quarta-feira, 19 de julho de 2017

O Marquez e a Trafaria

Sebastião José de Carvalho e Melo (1699–1782)

Ainda um traço horrível d'aquelles "óptimos" tempos. Passo outros, para não dizerem que, propositadamente, ando a remexer no tumulo as cinzas do grande homem. Repugna-me invadir um campo vedado á critica, mas cujas barreiras teem sido, aliás, transpostas pelas divagações contemporâneas de achineladas farandulas e phariseus amaneirados.

Marquês de Pombal, Louis-Michel van Loo e Claude-Joseph Vernet, 1767.
Imagem: Oeiras com História

Este caso, porem, é pouco conhecido. Quando a elle me referi n'outro livro [Ferro de marca, publicado em 1913], houve quem duvidasse da sua realidade. Agora o reproduzo, sem diminuir-lhe ou alterar-lhe o sabor especialíssimo, que o próprio historiador Soriano reconheceu, apezar de, por vezes, mostrar-se captivado pelo primeiro "estadista portuguez" escrevendo comtudo a tal respeito:

"Foi esta finalmente a ultima das muitas barbaridades que tão memoráveis fizeram a administração do marquez de Pombal, concluindo assim a carreira despótica do seu governo com a sua tyrannia, sem que talvez ainda lhe ficasse satisfeita com ella o seu bárbaro coração."


José Pedro Ferrás Gramoza, não obstante a sua parcialidade bem acentuada em favor de Sebastião José, também d'elle foi escrevendo: 

"É inegável que causou gravíssimos e incalculáveis prejuízos em honras, vidas e fazendas de milhares de pessoas, por não arrear do seu péssimo sistema; e pesando-se em huma balança os beneficios públicos... e os males e prejuizos causados... pende a balança para estes".

Sebastião José, como deixou dito Gramoza, "não arreou do péssimo sistema" porque tinha a covardia do medo, a peior de todas as covardias dos déspotas. Reconhecendo-se odiado, temia-se dos ódios. Não sendo nem um luctador, nem uma capacidade, tratava de vencer pela força bruta, seguro de bem guardado e de que dispunha da illimitada confiança e rudimentar intelligencia de D. José.

Retrato de D. José I, Miguel António do Amaral, c. 1773.
Imagem: Wikimedia

Verdugo para com os fracos, receava os fortes, calando-os pela morte, ou amordaçando-os pelo cárcere. Na agitação permanente do seu espirito sanguinário, invadirão o terror dos ódios semeados. Fizera da vaidade e da ambição as suas armas; esgrimia-as... matando. 

Até 1759 escoltára-se por uma companhia de dragões, levando os sessenta soldados as espadas desembainhadas, com ordens terminantes de acutilarem sem piedade. Esta prerogativa fora "extorquida a El-Rei", affirma Gramoza. 

Retrato do Marquês de Pombal
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Precedia-o um tambor, de elevada estatura, vestindo peles e envolvendo a cabeça num turbante, tocando "continuamente uma grande caxa militar", num "som áspero e forte, que não deixava de causar respeito", ficando o povo "aturdido e espaventado". E, o mais curioso, é que, até ali, "nem mesmo a pessoa do Rei usava de similhante guarda"!

Ao apear-se da sege, depois de relancear olhares perscrutadores, apoiava-se ao braço do capitão da guarda. O terror augmentou-lhe quando se suppoz perseguido de mais perto, não pelos espectros das victimas já mortas, ou ainda morrendo lentamente, mas pelos vivos ousando encaral'o. (1)

A aurora do dia 13 de janeiro de 1759 alvorejava uma luz azulada do eclipse n'aquelle dia, por
entre castellos pardacentos de nuvens esfumaradas que, a espaços, saraivavam bátegas de aguaceiros glaciaes. O cadafalso, construído durante a noite, estava húmido [...]


Demonstração do theatro em que depois de justiçados..., representação do dia 13 de janeiro de 1759.
Imagem: Camillo Castello Branco, O perfil do marquez de Pombal, Porto, Lopes & C.a, 1900

Na casa do conde de Aveiras, e não Avero, como se lê em Colmenar, nas Delícias de Portugal, estava o Pátio dos bichos, donde saíram os condenados para o patíbulo. Este palácio foi comprado pela casa real, e é hoje o paço de Belém. (2)

Palácio dos condes de Aveiras
[no local do actual Palácio de Belém, imagem que ainda hoje é confundida com a das casas que o  duque de Aveiro teria em Belém], Les delices de l Espagne et du Portugal, Juan Alvarez de Colmenar, 1707.
Imagem: Wikipédia

Quando foi do conhecido caso de Villa Viçosa, a 3 de Dezembro de 1769, aproveitou-o para guardar-se com superior cuidado, na aparência de defender melhor a pessoa do rei. Novas ordens, mais severas, levaram a soldadesca a affastar-lhe da portada quaesquer transeuntes suspeitos, e, ás estribeiras da sege, cavalgavam desde aquelle dia dois officiaes de patente, previamente escolhidos, a quem o déspota, contrariando a proverbial avareza, sentava á sua meza, enchendo-lhes estômago e algibeiras á custa do erário.

Não ficou por aqui o beneficio auferido. Aquelle pobre idiota de João de Sousa, atirando uma paulada a D. José e duas aos condes do Prado e da Ponte, elevou-se, numa reservada intenção, de modesto serrador aloucado á categoria de regicida vendido aos jesuítas. 

Reconhecido como doido, a quem o embargo d'uma jumenta arrastara ao desforço, o marquez mandou-o torturar e matar nos cárceres da Junqueira, ordenando depois as celeberrimas instrucções de 3 de Março do anno seguinte, coartando de vez a liberdade das reclamações pessoaes e directas ao soberano.

Os queixosos, os expoliados e os perseguidos perderam assim a possibilidade d'um ultimo recurso, porque, confessa Gramoza, "a sua máxima era que El-Rei ignorasse o que se fazia em seu Nome".

Cercado de tropa, guardando-se na rua e na própria casa, onde tinha permanentemente uma força considerável, certo da ignorância superior dos seus crimes, Sebastião José considerou-se intangível.

