domingo, 24 de abril de 2016

Barca Bela

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela.
Que é tão bela,
Oh pescador?

Costa da Caparica, Meia Lua, Mário Novais, década de 1940.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

Costa da Caparica, Almada, Passaporte,  53, Pôr de Sol e barcos pesqueiros.
Imagem: Delcampe

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!

No areal da Costa da Caparica.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela,
Só de vê-la,
Oh pescador.

Costa da Caparica, Meia Lua, Artur Pastor.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela
Oh pescador! (1)


(1) Almeida Garrett, Folhas caídas, 1853

sábado, 23 de abril de 2016

Pesca de dezembro

Os elegantes e esperançosos poetas da geração moderna, pouco depois da lucta civil de 1846, entregando-se quasi todos ás discussões áridas e rancorosas da politica militante, haviam desgraçadamente voltado as costas ao éden risonho da poesia; e apenas, de quando em quando, João de Lemos, Mendes Leal, Palmeirim, e poucos mais, davam signal de vida n'uma ou n'outra canção fugitiva.

A Praia do Sol, Panorama dos Capuchos, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 107, década de 1930.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Esta espécie de adormecimento litterario, em que vimos cair os primeiros engenhos, explica-se talvez pela influencia da epocha em que vivemos. A poesia respira-se no ar, como a fragrância das flores; e a atmosphera dos nossos dias, obscurecida pelo fumo das machinas de vapor, rouba aos olhos as suaves e encantadoras perspectivas da natureza [carta a Alexandre Herculano, 5 de maio de 1856]. (1)

Costa da Caparica, Miradouro dos Capuchos e Caparica, ed. Passaporte, 39, década de 1950.
Imagem: Delcampe, Oliveira

Nunca tomou uma vereda por outra, nos numerosos pinhaes das nossas províncias do sul?

Quando, n'esses labyrinthos de columnas rugosas, percebemos que nem as ondulações do terreno, nem as curvas caprichosas das sendas, nem os verdes oásis dos brejos sâo nossos conhecidos, retrocedemos, sem hesitar, até atinarmos com o direito caminho. Este retroceder é progresso. O distraído, ou o que ignora d'onde vem ou para onde vae, é que continua a seguir avante. Só o insensato crê que caminhar sempre em frente é synonimo de progredir. A Paquita é o symbolo da poesia transviada, que retrocede da estrada por onde andava erradia.


A Praia do Sol, Estrada do Parque Florestal, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 114, década de 1930.
Imagem: Delcampe

Agradecida a offerta, permitta-me que lhe ralhe um pouco [...]

Pelo que dizem os entendidos, a ex-democracia temporária fomenta a democracia permanente. Os democratas barões, conselheiros, commendadores, chefes e sub-cbefes, de que se lembra, estão livres de ser Stilicons e Alarícos; mas imitam-n'os, como comportam as differenças do século XIX ao V: civilisam-se, apodrecem provisoriamente, aprendem a pisar com garbo as alfombras dos paços, reclinam-se com elegância nas poltronas das secretarias, penduram a heráldica ao pescoço do socialismo, cozinham nas fornalhas ministeríaes os curatos, as magistraturas, as escrivaninhas, as prebendas, as mitras, as comendas, as escolas; palmeiam nos theatros com luvas de irreprehensivel brancura; agitam-se nos bailes esplendidos, embriagam-se nas mesas opiparas, recuam com asco diante dos andrajos do plebeu, e retiram a mão afeminada da mão callosa do villão, que ousa estender-lh'a; — a erudição que mais os enleva é a genealogia. Sacrificam-se assim á democracia futura. De feito, Pedro, o obefe dos apóstolos, achou que havia conjuncturas em que se devia negar Christo. Esta gente é essencialmente evangelica.

Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (F.N.A.T.).
Costa da Caparica, aspecto do almoço dos trabalhadores dos Sindicatos Nacionais,1937.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Se lhe repugna imital-os, meu amigo — espero em Deus que lhe repugne sempre — tome o conselho que lhe dou: guarde silencio. Tire o chapéu á dança judenga que passa: respeite a crença publica e o progresso que consistem em não crer e em não progredir seriamente em coisa nenhuma; respeite sobretudo os parvos e os velhacos, porque a doutrina da omnipotência das maiorias é ponto de fé constitucional.

A carta que me dirige tem um sabor acre, e não sei se revolucionário; queime-a, e queime esta. Não é por mim: é por si.

Trafaria, Estrada da Costa, ed. Manuel Henriques, 16, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Publique a Paquita, mas sem prologo. Só assim lhe poderão perdoar ter a sua tentativa — poesia, naturalidade, e senso commum [resposta de Alexandre Herculano, 20 de maio de 1856]. (2)

A pesca de dezembro, a mais rendosa,
A força dos constantes agoaceiros
Falhou, e foi a quebra desastrosa!

Os mestres d'artes mais aventureiros
Não poderam romper de cara ao tempo
Que teve de peor os nevoeiros!

Costa da Caparica, pescadores, Furtado & Reis.
Imagem: Delcampe

Alar! Lá vem a rede salvadora:
As mulheres, nos médos, mãos erguidas,
Em prantos, a invocar Nossa Senhora.

Não tem de receiar perda de vidas;
Mas se o sacco não pode com o peixe,
Que enormes perdas se darão agora!

Costa da Caparica, Adelino Lyon de Castro, O Fardo das Imagens (1945-1953), MNAC.
Imagem: Pinterest

Ganhou a praia a mole reluzente,
Sem ter nem leve sombra de avaria;
No rude vozear d'aquella gente,

Que expansão de enthusiastica alegria!
Viva, saltando sobre a areia flava.
Chega a todos a argêntea pescaria!

Costa da Caparica, Adelino Lyon de Castro, O Fardo das Imagens (1945-1953), MNAC.
Imagem: Pinterest

Ao soar da buzina, dos casaes
Partem bestas de carga a toda a brida,
Guisalhando atravez d'esses juncaes.

Os cabazeiros, na afanosa lida,
Avergados e a passo de balança,
Jogam-se ao Monte, a governar a vida! (3)


(1) Bulhão Pato, Paquita, Poema em XVI cantos, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciências, 1894
(2) Idem
(3) Idem, ibidem,

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Praia do Sol

A Caparica é uma inversão do Estoril. Uma inversão de nomes, bem entendido. Enquanto a praia do Estoril se chama a Costa do Sol, Praia do Sol se chama a Costa da Caparica. Ambas lindas e atraentes, embora com encantos diversos. Quem se dispõe pela primeira vez a pisar os areais da Caparica tem a impressão de entrar numa dessas extensões de deserto que o "simun" revolve e o "écran" dos cinemas nos apresenta como cenário de filmes portentosos.

