domingo, 29 de junho de 2014

O Grémio

Vista panorâmica de Almada e do rio Tejo tomada da Serra de Monsanto, 1962.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

[...] um simples arrolamento das muitas funções que desempenhou [Henrique Tenreiro] até 1974, seja no sistema político (União Nacional, Assembleia Nacional e Câmara Corporativa), seja nas organizações milicianas do regime (Legião Portuguesa) 

Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (F.N.A.T.).
Costa da Caparica, aspecto do almoço dos trabalhadores dos Sindicatos Nacionais,1937.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

ou, sobretudo, na administração das pescas, nunca deixará perceber os poderes que alcançou, a extrema influência que exerceu e o modo como teceu e sedimentou, dentro do regime, um subsistema de poder dotado de uma escassa vigilância institucional por parte do chefe do governo.

Bairro piscatório da Caparica, comandante Tenreiro e dr. Pimenta da Gama, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

[...]  importa sintetizar as etapas essenciais da trajectória de H. Tenreiro, situar os momentos chave da sua afirmação política e discutir as razões pelas quais firmou no sector das pescas um poder cuja espessura em muito ultrapassou as funções de que fora incumbido a 20 de Julho de 1936: delegado do governo junto do Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau. 

Almirante Henrique Tenreiro
Imagem: Fragata D. Fernando II e Glória

Ao poder financeiro Tenreiro acrescenta extensos poderes de gestão empresarial de um expressivo sector público-corporativo das pescas que, por finais de 1960, engloba trinta «organizações», entre grémios, sociedades mútuas de seguros, cooperativas de aprestos e empresas dependentes da organização corporativa.

Anúncio do SAPP, Serviço de Abastecimento de Peixe ao País.
Agência Sonarte de Artur Agostinho
Vídeo: LUSITANIATV




Desde o tempo da guerra, Tenreiro impõe a concentração de capitais em sociedades de armadores controladas pelos grémios (casos da SNAB [Sociedade Nacional dos Armadores do Bacalhau] e da SNAPA [Sociedade Nacional dos Armadores da Pesca de Arrasto]). (1) 

Pragal Construção da Ponte Salazar e navio Vasco d'Orey.
Imagem: Bacalhoeiros de Portugal no Facebook

No contexto do corporativismo do Estado Novo, e na dependência do Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau, criado em 1935, surge em 1938 outro corpo cooperativista, que funcionava como central de compras para todos os armadores, a Cooperativa dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau.

Navios no cais do Ginjal, Real Bordalo, 1976.
Imagem: eBay

O incremento da frota pesqueira (de 16.500 toneladas em 1936 passa a 60.000 em 1954) é acompanhado, a partir de 1939, pela instalação no Ginjal da Cooperativa dos Armadores [de Navios] de Pesca do Bacalhau, que dá às empresas associadas facilidade no abastecimento dos navios e concede assistência aos pescadores.

Bacalhoeiros no cais junto à fábrica do Gelo.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

No espaço anteriormente ocupado pela fábrica de cortiça Symington e pelos estalairos navais de Hugo Parry surgem assim enormes edifícios que aproveitam e ampliam as oficinas pré-existentes [...]


Pontões de acostagem junto à instalações do Grémio no cais do Ginjal.
Imagem:  Arquivo Municipal de Lisboa

Os edifícios albergaram ainda a Sociedade de Reparações de Navios [...]  (2)

Navio arrastão lateral, Pedro de Barcelos frente ao cais do Ginjal.
Os edifícios à esquerda, a meia encosta, eram a fábrica do óleo de fígado de bacalhau.
Imagem: SHIPS & THE SEA — BLOGUE dos NAVIOS e do MAR

A Sociedade de Reparações de Navios [SRN, Sorena] é constituída em 9 de outubro de 1942 num contexto económico de reforço ao sector das pescas, destinava-se à reparação da frota das duas societárias (a SNAB [Sociedade Nacional dos Armadores do Bacalhau] e a SNAPA [Sociedade Nacional dos Armadores da Pesca de Arrasto]) no que respeita a todas as especialidades desde reparções ocasionais a transformações mais profundas.

Sociedade de Reparações de Navios, após um incêndio na década de 1960.

