segunda-feira, 29 de agosto de 2016

António Ramalho na praia do Alfeite em 1881

D'entre os quadros expostos pelo sr. Antonio Ramalho, um rapaz que começa, com uma bella arrogancia sustentada por um temperamento robusto d'artista, o intitulado "Praia do Alfeite" (n.° 31) é um dos mais notaveis.

Praia do Alfeite, António Ramalho (Ramalho Junior), 1881.
Imagem: YouTube

Ha n'elle uma riqueza enorme de tons amarellos, largamente espalhados por toda a parte, — nos altos saibros que se levantam pesadamente á esquerda, no areial immenso que vem descendo até ao rio, e ainda em mais saibros que se alastram, lá ao fundo, reflectindo-se fortemente nas aguas quietas.

Praia do Alfeite (detalhe), António Ramalho (Ramalho Junior), 1881.
Imagem: YouTube

Até, uma pobre mulher que está toda curvada para o chão no primeiro plano, sobre a areia, tem uma saia amarella! Entretanto, todos aquelles tons embaraçosos foram achados com uma felicidade rara, excepto o do grande areial, que é alvejante de mais frio.

Praia do Alfeite (detalhe), António Ramalho (Ramalho Junior), 1881.
Imagem: YouTube

As figuras elegantes das banhistas que passeiam na praia, umas de toilettes simples mas vistosas, e com sombrinhas listradas, outras de lucto, funereas, são d'um desenho primoroso ; e o rapazito que sentado na areia n'ella enterra as mãos, entretido e deliciado, é realmente uma nota curiosa diurna observação feliz.

Praia do Alfeite (detalhe), António Ramalho (Ramalho Junior), 1881.
Imagem: YouTube

As aguas, d'um socego somnolento, são soberbamente tocadas, bordadas d'espumas claras e manchadas d'esverdeamentos fluctuantes d'algas. E todo o quadro, com o monte verdejante que, salpicado de casarias brancas, vae subindo, ao fundo, até ao azul sereno da atmosphera inundada de sol, é d'uma perspectiva excellente, e d'um effeito geral esplendido. (1)


(1) O Occidente, n.° 115, 1 de Março de 1882

Artigo relacionado:
Praia do Alfeite e Lavadeiras na Romeira

sábado, 27 de agosto de 2016

Memórias simples

Ha no destricto desta Freguesia dous pórtos de mar, hum he о da Fonte da Pipa, com seu Forte para a banda do Poente, com huma praya como a deu a natureza sem artificio algum, frequentado de muitas embarcações, especialmente lanchas, que a ella vem fazer aguadas, e pode admittir até dezoito désta casta de embarcações.

Cacilhas, Praia da Fonte da Pipa e Olho-de-Boi, João Vaz.
Imagem: Casario do Ginjal

O outro porto he o do Cubal, com huma praya mais espaçosa, que a do primeiro, assim no comprimento, como na largura, tambem sem artificio, frequentado de varias embarcações, como são; bateiras, e fragatas, e as que o frequentão todos os dias fao dezasseis, e tem capacidade para admittir até cincoenta embarcações, como barcos de Cassilhas, que em muitas occasioens do anno vem amarrar nella, pela causa de ser abrigado das tormentas dos Nordestes, e Lestes, que por aqui correm com grande violencia. (1)

Vista de Cacilhas e do Tejo, Charles Landseer, 1825.
Imagem: Instituto Moreira Salles

Além de subsistirem traços “do cais e instalações [...] com características identificáveis de final do séc. XVII e XVIII [...],” sofrendo, no entanto, "sucessivos acrescentos e alterações, particularmente após meados de oitocentos," também é verdade que no século XVIII se construíram de raiz "armazéns e cais de alvenaria. A impossibilidade de expansão para a arriba obriga à extensão do cais pela margem à medida das necessidades".

Em 1813, "parte significativa destes armazéns eram propriedade da família Paliarte [...]." Dedicava-se, como de resto a maioria dos comerciantes de vinho ali estabelecidos, à actividade exportadora. (2)

Cacilhas Ginjal Grémio Vista aérea 01 c 1960
Imagem: OBSERVADOR

Segundo os poucos testemunhos disponíveis, a actividade comercial exercida pela Sociedade Theotónio Pereira no século XIX e, ainda, na primeira metade do século XX, tinha por base uma série de produtos agrícolas já transformados, de que se destacavam, entre outros, os vinhos, as aguardentes e o azeite.