Retrato do Marquês de Pombal.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Comtúdo, a 6 de Setembro de 1771, um mendigo quási nú, segundo referío mr. de Montigny, representante da França, conseguio attravessar a escolta, alvejando-Ihe a sege com duas pedras. Quando o prenderam apenas lastimou "não ter conseguido matar o marquez, embora o tivessem feito em bocados".

Sem conseguirem arrancar-lhe o nome pela tortura, garrotaram-no no matadoiro da Junqueira. Foi este o systema summario mais a seu contento até 1770.

Retrato do Marquês de Pombal.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Ali acabara também, annos antes, depois de bem esmagado, aquelle outro alemtejano rico de cognome Toscano, só pelo facto de, em conversa com um pseudo amigo, que veio denuncial-o, apodar de injusta a perseguição exercida contra Diogo de Mendonça Corte Real [desterrado para Mazagão em agosto de 1756], collega do déspota na secretaria da marinha e do ultramar, morto em Peniche para satisfação dos seus rancores.

Sebastião José extinguio, neste outro incidente, trez vidas: o collega, que se attrevera a discordar da sua opinião; o alemtejano, que tomara o partido da victima, e, ainda, o próprio denunciante, para que não repetisse o que dizia haver escutado.

O carrasco emérito não poupava os collegas. Alem de Mendonça, sabe-se o destino que teve o velho magistrado Thomé Joaquim da Costa Corte Real, a quem o supplicio de Malagrida arrancara um brado de protesto, secundando a voz do octogenário frei Francisco de São Thomé, o qual, num repellão de justiça, quebrara a penna com que pretendiam obrigal-o a assignar a infamissima sentença.

Pombal fez morrer no castello de Leiria o antigo companheiro no ministério, enclausurando-o numa prisão tão lúgubre que a loucura antecipou-se ao derradeiro alento, e, ao juiz digníssimo, apesar da sua muita edade e doença, violentou-o a acceitar o bispado de Angola e a embarcar sem demora, morrendo a poucas milhas da foz do Tejo.

Ainda, como primorosa obra de tal fera, será bom não esquecer o caso do genovez João Baptista Pelle, cuja sentença foi redigida pelo seu próprio punho, mandando-o conduzir num carro com insígnias de fogo á praça da Cordoaria, na Junqueira, onde lhe cortariam as mãos, sendo depois desmembrado por quatro cavallos, e, feito o corpo em pedaços, reduzido a cinzas, lançadas acto continuo ao vento.

Tudo isto, conclue a sentença, por conjurar contra a vida do "illustrissimo e excellentissimo marquez de Pombal, primeiro ministro e secretario de estado, immediato á real pessoa, e seu logar tenente"!

Não alterei uma virgula. O autografo da sentença é da própria lettra de Pombal, que o historiador Soriano vío e publicou no tomo II, pagina 156 da "Historia de D. José". Um decreto, apenso aos autos, determinou que se exacerbassem e estendessem ainda as penas merecidas por tão "infame e sacrílego réo"!

Não bastando o desmembramento pelos cavallos, applicaram-lhe também a tortura ordinária e extraordinária para descobrir qualquer cúmplice. Tão pouco admittiram embargos, executando-o no dia 11 de Outubro de 1775, depois da hora e meia da tarde [o erudito lente da Universidade de Coimbra António Luiz de Sousa Henriques Secco, alludindo ao facto nas "Memorias do tempo passado e presente", convenceu-se, pela leitura do processo, de que este desgraçado morrera innocente].

Como prisões de sua preferencia existiam outras, álêm dos fortes da Junqueira e Peniche, a torre do Bugio, o castello da Foz e o fortim de Pedrouços, por exemplo.

No ultimo jazeu durante oito annos D. Miguel da Annunciação, o desgraçado bispo de Coimbra, sahindo de lá trôpego, coberto de farrapos e quasi cego.

Tinha sido dedicado amigo de D. João V, perseguindo-o depois Pombal com feroz intransigência. Tendo 66 annos, expulsou-o do bispado e encarcerou-o.

Sabe-se também quanto o seu rancor por D. João V era temível, incidindo nos próprios filhos bastardos, D. Gaspar, D. José e D. António, os chamados meninos de Palhavan, nascidos os dois primeiros dos amores com D. Luiza Clara de Portugal, a Flor da Murta, cujo esposo, D. Jorge de Menezes, morreu de vergonha em 1735, e, o terceiro, talvez de D. Francisca de Mello, alcunhada a "Pimentinha" [outros dizem-no nascido ou de D. Catharina de Miranda e Castro, a Pimentinha, ou da zíngara Margarida do Monte, ou da cómica Petronilla. A edade atribuída a D. António corresponde, pelo seu nascimento, ás relações de D. João V com D. Francisca de Mello].

Bem desejara o irmão reinante protegel'os, logrando apenas evitar maior desaire ao mais velho, nomeando-o arcebispo de Braga, em 1756.

Quando, nesse mesmo anno, proveu no cargo de inquisidor geral o segundo, o rancor pombalino logo tratou de minar-lhes a influencia, perseguindo-lhes os mais dedicados amigos. Lá figuram no rol, quanto a D. Gaspar, os nomes de D. Francisco de Jesus Maria, Veríssimo da Annunciação e D. Manuel de Nossa Senhora, accusados de defenderem a innocencia dos Tavoras. 

Dos Íntimos de D. José de Bragança recordarei D. Estevão da Annunciação e o cruzio D. João de Santa Maria de Jesus, atirados para as masmorras da Junqueira, onde jazeram 17 annos.

Retrato do Marquês de Pombal.
Imagem: Wikipedia

Mas Sebastião José ambicionava mais: o logar de inquisidor geral para o irmão e o vexame para os filhos dilectos de D. João V. 

Consegui-o em 1760. D. José de Bragança foi coagido a demittir-se em 5 de Julho, e, quatorze dias depois, elle e D. António, viram, durante a noite, o palácio de Palhavan invadido pelos sicários pombalinos, que o saqueiaram completamente, seguindo elles, debaixo de prisão, para o Bussaco. 

Paulo de Carvalho, o irmão do déspota, occupou, desde aquelle anno até 1770, a presidência suprema do Santo Officio, cujo novo Regimento, mais bárbaro e despótico, Sebastião José redigio em 1774.

