domingo, 30 de outubro de 2022

Maria da Lua (Conceição Lamosa)

Fernanda de Castro (1900-1994)

«A vida está difícil, ninguém sabe o que será o dia de amanhã. É preciso pensar no futuro e, por isso, desejo que também as pequenas, e não só os pequenos, estudem a sério e façam exames. Sei que esta carta vai estalar como uma bomba nessa casa que sempre me pareceu — lembras-te, Anica? — a casa da Bela Adormecida, mas tenham paciência... bem sabem que só tenho um desejo, uma preocupação na vida: garantir aos meus filhos um mínimo de felicidade, pô-los, tanto quanto possível, ao abrigo das más surpresas da vida».


Retrato de Fernanda de Castro por Tarsila do Amaral (detalhe), 1922.
Governo de S. Paulo, acervo dos palácios

Não se enganara o pai ao prever que esta carta rebentaria como uma bomba na tranquila casa cor-de-rosa. Sufocada, a tia Emiliana deu largas à sua indignação: — Exames! Era só o que faltava! Os rapazes, vá, que são homens, e aos homens tudo se perdoa, nada lhes fica mal!.…. Mas as meninas?! Sujeitá-las a um vexame desses?! E para quê, sempre queria que me dissessem! Para que precisará de exames uma filha de família, uma mãe dos seus filhos, uma senhora da sua casa?

A partir deste dia a atmosfera da casa mudou por completo. Os rapazes, de mala às costs, iam todas as manhãs para a escola. Desciam a escada a correr e, ao sair, atiravam com a porta. Cada vez que os ouvia, a tia Emiliana, que estava a tomar o seu chá ou a ler o jornal, não perdia a ocasião de dizer com ironia: — Parecem uns carroceiros. Por este andar, não tarda que cuspam no chão. Estão muito adiantados, têm aprendido muito.

Maria da Lua e Princesa tinham mestras em casa. A escolha destas mestras fora penosa e difícil. O director da escola da Câmara — escola que, com grande indignação da tia Emiliana, os rapazes frequentavam por não haver outra capaz nas imediações — aconselhara uma professora da sua escola, pessoa instruída, séria, de confiança, que, depois das aulas, poderia perfeitamente ocupar-se da educação das meninas. — É uma pessoa competente, que nunca teve um desaire nos exames. Ainda o ano passado apresentou vinte alunas e todas ficaram aprovadas ou distintas.

Retrato de Fernanda de Castro por Anita Malfatti (detalhe), 1922.

— Era só o que faltava! — sibilou a tia Emiliana, A Conceição Lamosa a dar lições às minhas sobrinhas! Ainda me lembro de ver a mãe a vender criação às portas! — Que se há-de fazer, minha tia? Não temos por onde escolher, é a única pessoa competente destes sítios.

— A única? Então a Alzira... a Alzirinha? Essa, ao menos, é uma senhora, tem maneiras, sempre é filha de um major... — Não pode ser, minha tia... A Alzira estava bem, escapava, para os ensinar a ler e a escrever... Mas agora, que têm de ir a exame, precisam de aprender gramática, aritmética, geografia, coisas que ela não conhece nem de nome.


Finalmente, para evitar o mal-estar que, certamente, resultaria de uma intransigência absoluta, Conceição Lamosa, a filha da galinheira, tomou conta de Maria da Lua, Alzirinha, a filha do major, encarregou-se dos estudos da Princesa que, pela sua extrema simplicidade — a Princesa tinha apenas de fazer o 1.° grau — não requeriam ainda ciência especial, conhecimentos pedagógicos especiais.

A tia Emiliana, quando ouvia a campainha da porta duas vezes por dia, desabafava com Guilhermina: — Parece um portão de quinta... Quem quer entra e sai sem pedir licença, como na botica! Até a Lamosa!

Guilhermina abanava a cabeça e remoía velhas queixas: — Ainda se ao menos vendesse criação capaz! Mas qual! Eram só patos magros, galinhas tísicas que não deixavam nem uma olha na canja! E agora a fillha, de cadeira, a dar leis como se tivesse o rei na barriga!