Costa da Caparica, Praia do Sol, grupo de banhistas animado de comunicativa alegria, 1934.
Imagem: Hemeroteca Digital

Areia e sol. Ao fundo, o mar, o mar caprichoso, ora calmo, ora agitado, que, após uma convulsão capaz de subverter continentes, se espreguiça na areia com a gracilidade felina duma gatinha angora entre as espumas de rendas duma almofada caríssima.

Deserto chamamos nós a essa praia encantadora e silenciosa. Assim é, mas um deserto salpicado de oásis acolhedores em que andam ainda versos da "Paquita" ciciados pelas brisas na ramaria dos pinheirais distantes. 

Nessa formosa praia quási paradisíaca vive-se à vontade e sem ultrapassar nunca os limites da decência. Em tempos, dando um certo crédito a um eminente geólogo que afirmava ter encontrado o verdadeiro local do paraíso terreal, seguimos as suas maio sobre a investigações que tinham areia dourada verdades irrefutáveis.

Costa da Caparica, Praia do Sol, grupo de banhistas animado de comunicativa alegria, 1934.
Imagem: Hemeroteca Digital

O ilustre sábio garantia, por exemplo, que o Eden dos nossos primeiros pais devia ter estado situado nas alturas de Lisboa, abrangendo o Tejo, que seria nesse tempo um regato murmuroso, e terras de Cacilhas, Almada, Cova da Piedade e Caparica. 

A base científica de tão sensacionais afirmações não nos foi dado penetrar, visto que o citado sábio — e era êle! — após quarenta e tantos anos de locubrações ainda tinha umas dúvidas que o acompanharam à sepultura. Não queremos continuar os trabalhos do malogrado geólogo, como será de supôr, mas não deixamos de dar um certo crédito à hipótese de ter sido ali o local da tentação da maçã.

Daqueles barcos tão característicos de bico arrebitado como as babuchas dum pachá surge uma reminiscência, muito vaga, é claro, dos troncos de eucalipto que o nosso primeiro Pai teria furado a pedregulho para dar o seu passeio na baixa-mar e mostrar a nossa mãi Eva as belezas das algas e dos sargaços formando jardins multicôres o fundo das águas transparentes e mansas.

Costa da Caparica, Praia do Sol, um dos típicos barcos de pesca que fazem parte do panorama..., 1934.
Imagem: Hemeroteca Digital

Os idílios que ali visionamos, a cada passo, trazem-nos à lembrança a candura da primeira mulher escutando, indolentemente sentada na areia, o primeiro segrêdo malicioso do único homem que ela poderia amar... porque não havia mais nenhum para escolher. Não bastaria isto para convencer o mais scéptico dos mortais?

Mas não param aqui as provas. Da última vez que visitámos a praia da Caparica fomos atraídos por uma cena que nos impressionou profundamente. Um casal, de consórcio muito recente pela aparência, empenhava-se numa bem intencionada disputa.

Na altura da sobremesa a mulher uma Eva de formas esbeltas e tentadoras — oferecia ao marido a única maçã que levara no cabaz. O homem, pelo que depreendemos dos seus gestos, não estava muito disposto a aceitar. Que não queria, que comesse ela, que êle ficava muito grato, mas não tinha mais vontade. 

Pois a Eva tanto teimou, tantas carícias urdiu, tanta vez fez beicinho de amuada que o nosso Adão acabou por trincar a maçã, tal como o nosso primeiro pai no Paraíso. Onde estaria a serpente? Se a procurassemos bem, devia estar nalgum vestido de "tweed" beige ou em certo chapéu de preço que a moda passou a impôr. 

Costa da Caparica, Praia do Sol, idílio sobre a areia dourada, 1934.
Imagem: Hemeroteca Digital

O nosso veraneante de Caparica, no seu regresso a Lisboa, não deixou de acompanhar a esposa a uma das mais acreditadas lojas de modas, depois duma pequena paragem no Monte Pio. — Aqueles dois contos do vestido — diria êle, no dia seguinte, aos seus colegas de repartição — estão-me ainda atravessados na garganta... Deviam estar, deviam... (1)


(1) Illustração n.° 211, outubro de 1934

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Viva la República!

Ao meio dia, com minha mulher e um dos meus filhos, saio de casa, decidido a vêr campo, árvores e claras águas. 

Vista parcial de Almada,
reprodução do postal duplo Almada, Lado Sul, Lado norte, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 09, 10, c. 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

Lisboa pesa-me sobre o coração; sinto-me esmagado de tristeza, e procuro fugir ao contacto da realidade citadina. 

Em vão invoco a grandeza heróica da sua população revolucionária; inutilmente me ofereço visitas aos seus museus e aos seus jardins.

É outro ar que desejo. Lá longe, o próprio sol tem para mim mais calor, a luz é mais cariciosa ... E, se as aves cantam de entre a ramaria densa, é no alvoroço de que eu as oiça! 

Não deve haver — decerto não ha — quem mais do que eu apaixonadamente ame a liberdade, E sair de Lisboa é, hoje, para mim uma libertação... 

Sôbre a tolda dum pequeno vapor, que deslisa na travesssia do Tejo, vamos seguindo, com o olhar distraído, a esteira da espuma branca, erguida entre bandos de gaivotas. Acompanhando o vôo, o nosso olhar encontra a vastidão do rio, no fantástico reverbero de oiro e púrpura acendido pelo sol. Os navios embalam-se na amplidão das águas, por uma extensão de léguas, enquanto a ligeira brisa enfuna a vela dos barcos, que, ao largo, semelham aves aquáticas, de palpitantes asas desprendidas.

Cacilhas! Ao gritar alto o conhecido nome do povoado, o homem de bordo não pode supôr que vou tocar a terra com a ânsia de Colombo, aportando à América. O meu filho, que tem quatro anos, pergunta-me se vamos longe, e só então reparo que não fixei o itinerário. 

Enquanto a mãi compra, para o animar à caminhada, alguma fruta, decido-me pelo Alfeite. 

"É meia legua"" declaro-lhe. O pequeno não faz idéia da aventura em que se mete, mas sorri, e afirma com todo o ar solene, possível na sua idade: "Não canso, papá. Eu sou forte, papá. Eu quero".

