quarta-feira, 29 de março de 2017

Fazer a barba... em Cacilhas

Janotas que vinham fazer a barba a Cacilhas por um pataco, pagavam o barco e ainda restava dinheiro para o copo de vinho. (1)

Vista norte de Cacilhas. Em primeiro plano ao lado esquerdo, dois marinheiros carregam cestos a partir de uma barcaça, com a inscrição 'JWells Aqua', para o convés de um ferry-boat onde uma mulher e dois homens aguardam. Do lado direito um barco transporta um passageiro abrigado por um dossel e seis remadores. Vista da igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso, do porto e do lugar de Cacilhas. A bandeira inglesa sobre o hospital. Ao fundo, veleiros no rio Tejo.
in British Library    
Imagem: Cabral Moncada Leilões

— Se o Doutor João Bernardo [da Costa Loureiro] fosse a Caçilhas fazer a barba porque lá he mais barato, depois de lá estar em Caçilhas, e ter escapado das delicadas mãos dos barbeiros de Caçilhas, quando tornasse para Lisboa, no meio do rio, alli ao pé das Náos onde estão os Francezes (coitadinhos!) o Arraes da Falua, hum delles que eu conheço mais assomado, chamado Zé nordeste , baldeasse com o Senhor Doutor Joáo Bernardo ao meio do rio, por não lhe querer pagar, depois de V. m. fícar muito bem affogado, e metido no buxo de alguma alforreca, náo se poderia dizer, com verdade que V. m. tinha visto Caçilhas e chegado ao fim da sua acção,  que era fazer a barba em Caçilhas?

The Harbour of Lisbon, segundo Alexandre Jean Noël, 1796.

Sim Senhor, dirá V. m., mas isso nao prova, porque o resto da companha quando chegasse ao Cáes podia dizer, o Doutor Joáo Bernardo, vindo já escanhoado de Cacilhas, que he o que lá foi fazer, foi affogado pelo mestre Arraes Zé nordeste, por lhe não querer pagar [...] (2)


(1) Romeu Correia, Cais do Ginjal, Lisboa, Editorial Notícias, 1989, 188 págs.
(2) José Agostinho de Macedo, O Exame examinado..., Lisboa, Impressão Régia, 1812

segunda-feira, 20 de março de 2017

Fonte da Pipa e sua água

LISBOA , em Lat. Ulissipo [phn, Tejo], de que vém a ser cor. voc. o significar "água bôa" em que nada esta Cidade (a maior das conhecidas na Europa, Capital do Reino de Portugal) que há mais pequena escavação, logo apparece: o t. he Árabe; e porque parte desta água apezar de em muitas partes ser minerál, e sulphúrica, como se vê dos banhos das "alcacerias" pertencentes ao Duque de Cadaval, abunda muito Lisboa, de que tóma o nome; mas porque as águas potáveis afóra o antigo chafariz chamado de Elrei na Ribeira Velha, que córre por nove bicas sem cessar, e que se concertou em o tempo da Regencia, que o Sr. D. João VI. retirado no Brazil, deixara em Portugal, óbra prima de hydraulica, sem que o chafariz parasse de correr, e cuja ruína já era espantoza; abasta a Cidade: foi da providencia do Rei D. João V. encanar do Cazal d'águas livres, que rebenta em grandes olhos a água em Bellas a duas léguas de Lisbôa, "Villa de Pedro Correia", assim chamada em outro tempo, por hum aqueducto, que he huma óbra perfeitamente Romana, que nunca cedêu de sua feitúra pelo terremoto, que abastece de água a Cidade, independente do poço chamado d'água sancta , rúa da Prata, que nunca seccou, e em que se recórre em occazião de sêccas graves, e da água da outra banda, de que se faz águáda para os navíos (chamada a da Fonte da Pipa), porque vinha, em pipas vender se ao Cáes do Sodré antes de feito o sobredicto aqueducto — Águas livres.

