quarta-feira, 16 de março de 2022

Costa Almirante (o Nélson)

Agora ali, no rio, obedecendo às ordens do Almirante, logo nas primeiras remadas tive remorsos da minha leviandade. A pobre da Ermelinda à minha espera, cheia de problemas, e eu embarcado no escaler, remo entre mãos, a escutar as baboseiras do Costa, que ficava maluquinho quando se via no posto de comando.

Pequenas embarcações do Tejo junto a navio de guerra.
Arquivo Municipal de Lisboa

A sua farda de marinha, os gales dourados, o chapéu-armado, as duas medalhas de cobre a baloiçarem no peito. Mesmo sabendo que as condecorações as ganhara ele como sargento, na Primeira Guerra Mundial, tudo ali me parecia fora do tempo em que nos situávamos.

Os gritos de comando, os apitos histéricos, os ralhos quando não fazíamos o que ele queria, transformavam a tripulação do escaler num bote de doidos. Os quatro remadores eram tratados por "marujos" (...)

O Rainha Vitória singrava agora a direcção do navio-almirante, o couraçado Nélson, para lhe prestar as honras do estilo.

O Costa exigia disciplina na remada, cabeça e ombros direitos, pás dos remos bem metidos na água e puxadas ao peito. A maré estava a fazer carneirinhos, a voltar à vazante, vindo constantes borrifos refrescar a tripulação.

HMS Nelson
off Spithead for the 1937 Fleet Review
Wikipedia

— Marinheiros! Quando eu ordenar Ninguém rema! — avisou o Costa — a marinhagem prepara-se para a saudação a navio-almirante.

Já da outra vez que alinhei nestes trabalhos fora a mesma manobra diante da esquadra francesa. Que felicidade experimentava o meu vizinho nestas manhãs no Tejo! O rosto bolachudo, bigode e perinha, olhos pequenos e mortiços, enquadrados naquele fardamento carnavalesco, davam-Ihe um ar de ter fugido de um hospital de doidos (...)

Atenção! Ninguém rema! ordenou o nosso comandante. Suspendemos a remada e erguemos os remos. O escaler ainda navegou por momentos, sereno, deixando-se arrastar na maré. Diante de nós tínhamos a enorme montanha de aço, o casco do mastodôntico Nélson.

O Costa retirou o chapéu da cabeça, no que foi imitado por todos nós, e rompeu com os hurras! — três vezes as nossas boinas se ergueram numa gritada saudação. Olhando para a parte superior do casco do couraçado não descortinámos um inglês sequer.

Eramos como uma pulga a saudar um elefante. O Costa tossiu, teve um esgar de decepção, e disfarçou, colocando o pomposo chapéu na cabeça. A marinhagem imitou-o sem palavras, mas ainda esperançada a aparição de gente do Nélson, que nos acenasse um leve adeus.

De súbito, lá do alto, dois vultos debruçaram-se na amurada e vazaram, sem a mínima cerimónia, um latão pejado de imundícies. Cordas líquidas de porcaria desceram na direcção do nosso escaler, borrando-nos, sem piedade.

HMS Nelson
Members of the South African Royal Naval Volunteer Reserve
Wikipedia

Cabrões! Filhos da puta! berrou o nosso Almirante, perdendo a compostura. Num instante ficámos irreconhecíveis, imundos de óleo e de outras coisas, que a nossa afição não permitia que avaliássemos. O Rainha Vitória bailou por momentos com o entulho e o nosso pânico, caindo o Alberto ao rio agarrado a um remo.

As nossas caras e vestes estavam nura lástima, havia borras sobre tudo o que era branco e colorido, parecíamos uma visão de pesadelo. Recolhido o nosso companheiro que fora pela borda fora, tentámos passar por água as partes mais atingidas pelas borras. As mãos, a cara, os punhos dos remos, foram chapinhados com água salgada. Não havia palavras para classificar aquele percalço naval, que nos atingira naquela hora.