Querer é uma cousa muito grave; Êle o sabe, Êle o tem já experimentado. Querer é comprometer-se a poder. E fica assente que faremos a pé a légua, de ida e volta.

Almada à vista, 1937.
Imagem: Hemeroteca Digital

Já Almada nos fica, com o seu castelo, à direita. Vamos descendo para o Caramujo. As oliveiras estão carrega-das, notamos, e aquele fruto já maduro faz.nos lembrar oliveiras distantes, e minha mulher recorda que as duzentas oliveiras que seu pai plantou há cinco anos na terra onde nascemos, na Beira Alta, já em dezembro terão dado seis ou sete alqueires de azeite.

E falamos deste poucochinho com ufania de lavradores.

— Mas que lindo deve estar aquele olival do Monte Grande! — digo. E cito-lhe o dono, que é um dos homens a quem no mundo eu tinha direito a querer mal! Meu filho, a ouvir-nos falar, fila-me interrogadoramente, e o olhar de minha minha mulher tem menos brilho. A sombra do ódio que passa! E é necessário que eu evoque tida a doçura bíblica da paisagem, todo o encanto daquelas montanhas agrestes, daquelas várzeas férteis, a abundância dos prados e os rebanhos e a nossa casa, tão graciosa entre a verdura, lar amorosissimo onde três famílias, pelas festas do ano, vão encontrar-se num só coração, para que essa nuvem sombria se dissipe. 

O que temos sofrido! 

Ranchos sobrevém, e as moças levam ao peito ramos de flores, como sôbre um altar votivo. O riso canta, e não há ver-sos que à viola sôem mais claros do que êle, e digam mais da paixão, da ânsia da vida. 

O riso canta, e nas faces, tão de saúde, de rapazes e raparigas, a alegria exulta. 

Aqui uma dança começa; enlaçam-se os primeiros pares, e a música vai ge-mendo o que o amor em todos os peitos soluça.
 
Levanta-se o pó na estrada... É uma "cavalgada.... de burros de Cacilhas. Os "cavaleiros" andam quási todos pelos doze anos, e agüentam-se valorosamente na asinina desfilada; um, porém, vai oscilante, não podendo garantir-lhe os seus oito anos que não saía pela cabeça da montada.

Grito-lhes, detenho-os, e restabelece-se a ordem. O dos oito anos vai na frente, agora.

O meu pequerrucho não deixa mais que se converse de outra coisa, e tenho de obrigar a minha palavra sobre a compra de um burrinho como aquele, para quando éle andar na escola... 

E discutiamos ainda — do caso, a idade do burro, a sua mansidão, mesmo a sua cor, quando chegámos à Quinta. 

O Alfeite é uma vasta herdade, mal tratada, de inferior rendimento, decerto; mas, com as suas arribas banhadas pelas águas, e as suas matas coroando as colinas, é geralmente julgada um dos mais apraziveis arredores de Lisboa, que é célebre por os ter excelentes. 

Mas, para mim, o Alfeite não é só um sítio pitoresco; é um lugar de repouso espiritual, de inefável recolhimento, em que todas as sensações dolorosas se apagam na contemplação da natureza, no silêncio do bosque e no doce marulho das vagas. 

Sentamo-nos; e a vista logo abrange o panorama da cidade. Brilham a cúpula da Estrela e as flechas da Sé; e a cidade tumultuosa, áquela hora, assim de longe, parece-me adormecida na outra margem, como se a corrente serena, que nas minhas veias agora estúa, fôsse a mesma que bate no seu coração sempre febril... 

Através da ramaria dos pinheiros mansos copados, voltando-nos para os montes de Almada, Lisboa evoca um quadro de Nápoles.

Em baixo a praia estreita, muito areada, sem rochedos, é uma fita de alvura nupcial. 

Perde-se a vista no Tejo, embevecido na serenidade das suas águas, na ridente grinalda das vilas e aldeias ribeirinhas, que o saúdam das encostas. 

Alfeite, 1937.
Imagem: Hemeroteca Digital

No ar puríssimo, essências fortes de floresta tonificam; ha mais doçura em nosso olhar, mais paz em nossa alma. É um banho lustral. Quando nos erguemos, sentimo-nos mais dos, mais vigorosos, melhores e enternecidos.

O pequeno mesmo, na esperança de colher medronhos, propõe "caminhar mais", e perdôa a algumas borboletas que com o chapeu colhêra. Fizeram pazes; desprenderam elas as asitas, e voou ele aos medronheiros. 

Estávamos na colheita, quando da mais alta arriba unia voz chamou. Era algum que descia, a trazer-me um ramo grande, cheio de frutas róseas, para a "menina". O meu José trepou comigo a meia encosta, protestando pela sua virilidade.

O autor do artigo com o seu filho José no Alfeite, 1911.
Imagem: Hemeroteca Digital

Voltou contente. Mas eu é que tive de subir. Era um espanhol que, com dois patrícios seus, celebrava ali um pacto de amizade, de fraterna aliança, na luta amarga da existência. Pertenciam a essa generosa raça galega, tão boa, tão sofredora e tão resignada. 

Falámos da sua vida; e cada um teve uma história breve e comovedora: a orfandade, o abandono, a miséria. 

Calámo-nos; e todos nos fitávamos melancólicamente, quando um deles, de súbito, ergueu a voz, cantando. Foi o entusiasmo! E as insistências para que eu merendasse com eles, começaram... 

"Então passe um copo de vinho?". Escusei-me, falei do almõço tarde, de doença, de dieta. Sorriam... Mas — "com permisso" — e aquele que levára o ramo a meu filho segredou algumas palavras aos outros. Todos se levantaram, e, deixando um copo cheio sôbre a relva, bradaram-me em côro: — "Beberá usled saludando su Pátria!"

Peguei no copo, e, mal os meus lábios o haviam tocado, logo os três espanhóis, celebrando o seu triunfo, gritaram — "Viva la República!" tão clamorosamente que meu filho correspondeu lá do fundo do carreiro onde ficára, o tirso coroado de róseas frutas, como um ceptro glorioso de pacificação, bem alto erguido na sua mão infantil que, pela minha, entra na vida, já liberta.

Quando os deixei, eu era amigo daqueles homens. nascidos em terra estranha. 

Como os sentia muito mais perto do coração do que alguns portugueses que hoje tanto fiz por não lembrar!

ooOoo

 É meia noite; da Cidade nenhum rumor se levanta — sossegada e tranqüila — como se, de todo, houvesse aquietado a sua cólera a boa nova do triunfo das armas republicanas na fronteira. Acabaria a luta fratricida?