First degree of Torture by the Inquisition, Historical military picturesque..., George Landmann.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Para sacial-o não bastavam já as muralhas negras dos fortes, nos subterrâneos pavorosos. O ideal supremo para amarguramento de vidas transitou para os cárceres do Rocio, em cujos equuleos morreram, á força de tractos, centenas de infelizes.

As sinistras masmorras de Sua Magestade a Inquisição, na graciosíssima mercê, encontraram-se abarrotados quando foi demittido, sendo da Historia o facto provado de ordenar a adopção rigorosa e esperta dos mais dolorosos artifícios de tormento, desde o potro, onde a victima, completamente núa, era deitada sobre quinas agudas e apertada gradualmente para bem as sentir cravando-se-lhe na carne, até ao desconjuntamento na polé, collocado o paciente a muita altura do solo, suspenso pelos pulsos ligados atraz das costas e tendo um peso enorme nos pés, deixando-o depois cahir bruscamente repetidas vezes, sem nunca alcançar o pavimento!

Second degree of Torture by the Inquisition, Historical military picturesque..., George Landmann.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Só da Inquisição foram retirados quasi mortos, em 1777, perto de oitocentos desgraçados. Os menos infelizes ou estavam cegos e idiotas, ou inchados e incapazes de andar. A quasi todos nem mesmo havia sido instaurado processo!

E quantos ali morreram, não podendo resistir á tortura, ou vieram, como [Gabriel] Malagrida, recrear na fogueira o pospasto dos opíparos festins dos julgadores?

O trabalho de Moore, publicado em Londres em 1814, alguma coisa diz a esse respeito, salientando o Auto de Fé realisado em 27 de Outubro de 1765, assistindo-Ihe Sebastião José e o irmão, commodamente gosando as delicias de tal funcção em poltronas privilegiadas com alterosos espaldares, facto que surprehendeu Mr. de Saint-Priest, officiando a extranhar a lúgubre occorrencia, para que fora convidado, e, por ultimo, esclarecendo o seu governo de que a "Inquisição", presidida por Paulo de Carvalho, "era um instrumento que o marquez de Pombal tinha ás suas ordens".

Sebastiao José Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, rodeado de sus hermanos: Monseñor Don Paulo de Carvalho e Mendonça, Gran Prior de Guimaraes, Arzobispo y Cardenal de Lisboa, y Don Francisco Xavier de Mendonça e Furtado, Capital General y Gobernador de Grao-Pará y Maranha, siglo XVIII. Techo de la Sala de la Concordia del Palacio del Marqués de Pombal, Oeiras. Concesión por el Ayuntamiento de Oeiras, Portugal
cf. Las Reformas en La Monarquía Portuguesa...

A covardia, o orgulho e a vaidade inspiravam Sebastião José na organisação d'esses espectáculos sanguinários, cujos programmas capricharam em requintes de horroroso barbarismo. Não sou eu que o digo; é a Historia, que todos podem e devem vêr, hoje que já não é prohibida a leitura e a simples posse das obras contrarias ao Santo Officio, como Pombal determinou, castigando severamente os desobedientes.

Comtúdo, nesta ancia recente de notoriedade, que o alardeamento d'um patriotismo equivoco pretende justificar, andam, modernamente, os pseudo-liberaes tecendo louvaminhas e traçando encómios a tão avinagrado carrasco, por cujas garras elles próprios ficariam despedaçados se tivessem vivido na sua epocha.

Vê-se que, entre victimas e algoz, captiva-os o segundo, como fonte ubérrima de mais grata inspiração a seus artigos, discursos e ensinamentos de laudatórias homenagens. Frederico Soulié, por exemplo, costumava rodear-se de esquifes e de esqueletos, procurando nos espectros da Morte a desejada veia.

É natural que também escrevesse ás escuras, como de Vigny, ou apenas utilisando luzes diffundidas pelas órbitas vazias d'um craneo. Se conhecesse a vida de Pombal dispensaria taes decorações macabras, bastando-lhe retroceder na Historia portugueza e evocar as imagens das victimas conhecidas e desconhecidas, nesse tripúdio infernal do seu estuoso governo, excruciante em flagellos e crimes sem precedentes.

Onde porem Soulié encontraria razões de severa critica, taes outros descobriram motivos de júbilo, num excitante recreativo pelos males alheios. Será, portanto, para elles, mais este trecho histórico, aperitivo consolo das suas almas tenebrosas...

D. José avançava rapidamente para a Eternidade. As dores, sempre mais agudas, levavam-no a soltar fortes gritos. É possível que os remorsos por tantos actos de fraqueza, acceitando ás cegas a tutela do seu primeiro ministro, concorressem para o apavoramento nessas intermináveis noites antecessoras da eterna.

Retrato do Marquês de Pombal, Joana do Salitre (atrib.), 1770.
Imagem: Museu de Lisboa

É também natural que, nos últimos mezes, avergado e arrependido, o acabrunhassem os espectros das victimas, muitas gemendo ainda pelas enxovias lúgubres, outras acabando aos poucos nas cellas miseráveis de alguns conventos.

O espectáculo do terreiro de Belém, que presenciara de longe, tendo o rosto afincado ás vidraças da Ajuda, e, d'aquella mesma noite trágica, a pavorosa fogueira tingindo de sangue as nuvens acastelladas sobre o ceu, deviam com certeza reproduzir-se na sua imaginação enfraquecida, pensando talvez na ex-amante, causadora indirecta do horroroso morticínio.

Panorâmica do Bairro da Ajuda [jardim de Lázaro Leitão, Real barraca da Ajuda etc.], B. R. Bourdet.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Fosse porque fosse, D. José recebia no soffrimento physico, progressivamente augmentando, retribuição merecida pelas boas obras consentidas. Mas, ainda sem energia, como irresoluto andróide, queria o predilecto ministro bem perto de si, confiando talvez que do seu empedernido coração brotassem allivios.

O marquez, entretanto, illudindo-se com a marcha da doença, resolvera nova façanha. Um mez antes da morte do real amo e pupíllo, cravou ainda as garras em peitos innocentes.

