno húmido e encharcado, tendo por docel um céo esplendido, e por usuaes povoadores inhospitos coelhos, espertas codornizes, rastejadoras perdizes, e, fendendo os ares em desencontrados rumos, espavoridas gaivotas, e ruidosas aves de rapina.

Os juncaes, que nascem e crescem onde as demais plantas degeneram e morrem, acoutam no intrincado labyrintho das suas emmaranhadas raizes os coelhos e as perdizes que o meu amigo Bulhão Pato desaloja dos seus tranquillos coutos, para os ferir de morte na carreira, ou as fazer desabar das alturas, até o desenvolto perdigueiro as ir topar adormecidas na alfombra, para não mais acordarem.

Foi, como dissemos, nos juncaes que a Janota foi abandonada ás vicissitudes da vida errante, ás intempéries das estações, ao desconsolo da solidão, ás misérias do isolamento!

Mas a Providencia é a mãi pródiga dos desvalidos, e reveste as formas que mais lhe apraz para valer á mais humilde das suas creaturas. Havia quasi uma semana que a Janota divagava por entre os juncaes, aspirando as brizas marinhas, e retemperando os pulmões com os perfumes agrestes do trevo e da margacinha, quando em um sabbado, por isso chamam aos sabbados de Nossa Senhora, a Providencia, representada por José Ghumeco, foi topar com a burra dormindo a sesta, com a tranquilhdade de um justo, zurrando por entre sonhos a palavra perdão.

Confesso que sou amigo do Ghumeco, mas não falsearei a minha historia com episódios que eu nâo haja apurado da tradição oral confrontada depois conscienciosamente com os factos subsequentes, que recommendam o nosso homem á benevolência da sociedade protectora dos animaes.

José Ghumeco é um maritimo, nado e creado ná Trafaria, que se sente mais á vontade empunhando um remo, colhendo uma vela, retorcendo um cabo deitando uma rede, conjecturando os ventos, prognosticando temporaes, do que muitos ministros com as pastas, e muitos poetas com a idéa nova.

Trafaria, Vista da Praia, ed. Manuel Henriques, 15, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

O vocabulário do Ghumeco é um vocabulário excepcional, pitoresco, novo, abundante. A alma anda-lhe lavada de ruins paixões. Aprendeu com o mar a serenar logo depois da tempestade. Se lhe escapa uma ruim palavra, conhece que o vento lhe veio de travessia, e põe-se á capa. É pai de uns poucos de mocetões que parece terem sido inventados para o mar, e casado com uma santa mulher que o remenda, e lhe diz quando as ondas não estão para graças:

— Ó homem! se eu fosse a ti não me mettia a tentar a Deus!

A que o Ghumeco responde invariavelmente:

— Á conta de quem pôde, é que a gente anda cá n'este mundo!

Era um sabbado, por signal a 23 de janeiro de 1877, ia o nosso homem para a costa, ver colher uma d'aquellas redes colossaes que trazem á terra dúzias de contos de reis em sardinha, quando, ao passar pelos juncaes, estacou ao ver a Janota que se espreguiçava vergando as pernas com o esforço que fazia para tomar conhecimento de si, com o pello hirto e aguado, denuncia muda da sua involuntária vadiagem.

O Ghumeco chamou-a. O instincto, que nos animaes presta para mais do que o raciocinio em alguns homens, disse a Janota que era chegado o termo dos seus males. Encabritando-se, como nos tempos felizes em que a cevada a estimulava ás caminhadas que a tradição ainda hoje commemora, e despedindo dous alegres couces, prenuncio dos mais que havia despedir pelo correr dos tempos, aproximou-se do Robinson que a chamava, attrahindo-a com a engenhosa bonhomia de um missionário, e a rude franqueza do homem do mar.

Novos horisontes se vão rasgar agora para a invalida que o dono não soubera apreciar recorrendo aos segredos das hervas medicinaes, ou coníiando-a á sciencia de um ferrador, perito no tratamento das pneumonias agudas.

A primeira quarta de cevada que a Janota viu diante de si em improvisada manjadoura de vime, foi como um convite á vida alegre e folgazã de outros tempos. A palhada, adubada de semea fina, produziu na organisação robusta da Janota melhor effeito que a "Revalescière du Barry", nos temperamentos lymphaticos das filhas de um portuguez recambiado de Pernambuco pela sociabilidade dos naturaes da terra.