Fonte da Pipa, aguarela de Álvaro da Fonseca, c. 1915.
Imagem: Almada na Historia, Boletim de Fontes Documentais, 27-28

— Desgraça he que sendo esta água tão bélla, e potavel esteja imprégnada com outras inferiôres em bondade pela concessão mal entendida de deixar tirar do aqueducto pénnas, e anéis d'água com a obrigação de lhe substituir porção igual, que nunca igualára sua primitiva bondade.

Fonte da Pipa, Álvaro da Fonseca, c. 1915.
Imagem: Hemeroteca Digital

"Quem não vío Lisbôa, não vío couza bôa." adag. (1)


(1) António Maria do Couto, Diccionário da maior parte dos termos homónymos, e equívocos da lingua portugueza..., Lisboa, Typ. António José da Rocha, 1842


Artigo relacionado:
Fonte da Pipa e seu caminho

terça-feira, 14 de março de 2017

Romeu Correia (um percurso...)

1.º Percurso deste roteiro literário:
Avenida Heliodoro Salgado e Rua Capitão Leitão
(da Câmara Velha ao Museu da Música Filarmónica)

Praça Camões, Tribunal e Paços do Concelho — Almada, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

Ciclo de visitas organizadas pela APCALMADA-USALMA
a locais que evocam a vida e a obra de Romeu Correia através da sua "voz",
isto é, daquilo que deixou escrito.

Romeu Correia no miradouro Luís de Queirós ou Boca do Vento.
Imagem: Wikipédia

Data: 5.ª Feira, 23 de março de 2017

Concentração às 14H30 nos Paços do Concelho, no LARGO LUÍS DE CAMÕES,
no início da R. Capitão Leitão, junto à Incrível Almadense.

Em cada um dos locais que vão ser referidos vão evocar-se factos da vida do escritor Romeu Correia, acontecimentos e vultos almadenses dignos de serem lembrados. Será sempre Romeu Correia a "falar" connosco, através da leitura de pequenos excertos da sua escrita em prefácios, artigos da sua vastíssima colaboração jornalística, contos, romances e obras sobre a história local.

Sábado sem Sol, 1947, ilustração Fernando Camarinha.
Imagem: Tertúlia Bibliófila

Programa:

— No antigo LARGO DA CÂMARA evocaremos com as palavras de Romeu Correia alguns dos momentos inesquecíveis que aí se viveram [Trapo Azul (1948), Chico Grilo in Sábado sem Sol (1947)].

O carvoeiro, Leslie Howard, década de 1930.
Imagem: Museu da Cidade de Almada

— Na AVENIDA HELIODORO SALGADO, sempre acompanhados com as palavras do escritor:

Avenida Heliodoro Salgado — Almada, ed. desc.,
(ex avenida Gomes Netto no tempo da monarquia).
Imagem: Delcampe

Veremos o n.º 13, que foi o local da casa dos tios José Carlos de Melo e Julieta Correia, onde Romeu Correia viveu dos 21 aos 33 anos (de 1938 a 1950);

Sede da Incrível Almadense e habitação de José Carlos de Melo de 1938 a 1959.
Imagem: Alexandre Castanheira, Romeu Correia, Memória Viva de Almada...

faremos a evocação do namoro e casamento dos tios, conheceremos um resumo biográfico sobre José Carlos de Melo e destacaremos que foi neste local que iniciou a sua escrita teatral, jornalística, de contista e de romancista [Homens e Mulheres Vinculados às Terras de Almada (1978), Prefácio de Tonecas, a Tragédia que enlutou Almada, de Vítor Aparício, Sempre Menino in Sábado sem Sol (1947), Dois Mil Contos in Um Passo em Frente (1976), O Tritão (1982)];

Carta Postal (detalhe), ed. Câmara Municipal de Almada, c. 1940.
Imagem: Delcampe

Veremos o atual n.º4 , que foi o local da casa do dr. Alberto Araújo — evocação da amizade recíproca e resumo biográfico deste insigne almadense [Jornal de Almada (14 de dezembro de 1974), Trapo Azul (1948), Homens e Mulheres Vinculados às Terras de Almada (1978)].

Contamos com a presença e testemunho da filha do escritor, Julieta Correia Branco, que nasceu e viveu na casa dos tios.