— Modas novas, Guilhermina.….. Dizem que agora é assim, que nós é que estamos velhas... (1)



(1) Fernanda de Castro, Maria da Lua, Lisboa, 1945

Artigos relacionados:
Maria da Lua (retratos do passado)
Ao fim da memória
Liberato Teles
Ofélia

Leitura adicional:
Fernanda de Castro, Ao fim da memória,  Memórias (1906-1939), Porto, Verbo, 1986
Paula Morão, "'Ao Fim da Memória / Memórias' de Fernanda de Castro", Colóquio/Letras, n.º 181, Set. 2012, p. 102-116
Voies du paysage: représentations du monde lusophone cf. Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Porto, Verbo, 1986

Informação adicional:
Antonio Feliciano Telles de Castro Aparício (Google search)
José Dionísio Telles de Castro Aparício (Google search)
Fernanda de Castro (Fundação António Quadros))
Revista Colóquio/Letras n° 98 (julho 1987)
Atlântico n.º 5, 1944, Maria da Lua, por Fernanda de Castro, duas ilustrações de Ofélia Marques



Fernanda de Castro (1900-1994) descreve-nos a casa pombalina da sua bisavó, Maria Maurícia Telles de Castro e Silva casada com Francisco Liberato e Silva [ref. no Arquivo Distrital de Setúbal], 2.° comandante da Guarda Municipal, pais de Francisco Liberato Telles de Castro e Silva (1842-1902), nascido em Cacilhas [v. artigo dedicado].

A autora nasce do casamento de Ana Isaura Codina Teles de Castro da Silva (1879-1914), filha de Liberato Telles, com João Filipe das Dores de Quadros (1874-1943), Capitão-Tenente da Marinha e Comendador da Ordem Militar de Avis.

Do casamento de Fernanda de Castro em 1922 com António Ferro, nasceram António Quadros, filósofo e ensaísta, e Fernando Manuel de Quadros Ferro. A escritora Rita Ferro é sua neta.

sábado, 29 de outubro de 2022

Maria da Lua (retratos do passado)

Fernanda de Castro (1900-1994)

No tempo da guerra civil, das lutas entre liberais e miguelistas, o avô materno (Antonio Feliciano Telles de Castro Aparício van Odyck), partidário de D. Miguel, e o irmão daquele, o tio José Dionísio (Telles de Castro Aparício van Odyck), fiel a D. Pedro IV, haviam gasto rios de dinheiro pelas respectivas causas, vendendo aqui, hipotecando além, fanáticos, apaixonados, adorando-se como irmãos, odiando-se como adversários políticos.

Em casa de Maria Maurícia Telles de Castro e Silva/Liberato Telles, c. 1910.
Fotografia de Ramon Bayó
cf. Alexandre Flores, Almada antiga e moderna, freguesia de Cacilhas, 1987

Alternadamente no exílio, a caminho da América ou da Inglaterra o avô António Feliciano fizera as campanhas do Rio da Prata, o tio José Dionísio estivera em Plymouth com Palmela e daí embarcara clandestinamente para os Açores — haviam sido forçados a trocar vinho e cortiça por bolsas de libras que a mãe, a avó Ana Francisca (Telles de Castro Rolim van Odick?), lhes mandava às escondidas por emissários embuçados e fiéis.

Uma vez, contava-o com orgulho, chegara mesmo a ir a bordo, disfarçada de vendedeira de ovos, levar dinheiro ao filho mais novo, passageiro clandestino de um veleiro, que, aclamado D. Miguel, ia esconder nos nevoeiros de Londres a sua amarga desilusão.

Depois, quando tudo serenara, quando, assinada a Convenção de Évora-Monte, D. Miguel embarcara para Génova, quando, por morte de D. Pedro IV, subira ao trono D. Maria II, amnistiando os presos políticos, pondo fim às lutas fratricidas, o avô António Feliciano enterrara-se na Quinta e procurava salvar os destroços do naufrágio.

O irmão, desiludido de uma liberdade que permitia desmandos e abusos de toda a espécie, declinou honras e favores a que tinha direito e refugiou-se igualmente na velha casa familiar.

Os dois irmãos, morta a paixão política, abraçaram-se e fizeram as pazes. Trataram então de desenterrar as pratas, de vender aqui para resgatar além, de percorrer a cavalo matas e olivais, de afirmar direitos sobre velhos foros, de visitar rendeiros e feitores.