No fim de um mez a burra afoutou-se a poder com a albarda para experiência. Na primavera seguinte, quando o cuco serve de calendário á gente do campo, já ella carregava uma moçoila desempenada, e, soberba de carga tão formosa, galgava chotando, onde as suas congéneres se enterravam na areia, e atrevo-me a dizel-o (Deus queira que me não venham trabalhos da sinceridade) que nunca até hoje o hippodromo de Belém deu premio de consolação, ou de qualquer outro nome, a bicho capaz de se lhe avantajar na carreira.

Costa da Caparica, transporte de mercadoria pelas dunas, década de 1920.
Imagem: Espólio Agro Ferreira

Desculpem-me os sócios do "Jockey-Club" esta minha opinião, que julgo não ser isolada. Se o meu respeitável amigo o snr. conselheiro Moraes Soares, não toma a serio o apuramento da raça cavallar, receio que os burros venham a ser trunfo nas corridas. .. de cavallos.

Vamos ao caso.

Não ha obra de caridade que Deus deixe sem recompensa. A Janota veio a ser a auxiliar do Ghumeco, não o seu ganha-pão exclusivo, mas uma fatia do seu pão quotidiano. Quem hoje quer alugar a burra que os juncaes viram magra, extenuada, lazarenta, tem que metter empenhos para o conseguir. O Chumeco põe a mão na ilharga, marca-lhe o preço, e não desce d'elle nem um real.

— É para quem pôde, responde invariavelmente o dono. Isto não é animal que se fie de quem não entende da poda.

Proferimos a palavra fatal: — dono!

O dono! Mas quem é o dono? A esta interrogação ha-de responder-se em Almada ao acabarem as férias judiciaes, visto que o Roberto chama hoje seu ao que mandou deitar fora, e o Chumeco se agarra á sua propriedade, mal comparado como uma ama de leite diz ser sua a criança que os pães abandonaram. Para este caso intrincado duvidamos que possa ser applicado com bom resultado o juizo de Salomão; mas recorda-nos quasi que a propósito, a tenacidade com que um verdadeiro sábio e homem de bem — o virtuoso Condorcet — preferiu sempre a mulher do povo que o creára, á mãi desnaturada que á nascença o entregara á caridade do municipio.

Almada. Rua Direita e Egreja de S. Paulo Câmara Municipal, ed. Martins/Martins & Silva, 31, c. 1900
Imagem: Fundação Portimagem

Nós não queremos prevenir julgamentos, mas respondam-nos em consciência: não representará o Roberto n'esta historia o papel de um amante volúvel, que só deixa accender no coração os bons affectos, quando vê feliz e alegre em poder de outro a mulher que elle levou á perdição e á miséria?

Sophia Loren e Marcello Mastroianni, Ieri, Oggi, Domani, Vittorio De Sica, 1963.
Imagem: rebloggy

Não significará o Chumeco n'esta singela historia, a Providencia dos dramas chamados realistas, onde a convenção theatral manda entrar uma figura que enxuga todas as lagrimas e consola todas as afflicções?

Esta historia por ser de uma burra, não terá a sua moralidade como os apologos de Lafontaine? Nós cremos que tem.

Marquez d'Ávila e de Bolama, 1880.
Album de Glorias, Raphael Bordallo Pinheiro.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Hontem ainda, 15 de setembro de 1877, sendo pretor o snr. marquez d'Ávila e de Bolama, vimos a burra que o Chumeco conserva por em quanto em seu poder, e podemos attestar que nos olhou... como quem reconhecia em nós o apologista do seu bemfeitor. (1)


(1) Luiz Augusto Palmeirim, Galeria de figuras portuguezas,  Porto e Braga, Liv. Internacional de Ernesto Chardron, 1879  

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O pântano
O Juncal

Tema:
Trafaria

terça-feira, 29 de março de 2016

O Almadense

Um jornal chamado  "O Almadense" [semanario litterario e recreativo, 1855-1856, red. Nicolau de Brito e Eduardo Tavares] que se publicou por mais de dois annos, e que mereceu n'um artigo de Tavares as honras de se referir a elle o sr. Antonio Rodrigues Sampaio, n'um artigo da "Revolução de Setembro" que n'essa epocha dava as cartas em tudo, politica, letras e noticias.