— Na RUA CAPITÃO LEITÃO:

Almada. Rua Direita e Egreja de S Paulo Câmara Municipal, ed. Martins/Martins & Silva, 31, c. 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Visitaremos a Incrível Almadense, fundada em 1848, numa visita guiada pelos dirigentes Luís Milheiro e coronel Carlos Guilherme.

Banda da Incrível Almadense, c. 1894 - 1896.
Imagem: Restos de Colecção

Na sala do bar ou noutra sala, sentamo-nos e ouviremos Romeu Correia a "falar" dos bailes de outrora;

Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, baile em 1959.
Imagem: Casario do Ginjal

das bandas filarmónicas; da saída de José Maria de Oliveira em 1894 (e que veio a fundar a Academia Almadense em 1895);

Banda da Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense, 1925
Imagem: Restos de Colecção

do corte entre as duas coletividades e das pazes em 1948;

da biblioteca onde na década de 40 conheceu e colaborou com Alexandre Castanheira e da colaboração que recebeu de António Henriques [Jornal de Almada (25 de março de 1972), Homens e Mulheres Vinculados às Terras de Almada (1978), Trapo Azul (1948)].

Romeu, o primeiro da direita, durante uma das visitas de Alves Redol a Almada, Arquivo da Academia Almadense.
Imagem: Luis Alves Milheiro, Romeu e a biblioteca da Academia Almadense

Contamos com a presença e testemunhos de Alexandre Castanheira, que celebra este ano o seu 90.º aniversário e do coronel Carlos Guilherme, filho de António Henriques.

À saída da Incrível indicaremos o Clube de Campismo de Almada e veremos um grande artigo que sobre ele escreveu Romeu Correia no Jornal de Almada.

Seguiremos para o Museu da Música Filarmónica.

Romeu vai "dizer-nos" que aí foi a casa onde nasceu o grande maestro Leonel Duarte Ferreira [Jornal de Almada (25 de março de 1972), Academia Almadense - Memória de 100 Anos (1995)].

Visitaremos, com o dr. João Valente, este museu, que guarda testemunhos das bandas da Incrível, da Academia (onde iremos no 2.º percurso) e de outras associações locais.

O Septimino de Saxofones da A.I.R.F.A.. Da esquerda 1.° plano: Maria Amélia. Ferreira, Luísa Avelar, Manuela. Avelar, Maria Pratas, Maria Ondina Pinto, Antónia Rodrigues e Aida Alves. Em 2.° plano: Hilário dos Santos Ferreira, Maestro Leonel Duarte Ferreira. e Américo Gonçalves Ferreira.
Imagem: Museu da Cidade de Almada

No final assistiremos a um pequeno filme interativo, que refere o maestro Leonel Duarte Ferreira, a importância das bandas filarmónicas e que acaba com uma citação do escritor Romeu Correia.

Contamos com colaborações várias para dar voz aos excertos de Romeu Correia, com destaque para representantes do Conselho de Delegados da USALMA.

Organização das professoras Ângela Mota e Edite Condeixa.

Visita sem inscrições.
Basta estar às 14h30,de 5.ª feira, 23 de março,
em frente dos Paços do Concelho, junto à Incrível Almadense.



Tema:
Romeu Correia

Informação complementar:
Manuel J. C. Jerónimo, Leonel Duarte Ferreira (1894-1959)..., Universidade Nova de Lisboa, 2012

domingo, 12 de março de 2017

Festejos na Outra Banda hontem 23 de julho de 1873

Logo ao nascer do sol embandeiraram quasi todas as cazas, e subiram ao ar muitos foguetes em signal de regosijo pelo anniversario da entrada das tropas liberaes. 

Pátria coroando os seus heróis, Veloso Salgado, 1904.
Museu Militar de Lisboa, Sala das Lutas Liberais (ex Sala das Campanhas da Liberdade).
Imagem: Maria João Vieira Marques

A direcção dos festejos por tão fausto acontecimento tinha sido confiada a uma grande commissão composta dos seguintes cavalheiros: — Presidente, Eduardo Tavares — Wenceslau Francisco da Silva — Jose Maria do Valle — Augusto Cesar de Lima — A. L. J. Quintella Emauz — João Antonio Xavier Carvalho Freirinha — Julio Cesar Coelho — Antonio Faria G. Zagallo — S. Duarte Ferreira — Rafael Fortunato Alves Cunha — Antonio Francisco Silva Junior — Manuel Francisco da Silva — Christovam de Mattos— Antonio Candido Lopes — João Alegro Pereira Ernesto — Alvaro Seabra — Barreiros (Delegado) e Guilherme Maria de Nogueira.