Produzia todo o tipo de equipamento e apetrechos de pesca desde materiais de detecção a materiais de captura de pescado.

Arrastão Luis Ferreira de Carvalho, frente ao cais da SNAB, 1986.
Imagem: Navios à vista

Encerrou a actividade em setembro de 1986 com apenas 10 trabalhadores, tendo vindo a extinguir-se, formalmente, por falência, em 3 de fevereiro de 1992. (3)


(1) Garrido, Álvaro, Henrique Tenreiro — "patrão das pescas" e guardião do Estado Novo.

(2) Gonçalves (coord.), Elisabete, Memórias do Ginjal, Almada, Centro de Arqueologia de Almada, 2000, 88 págs.

(3) Luzia, Angela, Esteves, Joana, Santos, Maria José E., A indústria naval em Almada: na rota do progresso, Almada, Câmara Municipal, 2012, 97 págs.

Leitura adicional:
Decreto-lei nº 23802, de 27 de Abril de 1934

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Todos os barcos do Tejo

Caderno de todos os barcos do Tejo, Tanto
de Carga e Transporte como d'Pesca, por João de Souza
Lente d'Arquitectura Naval e Desenho da Companhia
de Guarda Marinha

quarta-feira, 25 de junho de 2014

A praia das lavadeiras no Ginjal

... ficava entre o cais do velho Moreira e toda a muralha da fábrica de conservas de peixe La Paloma.

Praia das Lavadeiras, Ginjal, Alfredo Keil.
Imagem: Casario do Ginjal

Era nestas areias que há séculos as mulheres da vila vinham lavar a roupa.

Almada, Boca do Vento, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 12, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Cavavam com a enxada junto à muralha do cais, e logo a água doce e cristalina borbotava e fazia poça.

Juntavam uma tábua, ou em vez desta uma pedra lisa, mais sabão, água, esfrega que esfrega, bate que bate [...]

Houve ainda o velho espanhol, o sr. Moreira, da fábrica de conserva de fruta, caçador e columbófilo, que vivia amancebado com a menina Teresa, sopeira gordinha e risonha, que lavava roupa na Praia das Lavadeiras, sempre de barriga com um menino dentro, que o velho e achacado Moreira perfilhava e ensinava a parlar espanhol...

Sociedade Mercantil Luso Brasileira, Lda.
Sucessores A. Leão & Cia. e Lino & C., Ginjal — Almada.

Ao chegar à Praia das Lavadeiras havia um grande sarrabulho. 

Aproximei-me e dei fé de duas mulheres a agatanharem-se fora das poças.

Outras faziam coro e tomavam partido.

Cá em cima, na muralha, alguns homens riam e galhofavam.

O apito da fábrica La Paloma berrou violento e prolongado, e o pessoal começou a sair para o almoço.

La Paloma, conservas de peixe, anúncio de 1947.
Imagem: Gonçalves, Elisabete, Memórias do Ginjal.

Embrenhei-me entre os operários que fervilhavam no cais, homens, mulheres e fedelhos...

Cais do Ginjal e fábrica La Paloma, Amadeu Ferrari, década de 1940.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Da fábrica de conserva La Paloma, a da pomba branca, dos buques atestados de sardinha-prata e das varinas chilreantes e brejeiras, além da recordação restam os caboucos, pois um fogo há muito consumiu-lhe tudo. (1)

Romeu Correia no miradouro Luís de Queirós ou Boca do Vento.
Imagem: Wikipédia


(1) Correia, Romeu, O Tritão, Lisboa, Editorial Notícias, 1982, 174 págs.

Bibliografia:
Gonçalves (coord.), Elisabete, Memórias do Ginjal, Almada, Centro de Arqueologia de Almada, 2000, 88 págs.

terça-feira, 24 de junho de 2014

O corredor do Ginjal

Pátio do Ginjal com vista enquadrada pelo vão de entrada.
Imagem: Gil, Ana Filipa da Costa, Projectar com o lugar. Indústrias criativas. Escola de artes cénicas do Ginjal, Faculdade de Arquitectura, Lisboa, 2010.

O cais do Ginjal foi mandado construir em 1860, quando presidia à edilidade almadense o dr. Francisco Inácio Lopes (1806 — 1893).