O Almadense, domingo 2 de dezembro de 1855.
Imagem: Casario do Ginjal

O escriptorio de "O Almadense"  uma lojasita em Almada [Cacilhas], que Eduardo Tavares tinha alugado por uma nobre ostentação jornalistica, era situado no largo, junto da igreja, e servia para os redactores dormirem pelo tempo das festas do S. João e dos cyrios da Atalaia; no resto do anno estava fechada, e nunca houve exemplo de ir um assignante perturbar o silencio d'aquella moradia.

Cacilhas (Portugal), Largo do Costa Pinto, ed. Martins/Martins & Silva, 18, década de 1900
Imagem: Delcampe

No vapor é que se tratava tudo, e no caes. nosso distribuidor era um burriqueiro; quando elle tinha mais que fazer, distribuiamos nós a folha por aquella rua de Cacilhas adiante, Nìcolau de Brito pelas casas da direita, eu pelas da esquerda, Roussado pelo melo da rua às pessoas que vinbam ou iam.

Rua Direita — Cacilhas, ed. desc., década de 1900
Imagem: Delcampe, Oliveira

Eduardo Tavares, de lista de assignantes na mão, ia-nos indicando os numeros das portas onde deviamos bater, e o nome a quem era destinado o periodico.

Foi uma grande publicação. Só o que ali se moeu a camara de Almada por causa de um boi que entrara no cemiterio, por ver a porta aberta, e fora tasquinhando na relva que encontrou por aquelle campo dos mortos!

Almada (Portugal), Vista geral, ed. Martins/Martins & Silva, 30, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Vimos n'isto um desacato horroroso; e Tavares, que já n'esse tempo se destinava à politica, deu aquella respeitavel camara as primicias da sua austeridade e intransigencia, que mais tarde no parlamento se téem feito sentir de vez em quando. (1)


(1) Júlio César Machado, Cláudio Lisboa, Empreza Editora Carvalho & C.a, 1852

Biografia de Eduardo Tavares

segunda-feira, 28 de março de 2016

Praia do Alfeite e Lavadeiras na Romeira

D'entre os quadros expostos pelo sr. Antonio Ramalho, um rapaz que começa, com uma bella arrogancia sustentada por um temperamento robusto d'artista, o intitulado "Praia do Alfeite" (n.° 31) é um dos mais notaveis.

Praia do Alfeite — Quadro de Ramalho Junior comprado pelo sr. Dr. Luiz Jardim (desenho do mesmo auctor), 1882.
Imagem: Hemeroteca Digital

Ha n'elle uma riqueza enorme de tons amarellos, largamente espalhados por toda a parte, — nos altos saibros que se levantam pesadamente á esquerda, no areial immenso que vem descendo até ao rio, e ainda em mais saibros que se alastram, lá ao fundo, reflectindo-se fortemente nas aguas quietas.

Até, uma pobre mulher que está toda curvada para o chão no primeiro plano, sobre a areia, tem uma saia amarella! Entretanto, todos aquelles tons embaraçosos foram achados com uma felicidade rara, excepto o do grande areial, que é alvejante de mais frio.

As figuras elegantes das banhistas que passeiam na praia, umas de toilettes simples mas vistosas, e com sombrinhas listradas, outras de lucto, funereas, são d'um desenho primoroso ; e o rapazito que sentado na areia n'ella enterra as mãos, entretido e deliciado, é realmente uma nota curiosa diurna observação feliz.

Na praia do Alfeite, finais do século XIX.
Imagem: Museu da Cidade de Almada

As aguas, d'um socego somnolento, são soberbamente tocadas, bordadas d'espumas claras e manchadas d'esverdeamentos fluctuantes d'algas. E todo o quadro, com o monte verdejante que, salpicado de casarias brancas, vae subindo, ao fundo, até ao azul sereno da atmosphera inundada de sol, é d'uma perspectiva excellente, e d'urn effeito geral esplendido.

Quadro d'uma execução muito feliz, as "Lavadeiras. na Romeira" (n.° 35). No primeiro plano, ao meio d'um largo prado atapetado de relvas frescas, d'um verde tenro, ha uma grande poça cheia d'aguas ensaboadas, de roda da qual as lavadeiras atarefadas, umas em pé e outras de joelhos, sacodem, ensaboam, e esfregam valentemente as suas roupas, numa faina dura sem duvida alegrada por conversas mexeriqueiras; as figuras rudes d estas mulheres, de mangas arregaçadas, vestidos molhados e lenços baratos de cores diversas na cabeça e nos hombros, são d'um desenho bem indicado, vigoroso; — apenas se pôde notar em algumas d'ellas uma certa transparencia, verdadeiramente inexplicavel. 