Meu filho dorme em minha frente, sereno, e minha mulher, serenamente, está junto de mim, velando. 

Alfeite, 1937.
Imagem: Hemeroteca Digital

Porque sinto, pois, que no meu rosto lágrimas vem tombando?

Lisboa, Outubro de 1911. (1)


(1) Lopes d'Oliveira, Um passeio ao Alfeite, Illustração n.° 271, 1 de abril de 1937

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Pescadores da Costa em 1900

A esperança, a esperança! ... O mar longe, movido
Solta, de quando em quando, um lúgubre gemido...

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, colégio do Menino Jesus e casas típicas de pescadores, década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O pescador da Costa abandona a cabana;
Deixa filhos, mulher!... Na carreira vesana
Vae perguntar trabalho, e sem poder lograr
Companha, que se afoite ao truculento mar!

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores lançando uma embarcação ao mar, década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

No areal da Costa não rebenta a vaga;
Todo o mar sereno! Pobre pescador!...
Lança em vão os olhos... Da deserta plaga
Não descobre ao longe nem signal, que traga
Negra de sardinhas, ondulando á flor!

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores puxando uma embarcação para terra, década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Não seja o tempo fatal
Aos do mar, e ao pescador;
Que o mais este vendaval
É propicio ao lavrador!

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores lançando uma embarcação ao mar (inv.), década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Pesado estoira o mar, pelo areal da Costa;
Sibila, range, estrala, o pinheiral da encosta! (1)


(1) Raimundo António de Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, 1896, Typographia da Academia, Lisboa.

Alguns artigos relacionados:
Colégio do Menino Jesus, 1876 — 1901
A Costa romântica de Bulhão Pato
Os saveiros meia lua da Costa da Caparica
Arte xávega na Costa da Caparica a Património Imaterial

sábado, 16 de abril de 2016

Buques de arrasto

Quem sai a barra de Lisboa apercebe, nos confins do horizonte, uma fileira de velas triangulares minúsculas, que ora alvejam como asas de gaivotas batidas pelo sol ora se confundem com a poeirada cinzenta do mar.

Os pescadores da barra do Tejo,o barco pairando para efectuar a pesca, 1931.
Imagem: Hemeroteca Digital

À medida que nos aproxima-mos desses flocos de neve flutuantes as suas proporções aumentam e os seus contornos se detalham com nitidês, podendo-se já distinguir a azáfama que lá vai por bordo.

— São os buques de arrasto — elucidam-nos. 

Meia hora depois, afastados já algumas milhas, os pequenos triângulos brancos parecem lenços a agitar-se cm despedida. Fica-nos en-tão uma vaga saüdade que o poeta soube tio bem cantar:

Oh enxame alado e nevado das velas!
Quem te póde esquecer se alguma vez te olhou?!

Os buques de arrasto, que vieram substituir os antigos barcos de muleta, são a nota característica da entrada do Tejo. Quando do mar largo se avista a barra alvacenta dos pequenos barquinhos, sabe-se que se está defronte da barra de Lisboa. 

Os pescadores da barra do Tejo, de regresso depois da pesca realizada, 1931.
Imagem: Hemeroteca Digital

Eles constituem uma referência para os navios estrangeiros que demandam o nosso pôrto. À segunda visita do navio, quando o timoneiro, atento à agulha e ao horizonte, vê germinar sobre o azul do oceano essas flores de açucena, já sabe que a uma dúzia de milhas encontra a foz do Tejo. 

Despreza então a bússola e apita à inofensiva esquadra que, ao sabor das ondas, vai aprisionando o peixe nas rêdes.

Daí a pouco o navio, rápido e imponente, passa junto dos barquinhos, fumegando e cindindo as águas que se afastam num torvelinho doido, sobrepondo-se furiosas com receio do monstro. De bordo a marinhagem saüda os pescadores, cá em baixo, sôbre os buques sacudidos raivosamente pela ondulação do navio.
— Ben die! — dizem alguns que já ouviram o saüdar português. Outros proferem a saudação nas suas línguas arrevezadas.
— Salve-os Deus! — correspondem cá do buque os pescadores agitando os braços.
Durante um bocado as tripulações do navio e dos barcos olham-se com curiosidade e simpatia. Depois, quando o vapor é já unia mancha negra empenachada de fumo, torna-se à faina.

Cada um dos pequenos barcos de. pesca da barra de Lisboa é tripulado por uma dezena de homens. 

A maioria deles são velhos, curtidos da ardência do sol do estio e das friezas das nortadas hibernais. Os seus rostos morenos estão engelhados como velhas folhas de pergaminho amarrotadas e engelhadas têm também as mãos ossudas e ásperas dos milhares de braças de cabo que têm puxado. 

Quasi todos começaram ainda meninos a trabalhar sóbre o dórso encrespado do oceano e raros são aqueles que o abandonam para se dedicar a outro modo de vida. Amam o mar com uma ternura infinita que se lhe adivinha na nostalgia com que, cá em terra, o seu olhar prescrita a planície azul nos dias tempestuosos em que esta é sacudida pela violencia dos tufões que a varrem furiosamente corno o simum africano lambe, com o seu hálito destruidor, as areias dos desertos. 

Aí pelo dobrar das quatro horas, quando as estrelas ainda se reflectem vaidosamente nas águas obscuras, largam para o mar os buques. Içam as suas velas, a latina e a polaca, e ao sópro do vento amigo, lá vão, barra em fora, com um farol à próa, avisadouro da navegação.

O velho arrais, de mão fincada na cana do leme, vai governando o barquinho enquanto o resto dos tripulantes, embrulhados em mantas, completa o sono interrompido a meio da noite.

Quando o sol começa a empurpurar as águas já os buques pairam lá no mar, a umas oito milhas da costa. O vento muda então de quadrante e os pescadores, depois de se orientarem, a fim de evitar as rochas submarinas e as carcassas das navios afundados, ali por alturas da barra, lançam a rede a umas setenta braças de água.

Dão-lhe depois uma folga de duzentas braças e carregam o pano, que tinha sido recolhido, a fim de o vento impulsionar o barco, pois sem a colaboração do mitológico Eolo a pesca não se poderia efectuar.

A rede, que não é de grandes proporções, apresenta a forma de. um triângulo isósceles. No vértice tem um saco com uma armadilha onde o peixe entra mas de onde não pode sair. Quando a rede está já no fundo a pressão de água abre uma das portas de madeira e a entrada do peixe fica livre.