Planta do Rio Tejo e suas margens (detalhe), 1883.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Filho do concelho e médico de renome, este cidadão operou uma obra valiosíssiima na margem sul do Tejo.

Amigo pessoal do ministro do reino Fontes Pereira de Melo (1819 — 1887), e igualmente "regenerador", por duas vezes presidiu à Câmara Municipal de Almada [...]

Il molo di Cacilhas (Lisbona), parte II.
Vídeo: petrotubo

Assistir à construção de um bote reserva-nos grandes surpresas, pois ficamos a saber que se começa pela parte da embarcação que anda debaixo de água, como a quilha, o cavername e o costado.

Bote no Corredor do Ginjal.
Imagem: 

Há um ano, os três amigos aparelharam a madeira a golpes de serra e de plaina.

No domingo seguinte (eles só trabalhavam aos domingos) enterraram dois tacos de pinho na terra do barracão e sobre eles assentaram a comprida tábua da quilha.

Depois, fora um nunca acabar de enxó e de plaina para operar a curva das cavernas.

Houve ainda uma tarefa inicial muito penosa e demorada: aparelhar a linha da proa.

Esta fora arrancada a um tarolo cheio de nós e arrevesado.

Mas após uma manhã de luta contra a teimosia da madeira, dura que nem um corno, os três calafates acabaram por sair vitoriosos e erguer o nariz da bonita canoa.

Nasceu assim a proa da futura "Flor do Ginjal".

Corredor do Ginjal, Nuno Pinheiro, 1978.
Imagem: flickr

Esta obra estava a ser realizada no Corredor, nome de um lugar de passagem para as moradias do Marreta e do José Segundo, servindo ainda de caminho para a quinta da velha Elisa.

Corredor do Ginjal, acesso ao pátio.
Imagem: Correia, Romeu, O Tritão,.

O barracão onde carpinteiravam a "Flor" estava há anos abandonado, pois fora ali uma dependência da antiga tanoaria do Francisco de Cerca. (1)

Tanoaria Francisco da Cerca, corredor do Ginjal, 1900.
Imagem:   Correia, Romeu, Op. Cit.

O retiro do Luís dos Galos estava muito afreguesado.

Mesas colocadas no cais como era uso no Verão.

Os almoços de domingo eram sempre mais demorados, com os convivas em arrastadas conversas e discussões.

Já havia guitarras e violas sobre mesas e cadeiras, esperando a vez de serem dedilhadas.

Fadistas, Rafael Bordalo Pinheiro, 1877.
Gravura, João Pedroso.

Entrei e dirigi-me à cozinha, onde a tia Emilia preparava os petiscos.

Ela sorriu-me e perguntou-me:

— Já arranjaste trabalho?

— Ainda não, tia Emilia. Só para a semana volto à doca para saber a resposta.

— Deus queira, rapazinho.

— Isto está cada vez pior... — resmunguei.

Perto de nós, uma voz, rouca e irónica, meteu o bedelho na conversa.

— Quem está aí a dizer mal do nosso homem providencial?

Volto-me, assustado, acreditando mais uma vez no Porfírio, mas esbarro com o Carlos Pitocero.

O velho riu-se, fraterno, pousando a palma da mão sobre o meu ombro:

— É belo e reconfortante ouvir um jovem descrer da receita milagreira do tirano. Os velhos depositam as melhores esperanças na ressureição deste desgraçado povo. E cabe a vocês, com o sangue na guelra, descer à rua e lutar, lutar sem dar tréguas ao passado caquético e bolorento!... (2)


(1) Correia, Romeu, O Tritão, Lisboa, Editorial Notícias, 1982, 174 págs.

(2) Correia, Romeu, Cais do Ginjal, Lisboa, Editorial Notícias, 1989, 188 págs.

sábado, 21 de junho de 2014

José Carlos de Melo

José Carlos de Melo nasceu a 25 de Maio de 1886, na quinta do Pombal, cultivada por seu pai, João Carlos de Melo.

José Carlos de Melo.