Foi na madrugada de 24 de Janeiro de 1777. Chegavam d'álêm fronteiras ameaças pouco tranquillisadoras. A Hespanha, farta de aturar-lhe as evasivas e as prosápias, dispunha-se a guerrear-nos.

No Tejo haviam ancorado doze naus de combate, sob o commando do almirante de Castella. A marinha portugueza estava reduzidíssima; o exercito, mal pago, não tinha na effectividade mais de quarenta mil homens.

Ordenou-se um recrutamento violento, arrebanhando-se gente para a possibilidade de uma guerra contrariada pela alma do paiz. A aura pombalina offuscára-se; a nação estava farta d'elle. O povo, pesando-lhe os rancores, minava-lhe o pedestal.

Quando os esbirros prenderam novos e velhos numa varredoira, deu-se uma debandada. A gente moça tratou de escapulir-se, alguma acoutando-se pelas serranias do norte, outra, em menor numero, refugiando-se na Trafaria.

Vista do Tejo e da Trafaria, The river Tagus at Trafaria, John Cleveley Jnr, 1775.
Imagem: Bonhams

Soube da fuga o ministro, informando-se do que por lá fazia, entre os pescadores, aquélla ralé da Lisboa insubmissa. Constou-lhe que, num rompante de ódio, tinha empalhado uma estatua á sua imagem, queimando-a como moderno Judas.

Effectivamente, para quem se rojara supplicante aos pés do jesuita Carbone, e, recebendo auxilio, mordera as mãos protectoras, não havia desarrasoamento na parecença. Comtudo, semelhante attentado irritou-o.

Se os mandasse simplesmente prender, chibatar e metter á força nos quartéis, não ficaria bem vingado. Resolveu portanto retribuir-lhes a rebeldia, mandando fazer ao vivo o que os míseros tinham realisado platonicamente num boneco de palha.

O intendente da policia chamava-se Diogo Ignacio de Pina Manique, de génio áspero que lhe cahíra no agrado. Chamou-o, dando-lhe uma ordem em segredo.

Correu versão de que o intendente, apesar da rijeza, empallidecera e perguntara:
— Todos?!
— Sim, todos, respondeu Pombal, olhando-o pelas grossas lentes da sua luneta de aros de oiro.
E accrescentou :
— Leve trezentas praças e bastantes archotes.

Alta noite, Pina Manique atravessou o Tejo, cercando a povoação adormecida.

Rio Tejo e Torre de Belém (efeito de luar).

Os pobres pescadores e os fugitivos de Lisboa amontoavam-se em casas humildes, colmaçadas, construídas de simples tabiques. A milséria encontrara naquelle ermo um refugio. 

Quando a linha da soldadesca, de armas aperradas, fechou o circuito, o intendente deu o signal da matança. Os esbirros, accendendo os archotes, entraram na povoação, incendiando as habitações e os mattos accumulados. Num momento o fogo irrompeu de todos os lados, cruzando-se e alteando-se as labaredas, tingindo as aguas do rio...

Do palácio da Ajuda, Pombal assistio de longe á pavorosa scena, contente pelo clarão sinistro que vencia a claridade turva da manhã, aquecendo-lhe o sangue dos seus 78 invernos.

Também, 18 annos antes, naquelle mesmo mez, sentira prazer egual, vendo, lá baixo, no terreiro de Belém, outro clarão semelhante... Aquelle homem herdara os fígados de Nero e Tigelino!

Retrato do Marquês de Pombal.
Imagem: Wikimedia

Entretanto, na Trafaria, as victimas, apanhadas de surpreza, corriam desorientadas por entre as chammas, as mães procurando salvar os filhinhos, os homens transportando ás costas os doentes e os inválidos, para que o fumo não os asphixiasse. 

Para álêm das labaredas estavam porem os soldados, recusando-lhes passagem á força de coronhadas. Alguns, enojados por tanta selvageria, abriram espaço, deixando fugir poucos míseros. Pina Manique fingio não ver a transgressão das ordens. Mas os que partiram, occultando-se desorientados pelas furnas das penedias, nem sequer levaram roupa que os abrigasse. 

A maioria ficou porém na fogueira, amontoada sobre os restos das casas fumegantes, lavrando o pavoroso incêndio até consumir tudo. Suppõe-se que morreram d'esta forma 230 infelizes! A povoação desappareceu. Quando já nada restava do que fora, a tropa e os incendiários retiraram.

Paisagem com pescadores e cabana de palha a arder, Joaquim Manuel Rocha (1727-1786).
Imagem: Palácio do Correio Velho

O intendente, com o fato manchado pela cinza, dirigio-se á Ajuda. A ordem estava cumprida, e, D. José, desconhecendo o facto, entrou nos arrancos que duraram trinta dias.

Medonha agonia foi a sua, conjugando-se a doença, minando-o desde 1775, com as allucinaçoes do ultimo período. Nos momentos lúcidos das punhaladas cerebraes, agarrando as mãos de D. Marianna Victoria de Bourbon, supplicava-lhe que não deixasse de influir no espirito de sua filha, tornando-a compassiva para com o causador de tantos aggravos anteriores.

A irmã de Carlos III de Hespanha, prestes a reconhecer-se viuva de facto, animava-o, mas já não dessimulava como até ali a inimizade contra o orgulhoso valido, do qual nem sequer acceitou homenagens na própria camará do moribundo. 

Chamando então D. Maria Francisca, regente desde 29 de Dezembro, D. José implorou-lhe que poupasse Sebastião José na decrepitude. Sem resolução de firmar ainda qualquer documento protegendo-o, entregou-o apenas á duvidosa clemência da successora!

Ao corrente da tempestade próxima, longe estava comtúdo o marquez de suppôr, no orgulho de Judas satisfeito, que, pouco tempo depois, entrando naquelle mesmo paço, onde fora senhor absoluto, sahiria a embargar-lhe os passos o cardeal da Cunha, dízendo-lhe em nome da futura rainha: "V. Ex.a póde retírar-se; nada tem que fazer aqui".