A firma que, tanto quanto se sabe, nas suas várias fases em momento algum se dedicou à produção ou sequer à transformação dos produtos que transaccionava, pelo menos em grande escala, tinha a sua sede em Lisboa, sendo possível, ou bastante provável, que até à aquisição dos armazéns localizados no Cais do Ginjal — não sendo de descartar a possibilidade de aqui ter funcionado sempre a actividade armazenista —, toda a mercadoria ficasse acondicionada em depósitos situados na zona ribeirinha de Lisboa ou nas imediações desta.

Panorama de Cacilhas (Ginjal, Fonte da Pipa, Olho de Boi, Quinta da Arealva), 1967.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A de qualquer modo precoce localização, na vida da empresa, dos seus armazéns no Cais Ginjal, encontra-se indirectamente documentada por se saber que quando em Agosto de 1871 foram adquiridos por Theotónio Pereira vários prédios no dito cais, dos números 12 ao 22, havia pelo menos um deles que confrontava com a propriedade da Viúva Theotónio Pereira & Filhos [...]

[...] um prédio na Rua Direita em Almada; um prédio rústico no Ginjal; um outro, também no Ginjal, descrito como rústico e urbano (composto de vinhas – parreiras – árvores de fruto, horta, com duas nascentes de água, casa para caseiro, telheiro e forno); sete prédios urbanos no Ginjal, quase todos eles armazéns com um ou dois pisos; um "domínio" principal de uma "praia denominada do baixo mar, no sítio do Ginjal" de que era "senhoria" a Câmara Municipal de Almada; um segundo "domínio" principal de "uns armazéns, casa e pátio no Ginjal" de que era "senhoria directa" a mesma Câmara Municipal [...] 

Cais do Ginjal, Óleo, Alfredo Keil.
Imagem: Casario do Ginjal



Das vinhas do citado prédio rústico e urbano, "uma quinta encantadora, encostada à rocha de Almada", com o seu "grande parreiral de belíssimas uvas", seguia este seu fruto "em caixas para o estrangeiro" [...]

Foi no Ginjal que nasceu de madrugada Virgínia Theotónio Pereira, a mais nova dos cinco irmãos. Na altura, e como sucedia não poucas vezes, seu pai encontrava-se num pequeno bote a pescar "ao candeio acompanhado de dois pescadores vizinhos". No fim dessa madrugada, levou para casa, entre outro pescado, um "possante congro de 15 quilos." Regressou entusiasmado pela pescaria mas "mal passou os umbrais ouviu um cué-cué de bebé nascido" [...]

Almada, Ginjal, Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 21, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Era naquela mesma casa "de fora" do Ginjal que José Correia [avô do escritor Romeu Correia], o encarregado das adegas e dos armazéns de vinhos, marcava os "pas de quatre e as quadrilhas". Juntava-se-lhes "sempre que possível o pessoal menor, depois de se assear", para dar o "seu pé de dança, que acabava sempre num galope à roda mesa da sala de jantar". (3)


(1) P.e Luís Cardoso, Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades..., Lisboa, na Regia Officina Sylviana e da Academia Real, 1747, 2 vol.
(2) Martinez, ... ser mestre do vapor de Cacilhas, 2005
(citações de Maria Ângela Correia Luzia, A memória, a cidade e o rio, Lisboa, 1996)
(3) Martinez, idem

Leitura relacionada:
Cais do Ginjal. Da fortuna à decadência

Artigo relacionado:
O Ginjal não é para raparigas solteiras

Tema:
Ginjal

sábado, 20 de agosto de 2016

Domingos Sequeira, Cartuxa de Laveiras, Real Quinta, Trafaria e Cabo Espichel

"Seria hum estimolo muito agradavel a Sua Magestade, o ver em toda a estenção a vista da Cidade de Lisboa athe a barra, e de toda a que ofrece a Costa desde Cacilhas athe ao riba Tejo" [...] (1)