Tinha mais quatro irmãos, Augusto, o primogénito, duas irmãs, Amélia e Georgina, e o mais novo, de nome Arnaldo, que fora, sem favor algum, um dos melhores músicos de filarmónica nascidos em Almada.

Rapazes e raparigas com uma instrução acima da media, pois nesse tempo a percentagem de analfabetismo cifrava-se na casa dos 80%.

Gente amistosa e convincente. a quinta do Pombal foi cedida ao longo dos anos para piqueniques e convívios de associados de colectividades da terra.

Após o exame de Instrução Primária, efectuado na escola oficial de Conde de Ferreira (a única então existente), o pequeno José Carlos de Meio ficou como ajudante do velho e prestigioso Mestre Epifânio.

Escola Primária Conde de Ferreira, Almada, instituída em 1866.
Imagem: A Magia dos Livros...

Calmo, educado, dotado de extrema paciência e competência o jovem monitor realizou uma obra deveres significativa de alfabetização nesses longínquos anos da "Belle Epóque" em que raros decifravam o alfabeto.

A 27 de Julho de 1906 ingressa como amanuense na Câmara Municipal de Almada, onde se conserva por meio século, pois só se aposenta em 1956.

Almada. Rua Direita e Egreja de S. Paulo Câmara Municipal, ed. Martins/Martins & Silva, 31, c. 1900
Imagem: Fundação Portimagem

De espírito conservador, uma vez burocratizado passou a entrar na secretaria da Câmara às onze horas, já almoçado, e saía muitas vezes às onze horas ou meia-noite.

Nunca teve férias ao longo deste meio século. Parece-nos ele que nunca esteve doente...

José Carlos de Melo por Leal da Câmara.

Muito jovem, tornou-se um homem associativo, trabalhando como director nas secretarias das mais variadas colectividades de cultura e recreio associações de Socorros Mútuos bombeiros voluntários e até em clubes desportivos.

Também as Juntas de Freguesia e a Misericórdia de Almada mereceram a sua colaboração ao longo de mais de quarenta anos.

Pertenceu igualmente a muitas e variadas comissões administrativas de colectividades.

Diziam os velhos almadenses, que o admiravam e o classificavam como o "homem que não tinha inimigos", que Zé Melo, o solteirão, recolhia todas as manhãs a casa quando batia à porta o padeiro...

É impressionante a lista de colectividades e instituições que este cidadão serviu por muitas dezenas de anos:

Na Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense foi várias vezes director, e de uma só vez permaneceu 25 anos no cargo de 1° secretario (secretário pela noite dentro, alumiado a candeeiro de petróleo, acrescente-se…);

Banda da Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense, 1925
Imagem: Restos de Colecção

Nos Bombeiros Voluntários de Almada, sócio fundador (26-8-1913), fazendo parte do seu corpo activo nos anos iniciais e prestando serviço na secretaria;

Almada, rua Capitão Leitão, aspecto de ataque a incêndio, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Na Associação de Socorros Mútuos 1° de Dezembro, sócio durante meio século e director por quatro dezenas de anos, alternados;

No Ginásio Clube do Sul, sócio fundador (17-5-1920) e presidente da Direcção em 1922. (Possuía fardamento da colectividade, pagou quotas até ao dia da sua morte e usou sempre na lapela o distintivo do clube);

Na Misericórdia de Almada, secretário e por vezes dirigente ao longo de quatro dezenas de anos.

Nas Juntas de Freguesia, muitas e variadas comissões o tiveram nos seus corpos parentes.

Foi ainda secretario e colaborador de vários jornais publicados no concelho, com destaque para o Jornal de Almada (1ª série) fundado e dirigido pelo seu velho amigo Manuel Parada.

Há também outras colectividades nas terras de Almada que tiverem como sócio de toda a vida José Carlos de Melo, como a Sociedade lncrível Almadense, o União Sport Clube Almadense e o Clube Recreativo José Avelino.

Almada, Edifício do Cine Teatro Incrível Almadense, Mário Novais,1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Pertenceu igualmente a comissões disto e daquilo grupos excursionistas, iniciativas de solidariedade para acudir a cidadãos em precária situação física ou económica.

José Carlos de Melo foi das figuras mais populares e respeitadas do concelho de Almada.