Depois dos palavrões, enraivecidos, soltados pelo Costa Almirante e a retirada do filho do Tejo, blasfemou o Fernando, com lágrimas na garganta:

— Se tivesse um torpedo aqui afundava este sacana! Mas o Vitor, cheio de bom senso, aconselhou que talvez fosse melhor afastarmo-nos da vizinhança do Nélson, pois corríamos o risco de sermos bombardeados com outro despejo.


Todos, incluindo o comandante, anuímos na retirada. Remos ajustados nos toletes, pás metidas no rio, cada um fazia o derradeiro esforço de regresso ao Cais do Ginjal.

Cais do Ginjal, Amadeu Ferrari, década de 1940.
Arquivo Municipal de Lisboa

A cara do Costa trazia estampado todo o estigma de malogro. Atirava com o chapéu-armado para o fundo do escaler, sacudia ainda pedaços de sujidade das orelhas, do bigode, do pescoço, cuspia, enojado, gostos estranhos que he apareciam no paladar. Pequenos barcos a remos ou à vela, que se cruzavam connosco, admiravam-se do nosso aspecto desastroso. E ouvimos alguns gritos trocistas, à laia de conselho:

— Declara guerra à Inglaterra, ó patriota!

Respeitado pela idade e a compostura cívica quando o viam em terra, aquela malta ao vê-lo agora sujo e maltratado no rio, vingava-se, cobarde e traiçoeira. Eram como punhaladas no Costa tais dichotes da canalha da praia. E, sem aparente reacção, rosnava para os nossos ouvidos:

A escumalha está como quer! Cavalo-marinho no lombo é o que vocês precisam! (...)

Cais do Ginjal, 1935.
Romeu Correia, O Tritão, Lisboa, Editorial Notícias, 1982

Aproximámo-nos do cais, onde os dois turcos de ferro esperavam o escaler para tê-lo içado durante os dias necessários. Alguns curiosos aguardavam a abordagem do Rainha Vitória, que sempre proporcionava um esper táculo fora do comum. Não pudemos evitar desta vez mais risos e chacota entre os que estavam na muralha.

Na varanda, a D. Preciosa gritava, aflita: Que vos aconteceu, ó Costa?

Logo o Rui que, embrulhado num xaile, estava por detrás da mãe, comentou, divertido: Foram bombardeados, dona Preciosa! (1)


(1) Romeu Correia, Cais do Ginjal, Lisboa, Editorial Notícias, 1989, 188 págs.

Informação relacionada:
Colóquio/Letras, Romeu Correia, O Tritão, Editorial Notícias, 1983
Colóquio/Letras, Romeu Correia, Cais do Ginjal

Tema:
Romeu Correia

segunda-feira, 14 de março de 2022

Costa Almirante (o Rainha Victória)

Costa Almirante, que, sendo caixa no Montepio geral, tinha a loucura da Marinha de Guerra, pois construira um escaler e fixara dois turcos de ferro na borda da muralha para arriar ou subir a embarcação. Aos domingos e dias santos, o "caixa" fardava-se de almirante e embarcava escoltado por quatro marujinhos, seus filhos.

Chegada a Lisboa de S. M. Maria Pia de Sabóia (detalhe), João Pedroso, PNA.
Google Arts & Culture

Ordens de comando, apitos de ordenança, remos ao alto em continência, tudo isto como num barco de guerra, o pai e os quatro rapazes exibiam nessa manhã um espectáculo no rio até a mulher por termo ás manobras, aparecendo, na varanda, a gritar:

— Ó Costa vem almoçar! A comida está na mesa!... (1)

Ao passar junto da casa do Sabino Costa parei para observar mais uma vez o escaler "Rainha Victória" suspenso nos dois turcos de ferro implantados å beira da muralha. Os quatro remos, o leme e o pequeno mastro, o Costa Almirante os havia recolhido, a recato de invejosos e ladrões.

Este vizinho era inconfundível no Cais do Ginjal, nenhum como ele animava as manhãs de domingo e alguns feriados, escaler descido nas águas do rio, ele fardado de almirante de opereta, marujinhos seus filhos aos remos, e toda a equipagem a navegar Tejo fora, cumprindo ordens do pequeno e ridículo comandante.