A 4 de março recebia também, das mãos de Martinho de Mello e Castro, o decreto demittindo-o de primeiro ministro. A noticia, logo conhecida, foi como rajada de vento norte dispersando nuvens sombrias. Escancarados os cárceres, reencontraram-se emfim parentes e amigos que se suppunham mortos.

A onda popular, no dia seguinte áquelle, apedrejou-lhe a sege que o transportava para o exilio, e, no Terreiro do Paço, outro tanto succedeu ao seu medalhão em bronze, por elle próprio mandado collocar no monumento, obrigando o governo a retiral-o d'ali [foi reposto no mesmo sitio em 12 de Outubro de 1833].


Estátua equestre de D. José I,
gravura de Joaquim Carneiro da Silva segundo desenho de Machado de Castro.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Mais tarde, entrevado e leproso, arguido de concessionário, de libertino e traidor, procurou-o emfim a morte em 8 de Maio de 1782. 

Perto da hora extrema implorou misericórdia. O terror pelo desconhecido esmagou-o. É que o remorso foi sempre antecessor do fim. Impoe-no a consciência alarmada pela certeza da inevitável transição. Nem ha corações de bronze que lhe resistam, nem blasfémias ultimas suffocando-o. Sebastião José cahio, ouvindo, só então, o arrancado estertor de muitas boccas, acompanhando-o o referver da carne humana em sacrifícios de innocentes. 

O último interrogatório do Marquês de Pombal (janeiro de 1780), José Malhoa,1891.
Imagem: Matriz.net

Aquéllas labaredas da Trafaria foram, portanto, para elle, os brandões collossaes do seu próprio esquife, que os soldados de Massena arrombaram em 1810, espalhando-lhe os ossos pela egreja de Santo António de Pombal. (3)


(1) Augusto Forjaz, Livres das féras, Lisboa, Livraria Férin, 1915
(2) Camillo Castello Branco, O perfil do marquez de Pombal, Porto, Lopes & C.a, 1900
(3) Augusto Forjaz, Idem

Leitura relacionada:
Luz Soriano, Historia do reinado de el-rei D. José... Tomo II, Lisboa, Typ. Universal, 1867
José P. F. Gramoza, Sucessos de Portugal..., Lisboa, Typ. do Diário da Manhã, 1882
Camillo Castello Branco, O perfil do marquez de Pombal, Porto, Lopes & C.a, 1900
Miguel Sotto-Mayor, O Marquez de Pombal..., Porto, Livraria Editora, 1905
Uma História do confronto entre o Marquês de Pombal e a Companhia de Jesus 1750- 1759
O incêndio de 23 para 24 de Janeiro de 1777 na Trafaria

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Cronologia breve da Torre Velha (3 de 3)

Torre Velha ou Fortaleza de São Sebastião de Caparica

Torre Velha, John Thomas Serres, c. 1801.
Imagem: Catarina Pires no Facebook

1801

Em 1801, terminado o infeliz conflito que ficou conhecido por "guerra das laranjas" e nos custou a perda de Olivença, encontramos de novo desactivadas as fortalezas da margem sul. As guarnições haviam sido reduzidas ao mínimo e descuradas as dotações de pólvora e munições.

A situação de abandono das fortalezas e a negligência em cuidar da defesa manteve-se até à partida de D. João VI para o Brasil. Os acontecimentos europeus pareciam não perturbar a inércia da corte e dos responsáveis. A Torre conservava as linhas gerais de 1692, apenas com a renovação da bateria baixa, aliás inacabada.

Torre Velha, corte pela falésia.
Imagem: Pedro Cid, A Torre de S. Sebastião de Caparica...

Confirma-o uma memória do marquês de La Roziere onde se indicam 4 baterias: a primeira era aquela designada em 1692 por braça baixa e ficava virada a norte; tinha sete peças de ferro calibre 24 e duas peças de bronze calibre 18 "sobre reparos de marinha quase apodrecidos". 

A segunda bateria estava na explanada imediatamente a sul, contígua e muito alta, era o espaço com parapeito compreendido entre a velha torre e a cortina nascente; tinha 6 peças de calibre 6 "sobre reparos de marinha fora de serviço".

A terceira bateria estava na explanada dita "praça alta" em 1692; tinha 5 peças de bronze de calibre 18. 

A quarta bateria era provavelmente aquela abaixo e contígua à primeira, mas não havia sido acabada; é uma das previstas no projecto de D'Alincourt.

1807 (ocupação francesa)

A situação da Torre de S. Sebastião e dos seus acrescentamentos constam do relatório do oficial francês Amaute elaborado em 6 de Dezembro de 1807, logo após a ocupação francesa: Forte da Torre Velha.

Esta fortificação é fechada por urna porta dupla [refere-se à porta de armas na cortina sul], está rodeada de um pequeno fosso do lado de terra, não foi feita senão para bater o rio; entretanto podia fazer-se aí uma vigorosa defesa, se bem que ela seja dominada por uma elevação não inferior a 150 toesas [1, 82 m...]

1810

A ideia de uma linha de defesa terrestre na margem sul não era nova — tivera-a já o conde de Lippe em 1762 — mas foram afinal os ingleses que, sob as directrizes do tenente-coronel J. Fletcher, comandante do corpo de engenheiros de Wellesley e do capitão John Jones, adjunto daquele, que executaram as linhas de defesa, nos anos de 1810-11. 

Esboço do terreno da margem esquerda do Tejo, extendendo-se de Almada à Trafaria, entrincheirado como posição militar, cf. Journals of sieges carried on by the army under the Duke of Wellington, 1811-1814.
(Assinalam-se também o Vale de Mourelos interseptado por vedações e os esteiros no lugar da Piedade)
Imagem: Internet Archive

Duas linhas no total de 21 fortes protegiam os ingleses de um ataque por sul, cobrindo a margem do rio desde a Margueira até Alpena. Com excepção do Forte de Almada, o n.° 1 da segunda linha eram todos redutos de campanha, de construção provisória.

Estas linhas, tal como a linha de defesa próxima a nõrte de Lisboa, destinavam-se a exercer uma acção de retardamento no caso de rotura das Linhas de Torres ou de um poderoso ataque pelo Alentejo permitindo nestes casos o reembarque das tropas inglesas. 