Homem de honradez acima de qualquer suspeita, extremamente educado, quando atravessava as ruas da velha vila não havia ninguém que não cumprimentasse o sr. Zé Melo.

Namorou durante anos uma senhora da terra que adoeceu com gravidade. Muitos anos a namorou à beira do leito, pagando-lhe as visitas médicas e, por fim, o funeral.


Mais tarde, por volta de 1922, enamorou-se de outra senhora, esta residente no cais do Ginjal, Julieta Mercedes Correia, com quem se consorciou pelo São João de 1926. Tinha então 41 anos de idade.

Este namoro do cais para o 1° andar durou cinco anos, tantos quanto a espera para vagar uma casa em Almada, coisa que por esse tempo era também de extrema dificuldade.

Para além de todas estas múltiplas actividades, José Carlos de Melo vivia apaixonado, de tenra idade, pela história de sua terra.

Tudo que se relacionava com Almada, ele anotava, recortava, coleccionava.

Almada, edifício dos Paços do Concelho, Leslie Howard, década de 1930.
Imagem: Museu da Cidade de Almada

Durante dezenas de anos. o nosso biografado e o primo Luís de Queirós foram as pessoas que melhor conheciam Almada e seu termo.

Almada, rua Direita, década de 1890.
Imagem: Hemeroteca Digital

Ligado desde sempre a D. Francisco de Melo e Noronha, Manuel Parada e Raul Custódio Gomes, José Melo acalentou a esperança de colaborar numa Monografia de Almada.

Há muitos textos seus publicados no Jornal de Almada, 2a série, dirigido pelo Padre Manuel Marques, que termina com a sua assinatura, tendo por debaixo a indicação: Monografia da Almada, em preparação.

A sua morte, súblta, ocorrlda a 25 de Maio de 1960, dia em que completava 75 anos da idade, frustrou-lhe, todavia, os intentos.

Todo o seu espólio foi recolhido pelo sobrinho, Romeu Correia, autor desta série de pequenas biografias.

Romeu Correia, atrás, o segundo a contar da esquerda, praia da Margueira.
Fotografia: Mário da Cruz Fernandes, 1935.
Imagem: As Margueiras

Muitos dos seus vastos conhecimentos sobre o concelho se perderam, uma vez que não ficaram anotados.

Mas muito material seu serviu a outros compiladores, e estudiosos de Almada, uma vez que nunca negou a sua ajuda e colaboração a ninguém.

Dele disse, muito agradecido, o Conde dos Arcos (in Caparica Atrevés dos Séculos, pag. 88): "José Carlos de Melo, natural de Almada, funcionário da Câmara e bastante conhecedor da história de sua terra".

Augusto Sant'Ana d'Araújo, José Alaíz, António Correia e outros publicistas e estudiosos de Almada citam-no também com frequência.

O próprio jornalista, arquivista e bibliotecário do antigo Ministério das Obras Públicas, Albino Lapa (1898 — 1969), incumbido pelo então presidente da Camara Municipal de Almada nos anos quarenta, Comandante Sá Linhares, de realizar um inventário de livros e documentos existentes no Município teve em José Carlos de Melo o melhor colaborador, dizendo dele:
"Agora muito temos a louvar o auxilio que nos prestou o funcionário dessa Câmara José Carlos de Melo, que interessado e curioso sobre todos estes assuntos muito fez e há-de fazer que decerto amanhã a Câmara constituindo uma Biblioteca para leitura pública melhor pessoa não pode ser indicada para esse fim."

Por falecimento de seu pai, José Carlos de Meio herdou uma boa parcela de terreno da quinta do Pombal.

Uma parte fora expropriada pela Câmara de então para se edificar o bairro do Pombal, e por preço irrisório.

Cova da Piedade, vista aérea (detalhe), 1938.
Terraplanagens para a construção do Bairro das Casas Económicas (metade direita superior da fotografia).
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Quanto ao talhão restante, que incluía um prédio de 1° andar e uma adega, foi abusivamente anexado, e nele construiu a Câmara o pavilhão de Assistência aos Tuberculosos, sem sequer largar um tostão ou lembrar-se de lhe dirigir um simples obrigado.