Estudo para o Panorama de Lisboa, Domingos Sequeira. Em primeiro plano vê-se a ponte sobre a ribeira de Barcarena (dos Ossos) e a igreja da Cartuxa de Laveiras, seguidos da Quinta Real de Caxias. Em segundo plano, uma grande quantidade de navios e barcos sobem o Tejo sobre o cenário da Trafaria e do Cachopo sul ou Alpeidão. Ao fundo, na linha de horizonte, distingue-se o Cabo Espichel.
Imagem: Hemeroteca Digital

Por motivos ainda hoje algo obscuros, Sequeira ingressa na Cartuxa de Laveiras (Caxias) [1798-1801]. O seu recolhimento caracteriza-se por uma assinalável actividade artística, pintando uma série de cinco telas de grande dimensão com passos da vida de S. Bruno (fundador e patrono dos Cartuxos) e de outros santos eremitas (Santo Onofre, S. Paulo e Santo Antão). O conjunto encontra-se disperso por três museus (MNAA, Museu Nacional de Soares dos Reis e Museu de Évora). (2)

Planta da Real Quinta de Caxias, J. A. de Abreu, 1844.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O insigne pintor Sequeira foi encarregado, não sabemos, ao certo, em que data, nem para que fim , da execução de uma vista panorâmica da cidade de Lisboa. Este facto é comprovado por diversos autores e por alguns documentos inéditos que dizem respeito a este trabalho. A mais antiga referência encontra-se na "Lista de alguns artistas portugueses", por D. Fr. Francisco de S. Luís, Lisboa, 1839.

Vista do Tejo e da Trafaria, The river Tagus at Trafaria, John Cleveley Jnr, 1775.
Imagem: Bonhams

Nela se lê: "Vi em casa de Sequeira, no ano de 1821, o Panorama de Lisboa, em que andava trabalhando".

Posteriormente, em 1843, José Maria da Silva Leal na biografia de Domingos António Sequeira. publicada no jornal de Bellas-Artes, aludia a este trabalho artístico, de que fôra, segundo êle, encarregado em 1821 e l822, nos seguintes termos: "... o panorama de Lisboa, obra já muito adiantada, e cujos desenhos se conservam no archivo das Obras-publicas". 

O nosso saudoso amigo Dr. Xavier da Costa, no seu belo livro A morte de Camões, quadro do pintor Domingos António de Sequeira. Lisboa, 1922, transcreveu as duas mencionadas passagens, sem lhes acrescentar quaisquer outros elementos novos. 

Vista da Trafaria — Saída da barca Martinho de Mello, João Pedroso, gravura
Imagem: Archivo Pittoresco, vol. X, 1867

Com a ajuda de diversos documentos que encontramos no Arquivo Hlstórico Militar podemos acrescentar alguna coisa mais sobre este assunto. Logo, pelo primeiro documento que adiante [e no topo da página], reproduzimos, se conclui que, já em 16 de Setembro de 1818, Sequeira se propunha, auxiliado pelo gravador Benjamim Comte, executar a vista panorâmica de Lisboa até à barra e de toda a costa desde Cacilhas até ao Riba-Tejo.

"[...] tomei a deliberação de comvocar o Abridor Bejami Conte. empregado no Real servisso, para me ajudar ad.a empreza, e escolhendo o luçal da Vila de Almada para dali fiqçar os pontos que ofereção a melhor optica: sendo-me precizo para este fim hu.a Barraca de Campanha, de Coronel, por ser mais reparada, e algum soldado tanto para a conduzir ao d.° sitio de Almada, como para a armar nos pontos q.e convier, e guardala, bem como hua incinuação do Governo p.a o Juiz de Fora de Almada me prestar algum socorro sendo-me nescessario para o dito fim" [...]

Domingos António Sequeira (1768-1837), auto-retrato.
Imagem: Educación Holística

Na exposição sequeirense,  realizada no Museu Nacional de Arte Antiga, em 1939, figurou um album de desenhos de Sequeira, onde há dois relativos a este panorama de Lisboa. Por especial deferência do seu ilustre director o sr. Dr. João Couto, que, amávelmente, nos forneceu a respectiva fotografia, podemos. enriquecer este artiguelho com a reprodução de um daqueles desenhos.