Na parte que se arrasta pelo fundo do mar há uns pesos de chumbo que não deixam vir a rede acima. Na parte superior há bóias de cortiça e de vidro que mantém aquele pano da rede elevado acima do outro alguns metros. Fica assim uma vasta guela aberta que vai absorvendo tudo que encontra no seu rasteio.

O pescador depois descansa na coberta, dormitando ou conversando, atento aos navios que constantemente cortam o oceano. Apenas o timoneiro, enconchando a ossuda mão sôbre o rosto engelhado, vai prescrutando a terra que se avista ao longe e procurando as marcas para não dar com a rede na rocha ou noutro obstáculo que a rasgue.

Embalado pelo mar, naquela indolència contemplativa, sob o azul do céu e o brilho intenso do sol, o pescador parece lançar ao vento, num desafio ao mundo, aquela quadra de Espronceda:

Que es mi barco mi lesara,
Que es mi Dios la liberlad,
Mi ley la fuerza y el viento,
Mi unica pátria la mar.

Ai por volta das 15 horas, depois de seis ou sete horas de arrasto, o buque chega defronte do farol da Guia. Inicia-se então o trabalho mais árduo, o virar da rêde com o guincho manual. Todos os tripulantes se lançam às manivelas a içar o valioso saco. Os músculos sitos sob a pele encortiçada dos velhos pescadores, retezam-se e tornam-se-lhes mais nodosos os braços. Os rostos contraem-see a pele morena parece que vai estalar, deixando a descoberto os sulcos de carne viva e sangrenta. 

Ao incitamento do arrais os esforços unificam-se num valente impulso e o guincho ferrugento começa a ceder, chiando uma arrastada cantilena que compassa o vociferar dos pescadores, em cujos rostos começam a scintilar grossas bagas de suor. Este esfôrço extenuante dura mais de meia hora.

Por fim aparecem à superfície do mar as duas portas, que alguns pescadores vão recolher. Em seguida surgem as "malhetas", que são os cabos que estão ligados à rede, e depois de mais umas voltas do guincho gemedor aparecem as malhas desta. 

Os pescadores da barra do Tejo, puxando as redes carregadas, 1931.
Imagem: Hemeroteca Digital

Os pescadores abandonam então as manivelas ferrugentas e dirigem-se para a borda do barco a puxar a rede, cujo saco, já à flor da água, vem inchado de peixes que se debatem numa luta doida para se libertarem das malhas que os aprisionam. 

O espectáculo que até aqui era monótono e rude toma um aspecto festivo e colorido. As mãos ansiosas dos pescadores agarram num talhão do saco e despejam-no na coberta. Milhares de peixes, aos quais o sol arranca scintilações de prata polida, saltitam e se contorcem na coberta, verdascando-se com os rabos e ensanguentando-se com as barbatanas. 

Os pescadores da barra do Tejo, a companha mostra-se contente com a pesca que foi boa, 1931.
Imagem: Hemeroteca Digital

Uma santola trucida uma pescadinha já morta e um grande exército de caranguejos de armaduras côr de lama vai devorando os pequenos peixinhos. Outro talhão do saco é despejado, com grande reboliço, sobre a coberta, que écoa cavernosamente à queda dc alguns búzios de arestas agressivas. 

Outros talhões vão sendo recolhidos até que a rede é metida toda a bordo. Na coberta eleva-se um gratule monte policromo de peixes de várias espécies, sabre o qual os caranguejos repelentes passeiam, como abutres por um campo dc batalha. 

Os pescadores da barra do Tejo, as mãos ansiosas dos pescadores agarram num talhão de um saco e despejam-no, 1931.
Imagem: Hemeroteca Digital

Os pescadores, porém, não lhe dão tempo a inchar o estômago com o lauto banquete. Apanham-nos e esmigalham-nas entre os dedos, atirando-os depois para o mar.
— Raça malvada! Dão-nos cabo do peixe! Mestre Francisco da Maria Inês, que é o arais do buque Joana, a bordo do qual na encontramos, toma a cana do leme para dar direcção ao barco.
— Então, mestre Francisco, que tal é a pesca ?
— Não é má, não senhor!
— É todos os dias é assim?
— Qual! —exclama éle, fazendo uma carêta de enfastiado.
— Há dias que não apanham nada?
— Sempre vem alguma coisa búzios e caranguejos — responde-nos com um sorriso bom humor.
O barco, já com o pano carregado e as velas enfunadas, aprôa à barra. A bordo continua a acólita do peixe: os caranguejos e pequenos peixinhos são atirados ao mar e o resto é metido em cabazes para ser apresentado na lota. Escolhe-se a caldeirada para o nosso barco e despedimo-nos das simpáticos pescadores:
— Boa tarde! Obrigado! 
— Vão com Deus! — respondem-nos de bordo.
E o nosso barco, uma pequena lancha impulsionada por dois valentes moços, apresa ao "Comandante Milheiro" que por ali paira ao sabor das ondas mansas.

Comandante Milheiro, embarcação a vapor da Corporação de Pilotos do Rio e Barra de Lisboa, construída em 1928.
Imagem: Navios e navegadores

O buque lá vai mar em fora escoltado por urna patrulha de gaivotas e alcatrazes que, de vez em quando, mergulham na água para comer os peixinhos inúteis que os pescadores atiram pela borda.  Lá ao longe, pela nossa prôa, surge uma esquadra de buques, que regressa também da pesca. Sobre eles uma nuvem de aves marinhas sôlta gritos festivos esperando o lauto bôdo de peixe. 

Na ponte do comando, António Santos, piloto da valente estirpe de pescadores do sul, vai indicando-nos os nomes dos buques: o "Homem ao leme", o "Camela", o "Orca", o "Almazorra", o "Pardal", o "Rata" e, lá ao fundo, o "Salta à lua". 