Bairro das Casas Económicas, Júlio Diniz, década de 1950.
Imagem: Cibersul

E assim viveu — modesto, desprendido e utilíssimo — José Carlos de Melo, investigador e publicista da maior importância para o conhecimento de Almada e seu termo. (1)


(1) Correia, Romeu, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada, (nas Artes, nas Letras e nas Ciências), Almada, Câmara Municipal de Almada, 1978, 316 págs.

Ver artigos relacionados:
Almada em 1897
O Ginjal não é para raparigas solteiras

terça-feira, 17 de junho de 2014

H. Parry & Son, estaleiro no Ginjal

Vista dos Jardins e Palácio do Conde Burnay e do Tejo (detalhe), Francesco Rocchini, finais do século. XIX.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Ha no destricto desta Freguesia dous pórtos de mar, hum he о da Fonte da Pipa, com seu Forte para a banda do Poente, com huma praya como a deu a natureza sem artificio algum, frequentado de muitas embarcações, especialmente lanchas, que a ella vem fazer aguadas, e pode admittir até dezoito désta casta de embarcações.

Cacilhas, Praia da Fonte da Pipa e Olho-de-Boi, João Vaz.
Imagem: Casario do Ginjal

O outro porto he o do Cubal, com huma praya mais espaçosa, que a do primeiro, assim no comprimento, como na largura, tambem sem artificio, frequentado de varias embarcações, como são; bateiras, e fragatas, e as que o frequentão todos os dias fao dezasseis, e tem capacidade para admittir até cincoenta embarcações, como barcos de Cassilhas, que em muitas occasioens do anno vem amarrar nella, pela causa de ser abrigado das tormentas dos Nordestes, e Lestes, que por aqui correm com grande violencia. (1)

Almada, Ginjal, Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 21, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

1852 — Os caldeireiros Hugh Parry e George Oakley chegam a Lisboa para trabalhar no Arsenal de Marinha.

1855 — Hugh Parry e George Oakley estabelecem-se por conta própria em Lisboa na Boa Vista. Nasce a H. Parry & Son.

1860 — [início da década de] Estabelecimento da Parry no Ginjal, no Cubal. Lançamento à água do Alcântara, vapor para transporte de passageiros, seguir-se-iam o Progresso o Lisbonense e o Belém — usavam como meio de propulsão rodas laterais, mediam cerca de 30 metros de comprimento, o casxo era em ferro e tinham uma lotação de cerca de 200 passageiros. 

Vapor da carreira de Cacilhas, 1890, Óleo, Alfredo Keil
Imagem: Casario do Ginjal

A sua construção era de tal forma resistente que estiveram ao serviço no Tejo mais de 30 anos.

1864 — Lançamento à água do Belém, o primeiro barco construído no estaleiro da Parry no Ginjal.

Navio a vapor Belém, o primeiro lançado ao mar em 1864
Imagem: Restos de Colecção

1866 — Associa-se à Parry Francis Churchill Cannell, genro de Hugh Parry.

1869 — Lançamento do Vapor n° 1 da Alfândega de Lisboa tendo como meio de propulsão a hélice.
[...] ahí por Fevereiro de 1874, [...] Começava n'essa ocasião o assentamento da linha de Carris de Ferro Americanos, do Terreiro do Paço ao Conde Barão, e existia, não havia muito, a carreira de vapores de rodas para Alcântara e Belém, de cuja opulenta frota fazia parte o roncador e cuspinhento vapor Progresso, com seu simbólico titulo de arrojado meio de transporte, e no qual tantas vezes embarquei.
in Prólogo do auto da Lisboa Velha, Affonso Lopes Vieira.
1876 — Morre Hugh Parry. Francis Cannell assume a gerência da empresa.

1890 — Ultimatum inglês.

1893 — Promessa de venda do estaleiro do Sampaio na Praia da Lapa em Cacilhas à firma H. Parry & Son pela importância de 90.000$000 réis.

1895 — Lançamento à água das lanchas canhoneiras Diogo Cão e Pedro de Annaya, encomenda da Subscrição Nacional em consequência do Ultimatum inglês. Também no mesmo ano foi construída a lancha canhoneira Honório Barreto.

1898 — Lançamento à água da canhoneira Chaimite.