Não é fácil determinar, com exactidão, o que, realmente, nele figura. Na margem esquerda parece avistar-se a Trafaria e o cabo Espichel. 

Na margem direita aparece uma elevação que não conseguimos identificar [n. do e. trata-se da elevação onde está instalado o Forte D. Luís I, ou Forte de Caxias ou Forte-prisão de Caxias].

O querido, amigo Dr. Xavier da Costa, a pág. 27, do seu trabalho Domingos António de Sequeira. Notas biográficas, Lisboa 1939, escreveu: Também D. Frei Francisco de S. Luiz viu em casa de Sequeira, no ano de 1821, o Panorama de Lisboa. em que andava trabalhando. 

Alegoria às virtudes do Príncipe Regente D. João (detalhe), Domingos Sequeira, 1810.
Imagem: Google Cultural Institute

Dizem que era obra muito adiantada e que os esboços se conservavam, depois, no Ministério das Obras Públicas. No Museu das Janelas Verdes, existem vários desenhos, preparatórios para o referido trabalho, sabendo-se que um grande Panorama da cidade, da autoria do pintor, desapareceu no violento incêndio que, em 1863 consumiu o edificio dos Paços do Concelho da nossa capital e a parte primacial do seu conteudo.

Alegoria às virtudes do Príncipe Regente D. João (detalhe), Domingos Sequeira, 1810.
Imagem: Google Cultural Institute

Como o arquivo do Ministério das Obras Públicas foi, também, destruído por outro incêndio que devorou a instalação das encornendas postais no Terreiro do Paço, em 1919. Perderam-se lamentavelmente, não só os desenhos de Sequeira para o panorama da cidade de Lisboa, que ali se encontravam, em 1843, segundo informou o jomalista Silva Leal, como o mencionado "grande panorama". (3)

(1) Contar a vida de Sequeira através das cartas
(2) Contar a vida de Sequeira através das cartas
(3) Henrique de Campos Ferreira Lima, Uma vista panorâmica de Lisboa da autoria do pintor Domingos António de Sequeira, Lisboa, revista Municipal, 10, 1941

Leitura adicional:
O desenho em viagem: album, caderno ou diário gráfico, o album de Domingos António Sequeira
O desenho em viagem: album, caderno ou diário gráfico, o album de Domingos António Sequeira (anexos)
A obra gráfica de Domingos António de Sequeira no contexto da produção europeia do seu tempo

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Alma minha gentil, que te partiste

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no céo eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Rainha D. Estefânia, Karl Ferdinand Sohn, 1860.
Imagem: Palácio Nacional da Ajuda

Se lá no assento ethereo, onde subiste,
Memoria desta vida se consente,
Não te esqueças de aquelle amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.

Paço Real do Alfeite, Aguarela, Enrique Casanova
Imagem: Cabral Moncada Leilões

E se vires que póde merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remedio, de perder-te;

D. Pedro V, William Corden sobre original de Winterhalter.
Imagem: Palácio Nacional da Ajuda

Roga a Deos que teus annos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou. (1)


(1) Obras Completas de Luiz de Camões... Tomo I, Parnaso..., Vol. 1, Sonetos, Porto, Imprensa Portugueza Editora, 1874

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Pelas praias do Caramujo

A íntima amisade, que contrahi com a Illustre Pessoa, que aqui serve de Heróe; o passeio, a musica, o divertimento de colher pelas praias do Caramujo, termo de Almada, differentes qualidades de mariscos, e finalmente a pesca nunca interrompida, fizerâo em mim tal impressão, que me determinei a celebrar este ultima diverlimento , a que sempre fui propenso; e porque era, e he aquelle, que alli mais cultivão as Illustres Famílias , que a éste sitio concorrem no tempo dos banhos. 

APDG, Sketches of portuguese life, manners, costume and character, Banhos no Tejo, 1826.
Imagem: Internet Archive

No dia 10 de Setembro de 1826, quando eu contava 27 annos de idade, estando todos, como costumávamos, applicados ao nosso divertido exercício, passeando no largo com grande prazer, appareceo de repente Belmiro, debaixo de cujo nome se intitula o Heróe da acção, acompanhado de outro amigo nosso, trazendo por huma corda huma masseira velha, ou gamella de amassar pão, muito rota por todos os lados. 