Dal a pouco a esquadra, a todo o pano, desfila por nós. Um dos barcos, porém, vem atrasado e pede a ajuda de mestre José Lopes Terramoto, o encarregado do "Comandante Milheiro".  Como todo o bom algarvio, não recusa auxílio nos pescadores e passa um cabo ao buque que, daí a pouco, já próximo de Cascais, desfralda as velas e, com a ajuda do vento, lá vai mar em fora.
— Obrigado! — agradecem os pescadores. 
— Boa tarde! —respondem-lhes.
Transporte da sardinha na Trafaria, Joshua Benoliel, início do século XX.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Os bons pescadores lá vão contentes, naturalmente convencidos que o mundo não é tão mau como afirmam os homens que vivem cá em terra a degladiarem-se e a pelejarem numa luta quási sempre inglória.  (1)


(1) José Barão, Illustração n.° 130, 16 de maio de 1931

Artigo relacionado:
Jimmy Green's, a muleta do Tejo

terça-feira, 12 de abril de 2016

Indústria química

Laboratório de Química no sítio da Margueira
Propriedade:  Serzedello & C.ª
Produtos: International exhibition, 1876 at Philadelphia, Diário Illustrado
Local: Margueira
Referências: Estatística Industrial de 1852

A Fábrica de produtos químicos da Margueira era um estabelecimento com larga experiência na produção de químicos em grande parte aplicados no campo da Medicina e da Farmácia. O Laboratório da Margueira tinha sido elevado à categoria de fábrica na década de 20 do séc. XIX, através da concessão do direito exclusivo da produção "em grande" do ácido sulfúrico.

Margueira na enseada da Cova da Piedade (detalhe da vista de Cacilhas e de S. Julião), Charles Landseer, 1825.
Imagem: Instituto Moreira Salles

Pela década de 40 mudara para novos proprietários (os irmãos na sociedade Serzedello & C.ª), e iniciara então um programa de reformas tecnológicas, que o conduziram da matriz dos tártaros (uma das produções mais significativas até aquela altura) e do carvão animal, para uma série mais diversificada de fabricos.

Do final dos anos 40 para a década de 50 produzia, entre outros, e para além do tártaro (bruto e cremor) e respetivos sais de sódio e potássio, os ácidos (fosfórico, bórico, nítrico, clorídrico), amónia, algodão-pólvora, alguns óleos e uma gama variada de sais de metais pesados, artigos característicos da nova Farmácia Química já corrente em Portugal.

Serzedello & Ca., década de 1840
Imagem: documento do acervo de Carlos António Serzedelo Palhares, Lisboa


Foi um dos poucos estabelecimentos fabricantes de produtos químicos, mesmo sem apresentar o requerido número mínimo de operários (dez operários), com direito a figurar na Estatística Industrial de 1852. 

Este facto poderá indicar alguma excelência tecnológica que lhe permitiu ultrapassar o limite imposto pela escala industrial. 

Domínio tecnológico que teve na qualidade científica da formação dos seus técnicos, uma linha de conduta sempre perseguida, a começar pelo farmacêutico João Paulino Vergolino de Almeida (o proprietário anterior à família Serzedello), frequentando o curso de Física e Química de Luís da Silva Mousinho de Albuquerque no Laboratório de Química da Casa da Moeda, e continuada por outros farmacêuticos como José Dionísio Correia ou Francisco Mendes Cardoso Leal Júnior, assistindo igualmente ao mesmo curso [...]

Considera-se que é esta “movida científica” de químico-farmacêuticos, “operários manufaturadores de produtos químicos”, a tentar realizar em primeiro lugar a passagem necessária de uma pequena produção química para uma escala mais alargada, próxima da escala industrial. Indivíduos com um pé na farmácia e outro na fábrica. 

Laboratorio Chimico de Serzedello & Ca., década de 1840.
Imagem: documento do acervo de Carlos António Serzedelo Palhares, Lisboa

Neste enquadramento, o Laboratório-Fábrica da Margueira, assume considerável importância, constituindo não só uma escola prática químico-farmacêutica, como também uma espécie de "viveiro" para futuros preparadores nos laboratórios de Química das escolas de Lisboa. (1)

Fábrica de Química Aplicada às Artes
Propriedade: Agostinho Joaquim Ferreira
Produtos: Cremor tártaro; tártaros vermelho e branco
Local: Porto Brandão
Referências: Estatística Industrial de 1852

Planta de uma instalação química em Portugal no início da segunda metade do século XIX. A planta pertence ao processo preliminar de licença de conservação de uma fábrica de produtos químicos situada no Porto Brandão, concelho de Almada, pedida por Agostinho Joaquim Ferreira, em 24 de Abril de 1857.

Porto Brandão, Fábrica da Quimica Aplicada às Artes,
planta da casa e cais do senhor Agostinho Ferreira, 1857.

Imagem:
Arquivo Nacional Torre do Tombo

No topo da imagem, o 1.º piso, parte reservada à habitação; no piso térreo, destinado à fábrica, destacam-se ao centro os espaços dos fornos, circundados inferiormente pelas áreas de fabricação, armazenagem e cais.

Porto Brandão, Fábrica da Quimica Aplicada às Artes,
planta da casa e cais do senhor Agostinho Ferreira, 1857.
Imagem:
Arquivo Nacional Torre do Tombo

A Fábrica de Química Aplicada às Artes produzia o cremor tártaro ou bitartarato de potássio, um produto utilizado na medicina e na tinturaria. (2)

Fábrica de dinamite da Trafaria
Propriedade: ... privilégio de Alfred Nobel
Produtos: Dinamite
Local: Trafaria
Referências: O Economista

Fábrica de dinamite na Trafaria, anúncio do Diário Illustrado, 1888.
Imagem: Biblioteca nacional de Portugal

Fábrica de guano artificial no forte da Trafaria
Propriedade: Jorge Croft & C.ª
Produtos: Guano químico; ácido sulfúrico
Local: Trafaria
Referências: MR - PPL, 1857

Fábrica de produtos químicos
Propriedade: Júlio César de Andrade & C.ª
Produtos: Essência de terebentina; breu e resina hidratada
Local: Almada
Referências: Exposição Internacional do Porto de 1865 (3)

Medalha de D. Pedro V.
Inauguração do Palácio de Cristal do Porto em 8 de Setembro de 1861.
Imagem: Ebay


(1) Isabel Maria Neves da Cruz, Da prática da química à química prática..., Universidade de Évora, 2016
(2) Idem
(2) Idem, ibidem

Informação adicional:
Revista Universal Lisbonense, A Indústria Nacional e a Exposição de 1849

Artigo relacionado:
O laboratório químico da Margueira

sábado, 9 de abril de 2016

Em casa de Alexandre Herculano

Alexandre Herculano, quando eu fui para a sua casa [em 1847], começava a escrever o segundo volume da História de Portugal. O primeiro fôra publicado havia pouco. O "Monge de Cister" estava no prelo : succedia ao "Eurico", á "Abobada", ao "Bobo", ás "Armas por fôro de Hespanha". O auctor cumprira trinta e sete annos n'aquella primavera.