Chegada a Lisboa de S. M. Maria Pia de Sabóia (detalhe), João Pedroso, PNA.
Google Arts & Culture

Um filho-remador, obrigado pelo capricho paterno a cumprir a heróica tarefa matinal, mantinha-se casmurro não aprendendo a nadar. O menino Rui era a única ovelha ronhosa daquela família de marinheiros que, no caso de naufrágio, desceria às profundezas como um solitário prego.

Panorâmica dos armazéns da Sociedade Theotónio Pereira e conjunto habitacional privado (n.os 53 a 64).
Boletim O Pharol 40


O pai sofria, tentando na muralha e nas areias do Ginjal, com colete-de-cortiça, corda e outros apetrechos de protecção, que o rapaz se afoitasse sobre a massa líquida do rio. Mas tudo em vão. Era este falhanço, o maior, que maculava a carreira náutica do caixa do Montepio Geral. (2)


(1) Romeu Correia, O Tritão, Lisboa, Editorial Notícias, 1982, 174 págs.
(2) Romeu Correia, Cais do Ginjal, Lisboa, Editorial Notícias, 1989, 188 págs.

Informação relacionada:
Colóquio/Letras, Romeu Correia, O Tritão, Editorial Notícias, 1983
Colóquio/Letras, Romeu Correia, Cais do Ginjal

Tema:
Romeu Correia

quarta-feira, 2 de março de 2022

Bairro de Casas Económicas (ou de Nossa Senhora da Piedade)

Bairro Nossa Senhora da Piedade: este bairro, suscita interesse logo à partida. Este interesse não passa despercebido quando é fácil identificar perfeitamente a delimitação do bairro relativamente à envolvente. É também, motivo de interesse a organização do bairro segundo um traçado hierarquizado e pensado numa determinada forma de edificado, a moradia.

Cova da Piedade, ed. Comér (bairro das casas económicas e capela), década de 1970.
Delcampe

É pois, bastante interessante analisar esta zona para compreender através do estudo das densidades, de que forma esta ocupação tem influência no contexto da cidade e na maneira de sentir e viver o espaço.

O aspecto relacionado com os usos é muito caracterizador de uma determinada área, revelando as tendências e divisões de conjuntos urbanos perfeitamente distintos. Podemos verificar isso mesmo quando observamos o Bairro Nossa Senhora da Piedade, concebido com o propósito de ser um bairro de casas económicas.

Caracteriza-se pela predominância do uso da habitação e pela presença relevante da Escola EB1 No2 da Cova da Piedade e do Centro Paroquial da Cova da Piedade.

Cova Da Piedade, Escola primária do Bairro, 1959-1960.
José Niz

Pretende-se ainda nesta fase, identificar e perceber como é a relação entre o espaço público e o edificado, bem como reconhecer a relação público privado.

Assim, no Bairro Nossa Senhora da Piedade, existe um predomínio da tipologia de Moradia Geminada com a excepção dos equipamentos e da alameda de entrada do bairro, ladeada por edifícios de habitação colectiva.

Bairro das Casas Económicas, Júlio Diniz, década de 1950.
Arquivo Municipal de Almada

Contudo, acaba por constituir um bairro equilibrado quanto às suas tipologias traduzindo uma homogeneidade aparente, não só entre o edificado, mas também entre as vias públicas e o próprio edificado. (1)

A partir do século XX, a indústria ganhou relevo e tornou-se a actividade principal em Almada. Este facto implicou a ida de mão-de-obra qualificada para a zona e consequentemente uma melhoria significativa na habitação, tendo como ponto assente e de grande relevância fixar esta faixa de população em Almada.

Vista aérea da Escola Naval e do Arsenal do Alfeite (mostra o Bairro de Casas Económicas em construção no quadrante direito superior), Mário Novais.
Flickr

Contudo, devido às Guerras Mundiais, a urbanização atrasou-se e só com o termo da 2a Guerra Mundial o Governo Central, e concretamente pela iniciativa da Câmara Municipal, foram contratados os arquitectos Faria da Costa e Étiènne Groer para elaborar aquele que seria o Plano de Urbanização do Concelho de Almada (1946).