A casa, desmantelada, começou a reviver, como árvore doente a que o sacrifício dalgumas ramadas restitui o vigor. Sem tornar a ser o que fora nos tempos de oiro da avó Ana Francisca, senhora de extensas matas de cortiça, a fortuna da casa parecera equilibrar-se, permitindo à família um desafogo, um bem-estar que havia muito não conhecia.

A casa cor-de-rosa, ilustração de Manuel Lapa, 1945, para o livro de Fernanda de Castro,
Maria da Lua, história de uma casa, 3.a edição, 1960, Livraria Tavares Martins
prémio Ricardo Malheiros, 1945

Voltaram então a ter carruagem, criados, mesa posta para amigos e parentes. Depois, a morte levara a avó Ana Francisca, e a fortuna, ainda mal refeita do abalo que sofrera, não resistira a desequilíbrio provocado pelas partilhas.

O tio José Dionísio, liquidada a herança, fora viver para a Beira, one a administração das propriedades da mulher exigia a sua presença. E o avô António Feliciano, que estava longe de possuir as qualidades de administrador do irmão — a prudência, a moderação, o equilíbrio — vira-se forçado a consentir o casamento da filha com o cunhado (Francisco Liberato e Silva), trinta anos mais velho, a fim de assegurar a educação dos quatro filhos varões, que destinara à carreira das armas.

Sem deixar de lamentar a mãe, casada aos dezasseis anos com um homem de quase cinquenta que nunca deixou de tratar por «tio», a tia Emiliana admirava secretamente aquele avò autoritário que, para salvar a casa, o prestígio do nome, não hesitara em sacrificar a filha.

No íntimo do seu coração, o avô era o seu modelo, o seu conselheiro invisível. «Que faria o avô, se fosse vivo?». E o avò, do fundo do seu silêncio, do alto do seu orgulho, não deixava nunca de lhe responder.

Naquela manhã, emoldurado de talha dourada, com o seu belo fardamento de lanceiros, olhou-a com uns olhos agudos e disse-lhe: — «Na nossa família nunca ninguém vendeu nada. Não comece a menina por vender o que não tem preço: a dignidade, o orgulho...» (...)

ooOoo

A sala onde se encontravam era a mais espaçosa da casa. Tinha duas janelas de peito e duas sacadas com grades verdes e cortinas de renda nas vidraças. Um piano de cauda, de camurças gastas, ocupava um dos cantos da sala. Uma alcatifa cobria o chão e abafava o ruído dos passos. Reposteiros de seda verde, puídos e desbotados, escondiam as portas.

Em casa de Maria Maurícia Telles de Castro e Silva/Liberato Telles, c. 1910.
Fotografia de Ramon Bayó
cf. Alexandre Flores, Almada antiga e moderna, freguesia de Cacilhas, 1987

Sobre as mesas, as consoles, as étagères, álbuns de retratos, jarras com flores de seda, miniaturas, bibelots de Saxe. A mobilia Império, hirta e rebarbativa, alternava com esses sofás, essas cadeiras, essas mesas sem estilo que o tempo nobilita, parentes pobres da casa, adoptados pelo hábito. Numa das paredes, um fogão de sala ladeado por duas poltronas de peluche verde. Na parede oposta, um espelho com a sua moldura de talha dourada.

Sobre a chaminé, um brasão bordado a oiro e a vermelho, caprichosa mistura de dragões e de flores de lis, e dois retratos a óleo: o trisavò Marechal e o avô miguelista que, no tempo do Senhor D. Pedro IV, andara a monte e tivera de emigrar para Inglaterra.

E, finalmente, junto de uma das sacadas, o «canto da avó», com a sua poltrona de molas cansadas e a sua mesa de profundas gavetas. (1)


(1) Fernanda de Castro, Maria da Lua, Lisboa, 1945

Artigos relacionados:
Maria da Lua (Conceição Lamosa)
Ao fim da memória
Liberato Teles
Ofélia

Leitura adicional:
Fernanda de Castro, Ao fim da memória,  Memórias (1906-1939), Porto, Verbo, 1986
Paula Morão, "'Ao Fim da Memória / Memórias' de Fernanda de Castro", Colóquio/Letras, n.º 181, Set. 2012, p. 102-116
Voies du paysage: représentations du monde lusophone cf. Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Porto, Verbo, 1986

Informação adicional:
Antonio Feliciano Telles de Castro Aparício (Google search)
José Dionísio Telles de Castro Aparício (Google search)
Fernanda de Castro (Fundação António Quadros))
Revista Colóquio/Letras n° 98 (julho 1987)
Atlântico n.º 5, 1944, Maria da Lua, por Fernanda de Castro, duas ilustrações de Ofélia Marques



Fernanda de Castro (1900-1994) descreve-nos a casa pombalina da sua bisavó, Maria Maurícia Telles de Castro e Silva casada com Francisco Liberato e Silva [ref. no Arquivo Distrital de Setúbal], 2.° comandante da Guarda Municipal, pais de Francisco Liberato Telles de Castro e Silva (1842-1902), nascido em Cacilhas [v. artigo dedicado].