Casa de Alexandre Herculano na Ajuda, Largo da Torre, Alberto Carlos Lima, década de 1910.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Os rapazes do cerco do Porto, se baviam corrido por cima das ondas, voltando do exilio, se marchavam rápidos pelas assomadas das serras, fraguedos e desfiladeiros, carregando o inimigo, vamos que não caminhavam devagar pela senda das letras!

Na Ajuda, hoje animada e ruidosa com a presença da corte, reinava n'aquella época o silencio e a solidão quasi completas.

Da antiga Patriarchal, ninho tépido e macio, recheiado pela mão paterna do absolutismo com o cibo apetitoso, que regalava o paladar exquisito dos filhos segundos das casas fidalgas, convertidos em recebondos, anafados e pachorrentos cónegos, da antiga Patriarchal, digo, não existia mais do que a torre.

Lisboa, Ajuda, Largo da Torre Paulo Guedes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O bronze, que dava as horas, tinha um som redondo, sonoro; ao mesmo tempo melancólico e profundo. Dir-se-ia que denunciava saudades do passado, mas que se resignava com o presente. Saberia elle que o bronze è a voz do tempo? É possível [...]

Como o sino da Ajuda, alem de estar n'uma torre, está n'um alto, ha de ter visto muita cousa, e ha de ter muito que dizer; mas não diz nada a mais das horas e dos quartos, que o ponteiro lhe marca. Com tamanho badalo nunca vi quem badalasse menos!... Talvez que eu, algum dia, venha a badalar por elle.

A janella do quarto de trabalho deitava para o Tejo. No meio da verdura dos quintaes e das hortas resaíam as casas, que se agglomeravam pela encosta até á beira do rio. Os montes do outro lado.

Se a margem esquerda do Tejo fosse arborisada de pínheiraes, como é a do Douro, que aprasivel efifeito não produziria no animo do viajante, que já vem maravilhado com a entrada da barra de Lisboa.

A vista dilatava-se pelo espaçoso largo, descia pela encosta. ingreme, e espraiava-se pelas aguas transparentes do rio.

O gabinete de estudo era pequeno. No inverno aconchegado, agasalhado ou "confortável", como agora se diz. Na primavera e verão abria-se a grande janetla, e arejava-o a brisa fresca do mar.

Uma janella que deita para o mar desafoga os pulmões e também a alma.

Casa de Alexandre Herculano na Ajuda, Largo da Torre (detalhe), Alberto Carlos Lima, década de 1910.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Havia n'aquelle quarto um fogãosinho, a mesa de trabalho, e uma enorme cadeira estofada e forrada de marroquim verde, cadeira como não conheço outra, obra traçada pela cabeça de um allemão, e feita de molde para as meditações dos sábios.

Eu, por mim, achava-a deliciosa para me aninhar dentro d'ella e dormir regaladíssimos somnos.

Sobre a mesa, coberta de papeis, um grande tinteiro de latão, como os das antigas secretarias e as pennas de pato — sem contar com as minhas — que eram bem raras n'esse tempo! Pelo chão, os livros, os infolios, e as notas com signaes, que eu suppunha cabalísticos [...]

A desordem, apparente, dos livros e dos infólios, a immensidade de notas, dispersas como baralhos de cartas, que se atirassem ao acaso; todo aquelle labyrintho era a ordem, a classificação mais perfeita para o grande escriptor.

Quasi pelo tacto ia pôr a mão no documento de que necessitava, fosse embora das mais exíguas dimensões.

No inverno accendia-se o fogão. Assim que o sino dava as onze da noite, fosse qual fosse o trabalho, e por mais embebido que estivesse n'elle, o dono da casa depunha a penna, conversava uns dez minutos, encamínhava-se para o seu quarto, e logo que encostava a cabeça na almofada, adormecia de um somno reparador e profundo até ás seis horas do dia seguinte.

Lisboa, Ajuda, Eduardo Portugal, 1939.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A boa divisão do tempo, a regularidade de vida, a assiduidade no trabalho; reunidos a poderosas faculdades intellectuaes, venciam as inauditas difficuldades, que se apresentavam a cada passo diante do escriptor, que tinha de desentranhar das minas da historia, occultas nos recessos dos archívos, o oiro, que, depois de lavrado e polido, devia de ser um monumento de gloria para nacionaes, e de admiração para estrangeiros. (1)

A casa da Ajuda era, n'esse tempo, a mansão tranquilla, onde, á sombra do mestre, estudava um grande talento, Rebello da Silva, e eu balbuciava, timido, os primeiros versos.

Sim! Tranquilla e salutar!
Oh! mia casa romita e serena!...
Que saudades tenho tuas!

Lisboa, Ajuda, Eduardo Portugal, 1939.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Levantavamo-nos um pouco depois das seis horas da manha.

O mestre sempre o primeiro. Ia dar uma vista d'olhos ao jardim. Não lhe faltava, na estufa, uma transplantação, o decote ou o enxerto de uma roseira primorosa; o ramo de flores para a mesa, arranjado pela sua mão, no que tinha dedo. Depois sentava-se á mesa e trabalhava. Ordinariamente hora e meia, até ao almoço.

Os invejosos mordazes até inventaram que Alexandre Herculano era homem áspero e brutal no trato!

Não conheci ninguém mais sincero, mais simples, e ao mesmo tempo mais amoravel, e, sem affectação, delicado [...]

Voltemos a 1847. Alexandre Herculano escrevia a Historia de Portugal, e concluia o Monge de Cister, publicado, pela primeira vez, em volume em 1848.

Lisboa, Ajuda, Eduardo Portugal, 1939.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Almoçávamos ás oito e meia — café especial, pão saloio e a preciosa manteiga fresca, fabricada com o leite dos uberes túrgidos das anafadas e luzidias turinas, que repastavam na arribana da horta da calçada do Galvão.

Aquella horta tem destino de pertencer a homens superiores. Ha muitos annos que a cultiva José Eduardo de Magalhães Coutinho.

Depois do almoço Herculano sentava-se á banca do trabalho; Rebello da Silva descia á bibliotheca a estudar. O estudo, que foi sempre uma predilecção para elle, n'essa epocha era uma paixão desenfreada. Muitas vezes, logo sobre o jantar, a despeito das salutares advertências do mestre — que de tarde nem abria livros, nem pegava em penna — atirava-se ao trabalho.