Quanto aos franceses de Junot, não chegaram a construir qualquer linha de defesa equivalente, mas colocaram na margem esquerda um forte contingente de tropas. (1)

1813

Foi em 1813 que o lazareto foi mudado para a Torre Velha, ou de S. Sebastião, havendo então três barracas para arrecadação de fazendas, um acanhado armazém sobre a bateria do forte e mais duas pequenas casas, uma para recolher os escaleres, tendo superiormente a secretaria, e outra, chamada a da balança, onde eram pesadas as fazendas, a fim de se cobrarem as percentagens, que constituíam, os emolumentos para os empregados. 

Era em pontões que os quarentenários, sem commodidade de espécie alguma e em uma accumulação, contra a qual embalde todos reclamavam, tinham de passar o tempo da sua quarentena, sem ao menos haver um isolamento que inspirasse alguma confiança [...]

1837

O conselho de saúde, criado em 1837, representou logo ao governo sobre a impropriedade com que a Torre Velha estava servindo de lazareto, e a necessidade urgente de se construir um em logar conveniente e com todas as condições exigidas pela sciencia moderna e pela humanidade. (2)

1840

Hum occulo apontamos os nós de sobre o terraplano superior da torre de Belem, e com seu auxilio desenhamos nossa estampa, com todas as gentilesas, que d'ali podemos ver.

Vista da Torre Velha, O jovem naturalista n .° 9, 1840.

Abstemo-nos de formar a resenha de seus detalhes, por quanto, assaz escrupuloso na imitaçam dos originaes, cremos que nossa estampa falla evidentemente a intelligivel linguagem do desenho, e tanto, quanto em nossa fraquesa cabe.  Á vista do que havemos dito da posiçam d'esta torre, he facil de ver, que sua frente olha perpendicularmente ao Septemtriam ou Norte. 

Ella parece ser mui anterior á torre, sua visinha. 

O gruppo de casas que vemos á direita n'huma pequena praia tem por nome o "Lazareto" onde se depositam as carregações dos navios, que sam emprasados pelo Conselho da saude.

Lá, temos tambem huma rampa, guarnecida d'hum muro, que he o caminho para entrar-se na torre. (3)

Torre Velha, Lisbonne, François d'Orléans, prince de Joinville, 1842.
Imagem: Sotheby's

Em 1844 começou a construcção de dois armazéns de alvenaria em andares, destinados ás mercadorias, e uma muralha na praia para as descargas e desembarques. (4)

1864


A invasão da febre amarella em 1857 foi causa de que se fizessem algumas obras havia muito altamente reclamadas pela hygiene publica, e pelo decoro da capital; e tambem de que se planisassem outras não menos necessarias, mas que não passaram de simples projectos.

Novo lazareto da Torre Velha, Barbosa Lima, 1864.
Imagem: Novo lazareto da Torre Velha, Archuivo Pittoresco n.° 27, 1864

Entre as primeiras tem um togar distincto pela sua importantia o novo lazareto, obra gigantesca, para a qual não chegou a primeira somma de cem contos de réis votada pelas cortes. Achava-se estabelecido o antigo lazareto na Torre de S. Sebaslilio de Caparica, vulgarmente chamada Torre Velha [...] (5)

1868

Em 11 de maio de ISGS apresentou o engenheiro D. António de Almeida o ante-projecto de uma doca no lazareto, formada por um molhe de alvenaria hydraulica revestido de cantaria, tendo 100 metros de extonsão e parallelo ao cacs de terra, na direcção de Nascente a Poente, deixando ao centro uma entrada de 10 metros de largura.

Vista da enseada da Paulina e da Torre Velha, 1897.
Imagem: Branco e Negro Semanário Ilustrado



Em 1875 construiu-se na doca do Lazareto a primeira ponte-caes de madeira, cujo projecto foi elaborado pelo engenheiro Cândido de Moraes.

Enseada Paulina, cais e armazéns do Lazareto, 1897.
Imagem: Branco e Negro Semanário Ilustrado
Tinha 30 metros de comprimento por 6 de largura, partindo de um terrapleno que se conquistou com uns inuros assentes sobre a rocha, que se encontrava por fora do caes.

Esta ponte deteriorava-se rapidamente, e a doca assoreava-se, o que dava origem a repetidas reclamações do ministério do reino.

Vista da Torre Velha e do Lazareto (novo), 1897.
Imagem: Branco e Negro Semanário Ilustrado

Em 1880 construiu-se nova ponte de madeira, a qual mais tarde foi substituída por outra de estacas metallicas.

Torre Velha de Caparica, 2009.
Imagem: Wikipédia

Em 1892 estava de novo a doca por tal forma assoreada, que o ministério do reino dizia que os passageiros já não podiam ir desembarcar ao caes, o que levou a novos projectos de construcção e de reparação das pontes-caes [...] (6)


(1) R. H. Pereira de Sousa, Pequena história da Torre Velha, Almada, Câmara Municipal, 1997
(2) Adolpho Loureiro, Os portos maritimos de Portugal... Vol. III, Lisboa, Imprensa Nacional, 1904
(3) O jovem naturalista n .° 9, 1840
(4) Adolpho Loureiro, Idem
(5) Novo lazareto da Torre Velha, Archuivo Pittoresco n.° 27 1864
(6) Adolpho Loureiro, Idem, ibidem

Artigos relacionados:
Torre Velha por dom António
Líricas de Melodino
Defesa de Lisboa em 1810 (I)
Defesa de Lisboa em 1810 (II)
Defesa de Lisboa em 1810 (III)
Lazareto de Lisboa, em 1897

Leitura adicional:
Catarina Oliveira, IGESPAR, I.P./ Maio de 2012
Linhas de Fortificação da Margem Sul
Fortificações da foz do Tejo
À descoberta das sentinelas...
Forte de São Sebastião de Caparica (fortalezas.org)
rossio. estudos de lisboa n. 7 dez 2016
A (abandonada)Torre de São Sebastião de Caparica
Lugares Esquecidos, Torre de S. Sebastião da Caparica