A autora nasce do casamento de Ana Isaura Codina Teles de Castro da Silva (1879-1914), filha de Liberato Telles, com João Filipe das Dores de Quadros (1874-1943), Capitão-Tenente da Marinha e Comendador da Ordem Militar de Avis.

Do casamento de Fernanda de Castro em 1922 com António Ferro, nasceram António Quadros, filósofo e ensaísta, e Fernando Manuel de Quadros Ferro. A escritora Rita Ferro é sua neta.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A casa cor-de-rosa

Fernanda de Castro (1900-1994)

Quando voltei de África, esmagada pelo horror das últimas semanas, compreendi logo que a casa da minha infância já não era a casa da minha infância. Os móveis eram os mesmos e estavam no mesmo sítio, as dimensões do sótão eram as mesmas, as flores continuavam a desabrochar nos canteiros da tia Emiliana, a malva-rosa continuava a enfeitar o muro esboroado do velho poço, do mirante via-se o mesmo Tejo e avistavam-se as mesmas gaivotas e as mesmas fragatas. E, contudo, nada estava igual, tudo parecia diferente.

Fernanda de Castro e Antoninho Gabriel (detalhe) por Sarah Affonso, 1928.
MNAC/Flickr

Levei muito tempo mas acabei por compreender que a mudança não estava nas coisas, mas nas pessoas. Todos andavam vestidos de preto, incluindo as criadas que há muito faziam parte da família. Ninguém punha uma flor numa jarra, as portadas das janelas estavam fechadas e as janelas só se descerravam à noitinha, não fosse entrar um raio de Sol que aliviasse, por momento que fosse, o luto das paredes e das pessoas.

A minha bisavó, que era, como o meu pai dizia, a trave mestra da casa, fora a única que reprovara, que não aceitara o luto integral. Sobre o vestido de là de todos os dias, sobre o vestido de seda preta lavrada dos domingos e das visitas, usava um grande avental de seda roxa com uma algibeira de onde continuavam a sair maravilhas: libras, cigarros e garrafinhas de chocolate, berlindes e abafadores coloridos para os rapazes, cautelas sempre brancas para o tio António.

Um dia apareceu uma modista com figurinos e amostras de tecidos pretos e dias depois a minha irmà e eu tínhamos os nossos vestidos de luto pesado, sem os quais não poderíamos ir à rua. Porque era a mais velha, o meu vestido tinha uma golinha de crepe também preto. Quando a minha avó me viu com aquele vestido, pálida, triste e desajeitada, pegou deliberadamente numa tesoura, descoseu a golinha de crepe que mandou substituir por outra de piquet branco sem se importar absolutamente nada com o mau humor e a reprovação da tia Emiliana.

— Que vão pensar, minha mãe, quando virem a pequena, já tão crescida, de luto aliviado dois meses depois de lhe ter morrido a mãe? (...)

Pontal de Cacilhas, ed. Alberto Malva/Malva & Roque, 135, década de 1900.
Delcampe

Não, a casa da minha infância já não é a casa da minha infância. Agora, mais do que nunca, está vazia, para sempre vazia. Numa noite de Verão, calma e sem sofrimento, a minha avó adormeceu e nunca mais acordou.

A casa inteira ficou outra vez de luto pesado, mas desta vez, como ela queria, não se fecharam janelas, e na velha terrina da Índia, no meio da mesa, havia sempre rosas frescas, as rosas da tia Emiliana que não ousou desta vez ignorar as últimas vontades da mãe, vontades não expressas em cartas ou testamentos, mas em toda a sua vida de noventa e sete anos.

As pessoas agora movem-se na casa como fantasmas, como se nenhum gesto tivesse já razão de ser, como se o silêncio fosse a única linguagem da casa deserta.