O cais do Caramujo, década de 1980.
Imagem: Alexandre Flores, Almada antiga e moderna, Freguesia da Cova da Piedade

Todos perguntarão, porque trazia tal cousa; e elle respondeo, que era para nella hirmos pescar. Todos estimámos, principalmente eu, tal descoberta de vaso, para duplicarmos nosso regosijo nesta tarde. 

Logo, convocando elle alguns amigos, comigo começou a concertalla do modo, que melhor foi possível; nella metemos as redes e vogámos para o mar, elle, e eu sómente, porque ninguem mais se atreveu a acompanhar-nos.

Muitas pessoas, principalmente huma Senhora, sua filha, e mais familia nos dissuadíão de tentar o rio naquelle vaso pequeno e velho; mas desprezados estes avisos, e confiados em saber bem nadar, comettemos nossa viagem.

Caramujo, Leslie Howard, década de 1930.
Imagem: ZONA Magazine

Estando porem já muito distantes de terra, repentinamente sobreveio tão horrivel tempestade, que á vista de todos fez voltar o barquinho comnosco, que, privados de ver a terra por causa do aguaceiro, com relâmpagos, raios, trovões, pedra, etc. nos custou tomar a praia apesar das nossas forças em nadar.

Em fim chegámos á praia, e mandámos soltar hum bote, que estava prezo a hum cáes de pedra, para trazer a canoa, e as redes, que ficárão no largo, as, quaes trouxerão peixe, de que se fez huma merenda esplendida, como nunca tivemos, o que bem se pôde inferir pelos successos, que lhe antecederão, que posto sejão debuxados com tosco pincel, forão brilhantes [...]

Praia do Caramujo, Planta das Septe Quintas do Real Sitio do Alfeite (detalhe), 1849.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Do Caramujo expõe-se o sítio ameno;
E como delle gosâo pelo Estio
Innocentes, maritimos prazeres
Diversas personagens d'outras terras.
No designio Belmiro entra da pesca
C'os illustres vizinhos, que consentem,
E do dvertimento não desmentem [...]

Caramujo, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 15, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Do nosso antigo Tejo, ha na aurea margem,
Hum lugar mui ameno, delicioso,
Caramujo de séculos remotos
Pelos seus habitantes nomeado:
Dous altos montes sobem a seus lados,
Que parecem tocar do Ceo as nuvens.
Hum agradável prado mui risonho,
Onde assiste a formosa Primavera,
Torna seu local bello, e aprazível [...]

Viata da Quinta do Outeiro, Caramujo e enseada da Cova da Piedade, Francesco Rocchini, anterior a 1895.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

"Tudo o que Vénus diz, verdade he pura,
"Formosa Filha tua, grande Jove;
"Lá do Tejo nas margens, nas raízes
"Dos montes, que de base a Almada servem
"O Caramujo existe socegado.
"He maritimo porto, alli altares,
"E templos dedicados mil eu lenho,
"Onde o licôr divino nunca falta,
"Que com festividades me consagrão;
"Alli á Pesca entrega-se Belmiro [...]

Enseada da Cova da Piedade, c. 1900.
Em 1.° plano o pontão e a entrada da quinta do Alfeite e, em 2.°, o cais da Rankin & Sons.
Imagem: Museu da Cidade de Almada

Belmiro se prepara com Phylinto;
Fileno vai também lançar as redes:
Já he visto o batel frágil nas ondas.
Difficutdades muitas se presentão.
Que pelos argonautas são vencidas.
A rede se prepara, que na barca
Já recolhida fôra, e só lhe falta
Remar bem para o largo com grão força [...]

Cais do Caramujo, pontão de madeira, década de 1970.
Imagem: Fernando Cruz

"Ó Deos do mar profundo, tu me escula,
"Mais que disse, dizer nâo pôde Vénus;
"Do Caramujo sou Patrono eterno;
"Eu requeiro o que implora a bella Deosa:
"Juno he prejura; Belmiro innocente;
"Juramento a verdade não precisa. [...] (1)


(1) Francisco António Martins Bastos, A pesca, Lisboa, Impressão Regia, 1831

Leitura relacionada:
Francisco António Martins Bastos na Biblioteca Nacional de Portugal