Lavadeiras na Romeira, Alfeite — Quadro de Ramalho Junior comprado pelo sr. Pereira da Costa, 1882.
Imagem: Hemeroteca Digital

Á esquerda, sobre uns ramos verdes, estão a enxugar varias roupas, brancas e de côr; depois, estende-se uma espessura de grandes choupos, de ramarias esbranquiçadas e redondas, e por cima d'uns saibros muito escuros que correm a todo o fundo até á direita, perfila-se um canavial extenso, por traz do qual apparecem confusamente manchas irregulares de pinheiros mansos melancolicos.

É um dia de outomno, humido, e a atmosphera um tanto brumosa escorre como que uma penetrante frescura triste.

Arredores de Lisboa: na Romeira próximo da Cova da Piedade — Um lavadouro, 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

Este quadro, tocado com uma espontaneidade soberba, é d'uma impressão profunda, bem sentida pelo artista; e só a franqueza rapida e sincera com que está pintado é que fez que alguns pontos se achem quasi que apenas ligeiramente esboçados,— o que, ainda assim, nada prejudica o çonjuncto admiravel da tela. (1)


(1) O Occidente, n.° 115, 1 de Março de 1882

sexta-feira, 25 de março de 2016

O dragoeiro

No Jardim Botânico da Ajuda havia um dragoeiro de tamanho desconforme, e cuja sombra era propicia aos idyllios.

Lisboa, Vista do Paço da Ajuda, Louis Lebreton, c.1850.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Um dia a Bella Infanta abrigara-se de um aguaceiro n'aquelle asylo de Vénus com o moço inglez.

Princesa, Maria da Glória, futura rainha D Maria II, 1833.
Imagem: Wikipédia

De súbito apparece o jardineiro. O inglez tirou do bolso uma pistola e ia a desfechar com elle quando a Infanta, n'um bom impulso, lhe teve mão. O jardineiro, nos meus primeiros tempos da Ajuda, seria homem dos seus sessenta annos, e contava o caso a toda a gente.

Vista de Lisboa — Tejo e Palácio da Ajuda, Isaías Newton (1838-1921), 1859.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Garrett, passando o verão de 1849 na casa de Herculano, improvisou a lápis, debaixo da sombrio dragoeiro, os versos das "Folhas cahidas" que se intitulam: "Gôso e Dôr". (1)

Na tapada d'Ajuda, Arthur Loureiro, 1879.
Imagem: Hemeroteca Digital

Se estou contente, querida,
Com està immensa ternura
De que me enche o teu amor?
— Não. Ai! não; falta-me a vida,
Succumbe-me a alma a ventura:
excesso do góso é dor.

A Ajuda vista das Necessidades, Charles Landseer, 1825.
Imagem: Instituto Moreira Salles

Doe-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua belleza,
Nào sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.

Paisagem e rio Tejo, Isaías Newton (1838-1921).
Imagem: Cabral Moncada Leilões

É que não ha ser bastante
Para este gosar sem fim 
Que me inunda o coração.
Tremo d'elle, e delirante
Sinto que se exhaure em mim
Ou a vida — ou a razão... (2)

O Tejo visto do Alto da Ajuda, Casimir Leberthais (????-1852).
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Quantos suspiros de amantes não terá ouvido o monstro vegetal! (3)

Dracaena draco do jardim do Paço Real d'Ajuda, 1879.
Imagem: Mãos Verdes


(1) Bulhão Pato, Memórias Vol. III, Quadrinhos de outras éphocas, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1907
(2) Almeida Garrett, Folhas cahidas, Lisboa, Em casa da viúva Bertrand e filhos, 1853
(3) Bulhão Pato, Idem

Informação relacionada:
Archivo Pittoresco, n.° 27, 1862

Archivo Pittoresco, n.° 28, 1862

sábado, 19 de março de 2016

Da Ramalhinha aos Crastos

A Ramalha situa-se na margem esquerda de uma antiga linha de água, sendo Miocénicos (22.5 milhões de anos a 5 milhões de anos) os terrenos do planalto e Plio-Plistocénicos (5 milhões de anos a 10 mil anos) os da zona mais próxima da linha de água.