Estaleiro no Ginjal, H. Parry & Son.
Imagem: Restos de Colecção

1899 — Concretização da venda do estaleiro do Sampaio de Cacilhas à H. Parry & Son.

1903 — Lançamento à água da canhoneira Tete.

Lancha canhoneira Tete.
Imagem: graptolite

1904 — Lançamento à água da lancha canhoneira Sena.

1938 — Fim do contrato de arrendamento do estaleiro da Parry no Ginjal e transferência de todos os serviços para Cacilhas. (2)

Embarcação de passageiros das carreiras do rio Tejo.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Na praia do Cubal [Cubalinho], naturalmente inclinada, estavam montadas as carreiras de construção, em madeira.

A murallha do cais era aí interrompida por uma ponte que se elevava quando havia lançamentos 

Estaleiro de construções navaes, H. Parry & Son, Cubal, Ginjal, 1890
Imagem: Museu de Marinha

"Quando a gente passava havia um sítio onde se metiam lá os batelões. Levantava-se aquela madeira para o batelão entrar, depois pousava-se a tábua. Era da Parry." (3)


(1) Cardoso, Luís, Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades..., Lisboa, na Regia Officina Sylviana e da Academia Real, 1747, 2 vol.

(2) Luzia, Angela, Esteves, Joana, Santos, Maria José E., A indústria naval em Almada: na rota do progresso, Almada, Câmara Municipal, 2012, 97 págs.

(3) Gonçalves (coord.), Elisabete, Memórias do Ginjal, Almada, Centro de Arqueologia de Almada, 2000, 88 págs.

domingo, 15 de junho de 2014

Fonte da Pipa e seu caminho

"A obra desta fonte e seu caminho, se fez por ordem de sua magestade, à custa do povo desta vila e seu termo, por tributo que se lhes impôs nos açougues desta vila e seu termo de três reis em cada arratel de carne para pagamento da dita obra na era de 1736".

Fonte da Pipa, construída em 1736.
Imagem: Visita Virtual Rotas de Almada

Cais da Fonte da Pipa (Olho de Boi), gravura, Pierre Eugène Aubert, 1820.
Lisboa, vista tomada de Almada (detalhe).
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

"Acordarão os ditos oficiais e homens bons que nenhum homem solteiro de qualquer estado e condição que seja, não esteja quedo na Fonte da Pipa nem passeie no caminho dela, sob pena de duzentos reis [de multa] e da cadeia, a metade para o Concelho, e a outra para quem acusar" [édito do Senado da Câmara, c. 1750].

Vista parcial do Tejo, Casa da Cerca e estrada da Fonte da Pipa, 1858.
Aguarela, aut. desc., datada 14 de Março de 1858.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Digno feito de ser no mundo eterno
grande no tempo antigo e no moderno
Camões — canto 8, estrofe 35
C.M.A. 10-6-1880

Pedra de armas de D. João V.

Já se acha concluída a grande reparação da estrada da Fonte da Pipa: tendo a respectiva camara municipal d'Almada recebido para a mesma obra, no dia 17 de novembro ultimo dos srs. Domingos Affonso [Quinta da Arealva] 200$000 réis; E. Prince Son & Companhia 100$000 réis e Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense [Quinta do Olho de Boi] 60$000 réis.

Almada, Miradouro do Jardim do Castelo, ed. Manil.
Imagem: Delcampe

Além destes donativos, os srs. Affondo e Price emprestaram desde o começo da obra até à sua conclusão, os seus carros, bois e trabalhadores para a remoção de terra e pedra para o concerto da estrada.

Reparação da estrada da Fonte da Pipa, 1882- 1883.

Fonte da Pipa — Almada, Olho de Boi, ed. desc.,década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Cavalheiros como estes, honram sempre o munícipio a que pertencem, e as suas obras são dignas de ficarem registadas. (1)

Miradouro Boca do Vento, Olho de Boi e Fonte da Pipa, ed. Manil, 3010 D.
Imagem: Delcampe


(1) Pereira de Sousa, R. H., Almada, Toponímia e História, Almada, Biblioteca Municipal, Câmara Municipal de Almada, 2003, 259 págs.