Bibliografia:
Sousa, R. H. Pereira de, Fortalezas de Almada e seu termo, Almada, Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Almada, 1981
Sousa, R. H. Pereira de, Pequena história da Torre Velha, Almada, Câmara Municipal de Almada, 1997
Júnior, Duarte Joaquim Vieira, Villa e termo de Almada: apontamentos antigos e modernos para a história do concelho, Typographia Lucas, Lisboa, 1896
Cid, Pedro, A Torre de S. Sebastião de Caparica e a arquitectura militar do tempo de D. João II, Lisboa, Ed. Colibri, 2007

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Cronologia breve da Torre Velha (2 de 3)

Torre Velha ou Fortaleza de São Sebastião de Caparica

Torre Velha, John Thomas Serres, c. 1801.
Imagem: Catarina Pires no Facebook

1586 (domínio filipino, Torre dos Castelhanos)

Durante a dinastia filipina, novamente as questões da defesa costeira portuguesa se tornaram prementes, pelo que a Torre Velha voltaria a ser alargada e modernizada. Durante este período ficava conhecida como Torre dos Castelhanos. (1)

Na Torre velha vê-se claramente a praça baixa de artilharia. A fortaleza de madeira da Cabeça Seca não está desenhada pelo que é lícito deduzir que havia desaparecido ou estaria muito destruída.

Zee Caerte van Portugal... (detalhe), Lucas Janszoon Waghenaer, 1586.
Imagem: Wildernis

1590

Esta estampa faz parte de uma colecção datada de 1673, mas pelas fortalezas nela inscritas e por a fortaleza da Cabeça Seca ser ainda a construção de madeira devemos recuar a data para 1590, ou até anterior.

A barra do Tejo baseada no Regimento de Pilotos de António de Mariz Carneiro de 1642, reprodução de 1673.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal


Estão representados o alcance útil da artilharia e as principais direcções de tiro, tanto quanto parece [] distingue-se a planta em"U" da Torre Velha. (2)

Torre de Belém (D), Castello de Almada (P), Torre Velha (Q), Forte da Trafaria (R).
Descrição e plantas da costa... (detalhe), Felippe Tersio, c.1590.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Lembro-me como se fosse hoje. Deixada a estrada de Porto Brandão, subimos um caminho de terra atravessando, não sem medo, a mole semi-derruída do Lazareto (construido em 1867) então ocupada por retornados; passá­mos grades e galgámos muros; atravessámos uma vasta zona de mata quase amazónica (sinal da humidade retida no fosso aquático que rodeava por terra a fortaleza...); passámos pela frente abaluartada feita em 1571 por Áfonso Alva­rescomo eu sabia por textos, mas que nunca viracom o seu belo portal de pedra almofadada e ponte levadiça, entrando no pátio onde estão os restos setecentistas do Palácio do Governador e as ruínas da capela de São Sebas­tião; para então, ao fim de uma larga esplanada tendo Lisboa como pano de fundo, vê-la erguer-se: a Torre.

Vista norte: Porto Brandão (A), Torre Velha (B), Porto da Torre Velha (C), Torre de Belém (O).
Descrição e plantas da costa... (detalhe), Felippe Tersio, 1590.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

A primeira impressão é, devo confessá-lo, de alguma decepção. (2)

1640 (restauração da independência de Portugal)

Entregou-se o Castello da Cidade, e no mesmo dia as Torres de Belém, Cabeça Secca, Torre Velha, Santo António , e o Castello de Almada, tendo a Duqueza de Mantua a que passava as ordens, que sem resistencia se guardavam.

Mandaram os Governadores sahir do Paço a Duqueza de Mantua para o de Xabregas , onde foi acompanhada do Arcebispo de Braga, e daqui foi mandada para o Mosteiro de Santos das Commendadeiras da Ordem de Santiago.

Os Officiaes de Guerra , e Fazenda Castelhanos , foram postos em custodia competente [...]

Era o principal cuidado delRey [D. João IV] a defensa do Reyno, e assim tratou logo de nomear Generaes, e Cabos para as Províncias [...] 

 a Torre de Belém a António de Saldanha, e por seu Tenente Jacintho de Sequeira; a Torre da Cabeça Secca S. Lourenço ao Capitão Rolão, e por seu Tenente Bernardo Botelho; a Torre Velha a seu Capitão mor Ruy Lourenço de Távora; (3)

1668

A torre é um edifício simples, rectangular sobre o alto, sem traço de decoração: arqui­tectura em estado puro. Mas depois de rodeá-la e examinar as suas paredes nuas, de descobrir nos cantos ao pé do chão seteiras cruzetadas de belo traça­do quatrocentista, outras no andar de cima para tiro vertical; de ver a porta de origem — no piso superior como nas torres medievais, mas de verga recta — com um brasão liso [de Portugal] (de D. João II gasto pelo tempo ou dos Távoras, senhores de Caparica, picado por ordem de Pombal?); de galgar a larga escadaria bar­roca até ao enorme vazio interno, a que falta grande parte do piso em madeira; de observar a magnífica abóbada de berço sem uma fissura apesar dos seus 530 anos de idade — pois uma das conclusões deste trabalho foi datá-la sem erro de 1481 — e de subir a escada a um canto na parede, com frestas para ilu­minação, vigia e tiro, que conduz sem falha ao amplo terraço do alto, de onde se goza de uma vista soberba sobre a foz do Tejo, o efeito muda por completo. (4)

Viaje de Cosme de Médicis por España y Portugal (1668-1669), Pier Maria Baldi.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

1692

Um retrato muito exacto da fortificação é-nos proporcionado por uma planta d 1692. A planta mostra a torre, então já rebaixada circundada por duas cortinas com três baluartes nos ângulos e do lado oeste uma praça de artilharia, junto da antiga Torre. 

Planta da Torre Velha de Caparica, Mateus do Couto, 1692.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Todas as partes fundamentais traçadas na planta de 1692 subsistem nos nosso dias. São elas, escolhendo as mais características: A torre do século XV, já rebaixada; As cortinas leste e sul e os três baluartes; O fosso, a leste, agora entulhado; A casa do governador, a capela adossada à cortina da porta de armas e uma construção abrigando uma escada no ângulo sueste da praça de armas.

c. 1700

São partes agora desaparecidas a escadaria de acesso à praça baixa de artilharia e esta mesma praça com os respectivos paiois. O desaparecimento da bateria baixa é, por certo, mais uma vez, consequência do progressivo recuo da arriba com sucessivos aluimentos. Na cortina leste, a planta dá-nos ideia de que, pelo lado interior, o da praça de armas, se fez um alargamento em relação ao existente no século XVI, acrescentando paiois. Também pelo lado sul a cortina da porta de armas podem ter sofrido intervenção semelhante, mas aqui a evolução é menos evidente.