Acabados para sempre os mistérios do sótão, os segredos do poço, o óculo do mirante pelo qual se via o Tejo até à barra. Acabadas a malva-rosa, a mesa de pedra das merendas e as rosas-de-toucar: a casa já não pertence à família.

Aliás a família já não se interessa pela casa que não é a mesma, sem a mãe, sem a avó, sem as rosas da tia Emiliana, sem as crianças que em breve serão adolescentes, com saudades de si próprias e do puro cristal das suas almas.

Quando a casa se vendeu e a família se dispersou, surgiu nas nossas vidas uma nova personagem (...)

Quando fechei pela última vez a porta da casa cor-de-rosa puxando pela mãozinha de ferro que era o batente dessa porta, sabia perfeitamente que não estava só a despedir-me da casa e da quinta, do mirante e do poço nem mesmo das presenças invisíveis mas muito reais da minha avó e da minha mãe, mas ainda e sobretudo da minha infância.

Cacilhas, Rua Direita (ed. Martins & Silva para distribuidor local), década de 1900
Delcampe, Oliveira

Ficavam ali para sempre os meus últimos bibes de menina, as últimas fitas que prendiam as minhas tranças, os meus pequenos sonhos, os meus pequenos segredos. Os meus pequenos segredos... Lembras-te, Pedro?

Uns amigos dos meus pais tinham um filho que vinha às vezes passar o dia connosco. Chamava-se Pedro e era um pouco mais velho do que eu. Um dia pegou-me por um braço, levou-me para um canto, e meteu-me na mão um embrulhinho, dizendo-me em voz baixa, quase ao ouvido:

— Não o percas, não o deites fora! Olhei para ele com espanto e afastei-me para ver o que tinha dentro o papelinho. Era um pequeno coração de barro que tinha um P gravado dum lado e um F do outro. Não me foram precisos muitos segundos para perceber que P queria dizer Pedro e F, Fernanda. Apertei com força o pequeno coração pensando no que ia fazer, até que resolvi enterrá-lo à sombra da amoreira.

"Não, Pedro, um coração não é coisa que se deite tora". Com um sacho abri uma pequena cova, forrei-a com musgo tenro, pus o coração sobre o musgo e tapei-o com duas rosi- nhas-de-toucar. Depois enchi a cova de terra que calquei e alisei com as mãos.

Fernanda de Castro e Antoninho Gabriel por Sarah Affonso, 1928.
MNAC/Flickr

Passaram anos e só hoje, Pedro, ao fechar a porta da casa cor-de-rosa pela última vez me surpreendi a pensar: "O que será feito do coraçãozinho de barro? Terá sido desenterrado pelo vento e pela chuva, calcado por uma bota ferro ferrada ou pelo ferro duma enxada ou continuará intacto sob os cadáveres de duas rosas-de-toucar?" (1)


(1) Ao fim da memória,  Memórias (1906-1939), Porto, Verbo, 1986

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Ao fim da memória
Liberato Teles
Ofélia

Leitura adicional:
Fernanda de Castro, Maria da Lua, Lisboa, 1945
Paula Morão, "'Ao Fim da Memória / Memórias' de Fernanda de Castro", Colóquio/Letras, n.º 181, Set. 2012, p. 102-116
Voies du paysage: représentations du monde lusophone cf. Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Porto, Verbo, 1986

Informação adicional:
Fernanda de Castro (Fundação António Quadros))
Revista Colóquio/Letras n° 98 (julho 1987)



Fernanda de Castro (1900-1994) descreve-nos a casa pombalina da sua bisavó, Maria Maurícia Telles de Castro e Silva casada com Francisco Liberato e Silva [ref. no Arquivo Distrital de Setúbal], 2.° comandante da Guarda Municipal, pais de Francisco Liberato Telles de Castro e Silva (1842-1902), nascido em Cacilhas [v. artigo dedicado].

A autora nasce do casamento de Ana Isaura Codina Teles de Castro da Silva (1879-1914), filha de Liberato Telles, com João Filipe das Dores de Quadros (1874-1943), Capitão-Tenente da Marinha e Comendador da Ordem Militar de Avis.

Do casamento de Fernanda de Castro em 1922 com António Ferro, nasceram António Quadros, filósofo e ensaísta, e Fernando Manuel de Quadros Ferro. A escritora Rita Ferro é sua neta.