Lugar da Ramalha, restauro da capela e edifício (infantário e creche), 2007.
Imagem: Guias de Arquitectura

As diversas estações arqueológicas existentes na zona, localizam-se desde o alto do planalto até à zona de planície e foram identificadas quer através de prospecção sistemática (que vimos fazendo de alguns anos a esta parte), quer pela observação de taludes junto a velhos caminhos ou novas vias, remoção de terrenos para obras diversas, etc.

As construções na Ramalha.
Imagem: Revista Al-Madan, n.° 3, 1984

Em 1976 Carlos Tavares da Silva escavou, de colaboração com o Centro de Arqueologia de Almada e o Museu de Arqueologia e Etnografia da Assembleia Distrital de Setúbal, a estação Neolítica da Ramalha, trabalho que, contrariamente à vontade de todos, não foi ainda possível tornar público.

Aspecto da intervenção arqueológica na estação neolítica na Ramalha, 1976.
Imagem: Revista Al-Madan, n.° 3, 1984

Já em 1983, a estação foi soterrada por algumas toneladas de terra sobre as quais se construiu um parque de estacionamento.

Pela mesma data (1976) e sob a orientação de elementos do Grupo para o Estudo do Paleolitico Portugués (GEPP). realizou-se uma sondagem em área onde se tinham recolhido à superfície alguns instrumentos líticos. 

Porém, as expectativas em relação a esta sondagem, cujos resultados publicaremos brevemente, foram também elas goradas pelas terraplanagens levadas a cabo em 1984 — a estação desapareceu na totalidade. 

Mas outros vestígios foi possível detectar. Assim, da Idade do Bronze encontraram-se alguns materiais num talude à beira da estrada, no local mais elevado do planalto. São na maioria fragmentos de cerâmica de formas carenadas e de grandes vasilhas de armazenamento. 

No mesmo talude eram visíveis restos de estruturas de habitat (fundo de cabana). O talude tem vindo a desmoronar-se por acção das intempéries. Do período Romano foram recolhidos materiais em dois taludes situados a meia encosta — sigillata cinzenta estampada, opus signinum, cerâmica comum, etc. 

Na área atrás referida mas num outro talude. detectaram-se vestígios de construções, inúmeros fragmentos de cerâmica pintada e restos alimentares (cascas de bivalves e ossos de diversos animais), espólio que pensamos poder atribuir-se ao período de ocupação Muçulmana. 

Também os restos de algumas edificações da Quinta dos Castros poderão ter pertencido à antiga ermida de Sto. Antào (Séc. XIV) de que resta hoje, na capela de S. João, uma lápide, dedicatória de um nobre e sua mulher. 

Lápide na parede exterior da capela:
À honra de Deus e Santo Antão,
este Oratório mandou fazer Fernão Gomes
e Mexia Vasques Farinha, no ano de 1456

Imagem: Revista Al-Madan, n.° 3, 1984

Em face do exposto e porque passou já à fase de execução o plano de urbanização da Ramalha. parecem-nos pertinentes algumas considerações. A Ramalha foi até há pouco tempo uma área suburbana e agrícola, uma comunidade cheia de tradições, perfeitamente distinta de outros núcleos populacionais do Concelho.

Aí poderíamos encontrar, como em nenhum outro local, uma forte consciência do passado, uma consciência orgulhosa da ancestralidade da terra e das suas gentes; um passado em que a lenda e a História se confundem na memória colectiva, materializadas em tradições seculares de que são exemplo as festividades de S. João Batista, misto de paganismo e religiosidade.

Uma tarde na Ramalha.
Imagem: José Pereira

Hoje, porém, se a alguns interessa saber "quem fomos", destrinçar a lenda da História, conhecer essas "raízes" de que justamente se orgulham as populações, enfim enriquecer a nossa vivência pelo contacto com a experiência de outros homens que aqui viveram, a outros, pelo contrário, não só tal preocupação é alheia como parecem apostados na eliminação pura e simples de todos os vestígios materiais desse nosso passado, comprometendo assim irremediavelmente o seu conhecimento.

Discursos de gente importante (vinda do "senso comum" tal opinião seria compreensível), veiculam a ideia de que do Passado nada de importante (leia-se "monumental") sobreviveu em Almada [...]

No caso da Ramalha, o projecto de urbanização implica a sua destruição histórica. paisagística e ecológica! Mas este não é um caso isolado da alteração de fachadas pela utilização de materiais inadequados. corno o aluminio, à destruição de estações arqueológicas, vai acontecendo de tudo um pouco [...]