Neste Plano de Urbanização estavam abrangidas as freguesias de Cacilhas, Almada, Pragal, Cova da Piedade, Laranjeiro e Feijó.

Por imposição da topografia as margens ficaram pouco exploradas pelo Plano, à excepção do aterro construído para a instalação dos estaleiros da Lisnave, que representava para o Município um sector de grande importância ao nível regional e nacional.

Vista aérea da Cova da Piedade, ed. Comér (bairro das casas económicas à direita na foto), 1953.
Flickr

Assim, o desenvolvimento de Almada efectuou-se através de dois eixos principais que tinham Cacilhas como ponto de convergência: um desenvolvia-se pelas freguesias emergentes (Almada, Pragal e Cova da Piedade) e o outro percorrendo toda a linha de costa que já anteriormente fazia de eixo orientador e de ligação entre aglomerados nomeadamente a Avenida Aliança Povo MFA.

Relativamente à Freguesia da Cova da Piedade foi possível verificar durante a década de 40 o crescimento de ocupações baseadas em programas de casas económicas, nomeadamente o Bairro Nossa Senhora da Piedade.

Delcampe, Bosspostcard

A moradia geminada foi a lógica de ocupação privilegiada, bem como a implementação de equipamentos de cariz social, como o Centro Paroquial da Igreja de Nossa Senhora da Piedade e a Escola EB1 No2 da Cova da Piedade. (2)

Cronologia

1933, 23 setembro - o decreto n.º 23052 estabelece as condições segundo as quais o governo participa na construção de casas económicas, das classes A e B, em colaboração com as câmaras municipais, corporações administrativas e organismos corporativos (art.º 1.º);
as Casas Económicas, como passam a ser designadas, são habitações independentes de que os moradores se tornam proprietários ao fim de determinado número de anos (propriedade resolúvel), mediante o pagamento de prestação mensal que engloba seguros de vida, de invalidez, de doença, de desemprego e de incêndio (art.º 2º);
as atribuições do governo em matéria de casas económicas são partilhadas pelo Ministério das Obras Públicas e Comunicações (MOPC) e o Subsecretariado das Corporações e Previdência Social (art.º 3.º);
ao MOPC compete a supervisão da construção de casas económicas (aprovação de projetos e orçamentos, escolha de terrenos e sua urbanização, promoção e fiscalização das obras, administração das verbas cabimentadas e fiscalização de obras de conservação e benfeitorias) (art.º 4.º);
é criada a Secção de Casas Económicas na Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) (art.º 4.º);


1943, 24 novembro - pelo decreto n.º 33278, o Governo promove, em colaboração com as câmaras municipais, a construção de 4000 novas casas económicas, localizadas em Lisboa, Porto, Coimbra e Almada (zona de influência da base naval do Alfeite), criando as classes C e D, destinadas às famílias numerosas da classe média;

1949 - é referido, na Exposição "Quinze Anos de Obras Públicas, 1932-1947", que se encontram em construção ou autorizadas 500 casas económicas em Almada; data do plano de urbanização do Bairro Económico de Almada, da autoria do arquiteto Carlos Rebelo de Andrade;

Bairro Nossa Senhora da Piedade, Usos (Anexo I).
Densidade e Forma Urbana...

1950, 21 maio - ofício da Secção de Casas Económicas do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência à DGEMN, informando que em breve lhe será entregue o bairro para distribuição das moradias; solicita ainda, e "após experiência de administração de muitos outros bairros económicos", que sejam elaborados projetos-tipo para as seguintes construções: muros de vedação, anexos destinados a arrumações, garagens, capoeiras e telheiros abrigos;

Chegada do General Craveiro Lopes ao Bairro Económico da Cova da Piedade (27 de Abril de 1952).
Pastéis de AlMadan

1952 - inauguração do bairro, composto por 500 casas.  (3)


(1) Densidade e Forma Urbana, Densificação como valor de projecto e estratégia de desenvolvimento urbano Baixa Altura Alta Densidade
(2) Idem
(3) SIPA

Mais informação:
Empréstimo de 20 mil contos para a construção de um bairro de 500 casas económicas na Cova da Piedade