Configuração da entrada da Barra do Porto de Lisboa... (detalhe), c. 1700.
Imagem: Fortificações da foz do Tejo

Este processo do rápido recuo da arriba resulta da fraca consistência do terreno, onde os calcários do terciário pouco consolidados e muito fracturados se misturam com grandes quantidades de terreno argilo-arenoso e com un espessa camada de aluvião [...]

1794

O conde de Lippe, o grande reformador do nosso exército, dedicou grande atenção às fortificações e preconizou mesmo a construção de uma linha de defesa com frente olhando para sul ao longo da linha de alturas entre Almada e a Raposeira; natural seria pois ter havido intervenção nas fortalezas marítimas a sul do Tejo, nomeadamente a Torre de S. Sebastião.

Torre Velha ou Torre de S. Sebastião da Caparica, Francisco de Alincourt,1794.
Imagem: Instituto Geográfico do Exército

Uma "Memória Geográfica Sobre o Reino de Portugal", publicada em Paris em 1767, informa o seguinte: "A esta torre [S. Vicente de Belém] opõe-se pelo lado sul a Torre Velha ou de S. Sebastião. Está situada sobre uma montanha e as suas baterias altas e baixas cruzam a da Torre de Belém."

Da descrição pouco se pode inferir mas é possível que a fortificação estivesse então operacional. Na última década do século XVIII a Torre sofreu obras: um ofício dirigido ao juiz de fora da vila de Almada, datado de 24 de Fevereiro de 1793 faz referência ao envio de madeiras "para as obras que se estão fazendo na Torre Velha".

Caparica Torre Velha em Porto Brandão,  Cota GEAEM 2696-2A-25A-36 1795.
Imagem: Fortificações da foz do Tejo

Estavam pois em curso, obras na torre, o que se confirma por um relatório de Guilherme Luís António de Valleré de 9 de Setembro de 1794 dirigido ao ministro da guerra, o Duque de Lafões.

Neste relatório, muito detalhado na descrição da artilharia, munições e palamenta existentes na torre, afirma Valleré que, "com as obras que se lhe têm acrescentado é capaz de se lhe colocar na frente que defende a passagem do Tejo, a artilharia seguinte: 12 peças de calibre 36; 13 peças de calibre 24; 11 peças de calibre 18; 7 peças de calibre 12. 

Caparica Planta da Torre Velha do Porto de Lisboa, Cota GEAEM 2700-2A-25A-36 1700 1900.
Imagem: Fortificações da foz do Tejo

No total portanto de 43 peças só nas frentes do Tejo e previa ainda mais 6 peças de calibre 6 para defesa pelo lado de terra. De acordo com o mesmo relatório de Valleré o número de peças existente era inferior ao previsto: 5 peças de ferro de calibre 24; 7 peças de bronze de calibre 18; 7 peças de bronze de calibre 12; 6 peças de ferro de calibre 6.

Havia ainda mais uma peça de bronze desmontada e inutilizada. Todas as peças estavam montadas sobre reparos de marinha, novos.


Dirigiu as obras entre 1794 e 1796 o coronel Francisco D'Alincourt que, neste último ano apresentou um projecto para ampliação da fortaleza. 

O projecto não foi executado, apenas se verificando agora a existência de algumas partes que lhe podem corresponder.

São elas: um largo parapeito junto da bateria baixa que se propunha acasamatada, com frente para oeste-noroeste, que ainda estava por acabar em 1803 e uma bateria acasamatada para 6 peças, prevista para defesa pelo lado de terra, situada no canto sudoeste da praça alta, num lugar onde a planta de 1692 representava a muralha como inacabada. 

Caparica Torre Velha em Porto Brandão, Cota GEAEM 2680-2A-25A-36 1700 1900.
Imagem: Fortificações da foz do Tejo

Um excelente desenho a cores de 1796 assinado por D'Alincourt mostra-nos que toda a artilharia destinada a atirar sobre navios seria disposta em baterias baixas acasamatadas. No desenho observam-se 29 canhoneiras em bateria baixa e 10 em bateria alta. 

Torre Velha ou Torre de S. Sebastião da Caparica, Francisco de Alincourt, 1794.
Imagem: Instituto Geográfico do Exército

A perspectiva não permite observar quaisquer posições viradas a norte e noroeste pelo que a previsão de artilhamento pode ainda ser superior aquilo que é visível no desenho. (6)


(1) Catarina Oliveira, IGESPAR, I.P./ Maio de 2012
(2) R. H. Pereira de Sousa, Pequena história da Torre Velha, Almada, Câmara Municipal, 1997
(3) Rafael Moreira in Pedro Cid, A Torre de S. Sebastião de Caparica..., Lisboa, Ed. Colibri, 2007
(4) António Caetano de Sousa, Historia genealogica da Casa Real... Tomo VII, 1740
(5) Rafael Moreira in Pedro Cid, Idem
(6) R. H. Pereira de Sousa, Idem

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Importância relativa

Leitura adicional:
Catarina Oliveira, IGESPAR, I.P./ Maio de 2012
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A (abandonada)Torre de São Sebastião de Caparica

Bibliografia:
Sousa, R. H. Pereira de, Fortalezas de Almada e seu termo, Almada, Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Almada, 1981
Sousa, R. H. Pereira de, Pequena história da Torre Velha, Almada, Câmara Municipal de Almada, 1997
Júnior, Duarte Joaquim Vieira, Villa e termo de Almada: apontamentos antigos e modernos para a história do concelho, Typographia Lucas, Lisboa, 1896
Cid, Pedro, A Torre de S. Sebastião de Caparica e a arquitectura militar do tempo de D. João II, Lisboa, Ed. Colibri, 2007