Vestígios de balneário romano na antiga Quinta da Ramalha, 1947.
Imagem: Fundação Mário Soares

A situação criada na Ramalha é já irreversível. Julgamo-nos. no entanto. na obrigação de. pelo menos, recuperar os vestígios do passado desta terra cada vez mais "sem rosto". Por esse motivo solicitámos uma reunião com responsáveis camarários e autorização de escavação ao organismo competente (IPPC). Aguardamos as respostas [...] (1)

Capela da Ramalha, década de 1970.
Imagem: almaDalmada

--ooOoo--

No dia seguinte celebrava-se a festa de S. João na capella da quinta da Ramalha, havia procissão, e depois saía a celebrada dança dos pausinhos, assim chamada por levarem os pares uns bordões pintados de vivas cores, com que faziam muitas sortes e passos agradaveis; e quem diante d'ella ia e a dirigia era Pedro Marques, de casaca de esteira, caraça preta e grande chapéo armado, montado n'um jumento, e com o rosto voltado para a cauda do animal [paródia ao castigo aplicado ao marido submisso] (ler mais...) (2)

A jornada de um heroi moderno para a ilha de Elba,, gravura de 1814.
Imagem: British Library


(1) Em Almada cf. Ana Luisa Duarte, Revista Al-Madan nº 3, Almada, Centro de Arqueologia de Almada, maio/novembro de 1984
(2)  António Avelino Amaro da Silva, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863

Informação relacionada:
Oratório de Santo Antão da Ramalha

quinta-feira, 17 de março de 2016

Crianças a banhos na Trafaria em 1909

As Juntas de Parochia de Lisboa continuam levando aos banhos da Trafaria as creanças pobres da cidade [reportagem fotográfica de Joshua Benoliel, publicada em 1909 na Illustração Portugueza e em O Século, e cujos originais hoje se encontam dispersos por vários arquivos].

As 400 creanças das 13 freguezias de Lisboa, que constituem o 2.° turno dos banhos.
Imagem: Hemeroteca Digital

Os srs. Maurício da Luz Alves e Bernardo de Araújo da commissão executiva.
Os srs. Paes Leal, Ricardo Covões e Rodrigues Simões da commissão executiva.
Imagem: Hemeroteca Digital

O sr. Jorge Pinto vigiando o embarque no caes do Posto de Desinfecção.
O sr. Carlos Gomes Correia inspeccionando a distribuição dos fatos de banho a uma freguezia.
Imagem: Hemeroteca Digital

O sr. Morato, sócio da Cruz Vermelha, examinando uma criança.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Crianças protegidas pelas Juntas de Freguesias de Lisboa na praia da Trafaria, 1909.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O almoço na praia.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Mademoiselle Flora Cardoso distribuindo o pão.
Imagem: Hemeroteca Digital

O sr. Domingos Marques Cardoso dirigindo a distribuição do pão.
Imagem: Hemeroteca Digital


(1) As Juntas de Parochia de Lisboa..., Illustração Portugueza, n.° 188, 27 de setembro de 1909

quarta-feira, 16 de março de 2016

Crianças a banhos na Trafaria em 1908

O triumpho que está coroando com os fulgores do exito a obra generosa de protecção á infancia, iniciada pelo "Seculo", representa, mais do que a victoria das causas nobres, o triumpho imperioso da mocidade e uma surprehendente exhibição das suas forças intactas n'um paiz que o culto da velhice levou, pela mão fria, desanimada e tremula dos anciãos, á decadencia immerecida do presente.

Aspecto da praia na occasião da chegada das creanças.
Imagem: Hemeroteca Digital

Desde o dia em que o medico Samuel Maia lançou á terra fecunda que é a publicidade enormissima do "Seculo" a semente compassiva e generosa da ideia, cem mil vezes multiplicada diariamente por todo o pais, do salvamento, por uma intensa protecçào á infancia, de urna raça ameaçada de estiolamento, até ao dia de hoje, não mediaram ainda seis mezes.

As creanças à popa do vapor da alfandega.
Imagem: Hemeroteca Digital

Neste curto período o "Seculo", emquanto o charivari parlamentar ensurdece a nação e os ministros se debatem nas intrigas phreneticas dos profissionaes da politica, por em alvoroço toda a população pobre da cidade e conseguiu impôr ao pais, pela força convincente dos inqueritos, n'uma propaganda que pôde considerar-se a obra de maior alcance emprehendida pela imprensa portugueza, a verdade temerosa de que o abandono a que estrão votados os pobres está preparando uma geração debil de aleijados, que sossobrará perante as exigencias trabalhosas do futuro.