O jantar era ás duas e meia em ponto. A toalha alvíssima. O ramo de flores, renovado todos os dias. A cosinheira excellente. Vinho branco e tinto da Arruda, puro, e em duas facetadas e magnificas garrafas de crystal de rocha, antigas, de casa dos pães de Herculano. Uma grande profusão de sobremesas, principalmente de doce de conserva, todo dirigido e muito d'elle preparado pela própria mão do dono da casa.

Dos botões das roseiras de todo o anno fazia Herculano um doce, como nunca tornei a comer. Os figos de conserva eram uma especialidade [...]

Ao Eremitério — era este o nome, que nós dávamos á casa do mestre — deviam chegar dias sacudidos e agrestes, senão tempestuosos.

Havia lá quem tivesse anchura de peito para contrastar a tormenta!

Depois de publicado o primeiro volume da Historia de Portugal alguns rumores se levantaram contra o auctor, por causa do milagre d'Ourique [...] (2)

No clarear de uma manhã de setembro que paizagem aquella, vista do alto da montanha!

A barra, o cabo, o oceano; a Arrábida ao sul; ao norte Cintra. O sol rompendo na orla do nascente, em braza, sem vibração de luz a principio, agora jogando as primeiras frechas ás cumiadas de Palmella, ferindo as ondinhas verde-claras do Tejo. A sul, escuro o céo; no remoto occidente, ainda mal desvanecidas as estrellas; na aragem, apenas sentida, o sopro indizivel e virginal da madrugada; os gallos da aurora soltando a voz crystallina pelos casaes perdidos entre as hortas e pomares.

O Jamor, nas voltas sinuosas, denunciando-se no trepido murmúrio, atravez da névoa opalina condensada sobre o valle. Ao altear do sol, refrescando o norte limpido, dezenas e dezenas de moinhos agrupados ou disseminados pelas cristas da serra, girando as suas aspas brancas e produzindo-nos a visão de que se movia toda aquella grandiosa e deslumbrante paizagem. Agora foram-se os moinhos, que tocavam de sabor alpino e agreste o ondulado e maravilhoso quadro. As fabricas deram cabo d'elles e deram-nos peor pão e mais caro!

Lisboa, Ajuda, Eduardo Portugal, 1939.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Com os nossos perdigueiros iamos levantando as bandas de perdizes, até que se refugiavam nos zambujaes da Tapada. Foi esta mandada fazer pelo marquez de Pombal para o rei D. José ter caça ao pé da porta. Não ha nada como ser rei absoluto; essa sim, essa é que é ambição de suprema grandeza! O demais, rei constitucional e presidente da republica são grandes honras, porém honras apenas, com relação ao passado. Os olhos do déspota dominavam tudo e tudo para elles era arraia miúda. Descendentes de reis, embora, não os queriam senão para copeiros, estribeiros, aurigas, moços de monte, servos humilissimos.

El-Rei D. José ama a caça? O ministro extraordinário e feroz acurva-se na sua alta estatura intellectual, e, de joelhos, espera que lhe assigne os decretos para reedificar Lisboa arrazada e para engrandecer o reino. Depois improvisa-lhe uma coitada com que sua magestade se distraia nas horas de ócio [...] 

Palácio da Ajuda e torre do relógio, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Uma noite bateram onze horas no sino da torre e Alexandre Herculano depoz a penna como por acto automático. Não conheci ninguém onde os hábitos tivessem maior império; talvez a disciplina a que se votou como soldado voluntário concorresse para tal. Era no inverno, noite fria, escura, mas serena. Quando entrámos na casa de jantar para tomarmos uma colher de doce e um trago de agua, como de costume, ouvimos uns gritos de afflicção, e no tremor convulsivo da voz percebemos:
"Ás armas!"
Corremos á janella do quarto de trabalho e vimos sahir do pateo do palácio uma alma do outro mundo de dimensões sobrehumanas [...]

Palácio da Ajuda, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A 3 de março de 1849 fazia eu vinte annos (um dois e um zero^ que sâo um poema!) e vim na véspera á tarde até Lisboa para no dia seguinte jantar com minha mãe. 

De manhã recebi uma lembrança de Alexandre Herculano e juntamente uma carta. Entre muitas que tenho d'elle, e que hei de publicar um dia, é para mim a mais grata. As notas individuaes não se desprezam hoje, antes concorrem para os annaes da alma humana.

O papel da carta está, como eu, muito velhinho; mas as suas lettras vivas trazem-me, como se fossem de hontem, as lembranças d'esse dia:
Meu caro

Ahi vão essas poucas flôres; são as que encontrei pelo quintal inculto. Mando-as, apesar de vulgares, porque me disse que sua mãe gostava de flores. Lembrou-me que, acostumado á manteiga frescal, acharia desagradável a salgada estrangeira. Veiu tarde a lembrança para hoje; mas ainda lhe posso acudir para o almoço de amanhã. Tenha equanimidade bastante para desculpar esta offerta de saloio.

Ha n'ella um pouco de vaidade de auctor. Eu creio que essa manteiga está boa; e hoje, meu rico, tenho n'isso mais presumpção de que no mérito de escriptor.

Quando eu tinha 25 annos cultivava flores e fazia versos; depois dos 35 annos fabrico manteiga e faço prosa. Passados os 50 provavelmente não farei nem uma coisa nem outra. Serei talvez um avaro ou um caturra.

É a trilogia da vida humana, trilogia de pernas ao ar, em que a poesia está no primeiro acto, o positivo e a prosa no segundo, o chato é o semsabor no terceiro. Peores são ás vezes (as mais das vezes) os dramas do theatro em que tudo são terceiros actos da comedia humana.

O meu amigo, que está no primeiro, cheio de vida e frescor, povôe-o bem de flores e poesia. As recordações d'essa epocha é que mandam alguns perfumes e harmonias á tarde e ao crepúsculo da existência — as duas quadras da manteiga e da caturrice;

 Palácio d'Ajuda, c. 1900.
À direita da imagem, no Largo da Torre, a casa onde residiu Alexandre Herculano.

Até amanhã á tarde para a nossa viagem da Ajuda.

Amigo
Herculano. (3)


(1) Bulhão Pato, Sob os Ciprestes, Vida intima de homens illustres, Lisboa, Livraria Bertrand, 1877
(2) Bulhão Pato, Memórias Vol. I, Scenas de infância e homens de lettras, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1894
(3) Bulhão Pato, Memórias Vol. III, Quadrinhos de outras éphocas, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1907

Alguns artigos relacionados:
D. Francisco de Noronha recorda Bulhão Pato
O dragoeiro

Biblioteca Nacional de Portugal:
Obras digitalizadas de Alexandre Herculano