Esta commissão veiu de Almada para o largo da Piedade, ás 7 horas da tarde, acompanhada da philarmonica da villa, e de muitas senhoras que todas vestiam de azul e branco.

Banda da Incrível Almadense, c. 1894 - 1896.
Imagem: Restos de Colecção

Ahi, collocando-se na frente da egreja, o sr. Eduardo Tavares, presidente da mesma commissão e deputado por aquelle circulo, fez um brilhante improviso, commemorando os factos da batalha dada n'aquelle sitio; disse que os que o acompanhavam n'aquella occasião não estavam ali como vencedores, nem tão pouco revestidos de odios de partidos; e appellou para o patriotismo de todos os portuguezes para conservarem a independencia e a liberdade que ha quarenta annos desfrutámos.

Eduardo Tavares (1831-1875).
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Concluído o discurso, o sr. Tavares levantou vivas á liberdade, sendo correspondido pela grande multidão que o cercava. Então deram-se também vivas aos veteranos da liberdade e ao sr Eduardo Tavares.

Em seguida foi distribuído a 50 pobres um bodo que se compunha de 230 grammas de carne, um pão, meio kilo de arroz e 100 réis em dinheiro.

Este bodo foi oflerecido por uma commissão especial composta dos srs. Eduardo Tavares — João Allegro Pereira — Padre João Netto — A. L. J. Quintella Emauz — Manuel Joaquim Motta e Lourenço Anastacio Ferreira de Aguiar.

Durante o bodo tocou uma philarmonica difíerentes peças de musica. Acabado o bodo, dirigiram-se todos ao largo onde se achava collocado o busto do duque da Terceira; e ahi foram levantados novos vivas á liberdade e entusiasticamente correspondidos. 

Estátua do Duque da Terceira (detalhe).
Desenho de Simões d'Almeida, gravura J. Pedrozo, 1877.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Voltou depois a grande commissão a Almada acompanhada do povo, e dirigindo se á casa da camara ahi se levantaram novos vivas, que foram também correspondidos.

O sr. Eduardo Tavares foi novamente saudado. Em seguida marchou tudo para Cacilhas. 

O largo da Piedade está deslumbrante. Inaugurava-se ali um novo jardim com um elegante coreto, onde tocava uma nova philarmonica da localidade. 

Nas ruas de Cacilhas, Oliveira e Almada, estavam muitas casas embandeiradas, e as janellas de algumas apresentavam vistosas colchas. 

Rua Direita — Cacilhas, ed. desc., década de 1900
Imagem: Delcampe, Oliveira

Todas as senhoras, como dissemos, trajavam de azul e branco; e todos os cavalheiros traziam ao peito um ramo de perpetuas preso com fitilhos também azues e brancos.

Do caes até á Fonte da Pipa, e pela rocha do Ginjal e rampa de S. Paulo estavam dispostas 150 barricas de alcatrão, que foram incendiadas ás 8 horas e meia da noite, produzindo um bonito effeito.

As casas da villa estavam illuminadas. No largo da Piedade tocavam, antes da chegada da commissão, tres philarmonicas. 

Jardim da Cova da Piedade, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 13
Imagem: Fundação Portimagem

Divisava-se em todos os semblantes o maior regosijo. Correu tudo com o maior enthusiasmo, o que se deve ao muito amor dos portuguezes á liberdade, e sem o mais pequeno incidente desagradavel, o que se deve á muita cordura dos ciadãos. (1)


(1) Diario Illustrado, 24 de julho de 1873

Artigo relacionado:
Os festejos de 24 de julho de 1874

Mais informação:
Duque da Terceira, Diario Illustrado, 24 de julho de 1873

Tema:
Guerras Liberais