Aspecto da praia na occasião da tomada do banho: a Real Fanfarra da Trafaria.
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Não pretendeu o "Seculo" realisar a obra de salvação que só o Estado deve e póde praticar perante as comminatorias advertencias de uma calamidade assim dramaticamente desvendada por uma pleiade juvenil de medicos, que foram ás escolas observar a geração de amanhã e tornaram publico o seu depoimento pungente.

Mas quiz o "Seculo" preparar o caminho ao advento d'essa obra nacional e fazer a sua evangelisação pratica e fecunda. Não o desanimaram as difficuldades e os dispendios de uma tão vasta iniciativa. Não houve sorrisos incredulos nem encolher desdenhoso de hombros que affrouxasse as energias ou entibiasse a fé dos homens novos a quem o "Seculo" confiou a direcção da sua cruzada humanitaria.

A distribuição de pão, bolachas e leite.
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Oito mil creanças affluiram, pela mão de oito mil mães alvoroçadas, ao salão da Illustração Portugueza, convertido no mais bello e salutar dos consultorios, onde o emocionante inquerito da infanda vae proseguindo e desenrolando, em phases successivas de preparação methodica e de conclusões peremptorias, as suas peripecias animadas.

Rapidamente, a obra admiravel está assim attingindo as proporções impressionadoras de uma funcção social, que aliasse da iniciativa tutelar do Estado, a tal ponto que muitos esquecem que ella representa apenas, em toda a sua grandeza, a propaganda de urna ideia benemerita.

Como vae o governo ernprehender a organisação definitiva d'essa ideia lançada por um jornal e cuja continuidade benefica já a caducidade egoista dos grandes politicos não logrará impedir que se perpetue?

Os banhos na Trafaria, 1911.
Imagem: Hemeroteca Digital

Quaes serão os successores officiaes d'essa pleiade de medicos que não pertencem á Academia, que não são conselheiros, que nunca foram deputados, que as secretarias de Estado não conhecem, e que tão eloquentemente exemplificaram a superioridade da fé, da perseverança, da energia e da intelligencia da gente nova sobre o scepticismo dissolvente, a impertinencia orgulhosa, a vã experíencia e a prosapia arrogante dos consagrados?

Essa pergunta fazíamos por uma d'estas manhas de luz e amenidade com que o céo acaricia tão prodigamente Lisboa, ao atra-vessarmos o Tejo entre a algazarra festiva das cem pobres creanças que todos os dias o "Seculo" agora leva, a um alegre passeio matinal, Tejo abaixo, até aos arcaes da Trafaria.

As creanças no banho preparando um mergulho.
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Dir-se-hia que pela primeira vez esse bando pallido de creanças olhava a vida na sua belleza e que para ellas pela vez primeira se desvendavam os aspectos sorridentes da natureza, com o esvoaçar das gaivotas sobre a franja espumante das vagas, os reflexos doirados da soalheira no agitado manto azul das aguas e o desdobramento panoramico da cidade, que ascende em colorido presepio, toucada pelo sol canicular, n'um recorte de cupulas, mansardas pombalinas e legues de palmeiras no irradiante azul anil dos horizontes.

As creanças protegidas do "Seculo" in Illustração Portugueza, n.° 133, 7 de setembro de 1908
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Os leitores poderão reconstituir pelas photographias que ilustram estas paginas a recepção festiva que a Trataria preparou ás creanças protegidas do "Seculo" no primeiro dia em que lá as levou a tomar banho.

Mas o que ellas não poderão evocar-lhes senão de maneira imperfeita é a felicidade commovedora que transfigurava as facesinhas pallidas d'essas creanças, que pela primeira vez, como os filhos afortunados dos ricos, puderam brincar na praia, passeiar no Tejo e almoçar no convez de um vapor com o appetite saudavel com que as brisas iodadas do mar lhes trouxeram o vago, inconsciente desejo de serem vigorosas e bellas, para bem cumprirem na vida a sua missão de amor e de trabalho. (1)

O Cabo do Mar da praia da Trafaria.
Imagem: Hemeroteca Digital


(1) A obra da infancia do Seculo..., Illustração Portugueza, n.° 132, 31 de agosto de 1908