sexta-feira, 24 de maio de 2019

António Álvares da Cunha (c. 1700-1791)

(a propósito dos painéis de azulejo da Quinta de São Lourenço em Palença no Pragal)

O título de conde da Cunha fora dado de juro e herdade, por carta de 14 de Março de 1760, a D. António Alvares da Cunha, 

Vista de Lisboa (tomada da margem sul), Alexandre-Jean Noël.
Cabral Moncada Leilões

"tendo consideração aos notáveis e distintos serviços que D. Luís da Cunha me fez, por espaço de sessenta e dois anos sucessivos, nos lugares de desembargador do Porto e da Casa da Suplicação até o ano de 1696, e depois dele, e  até seu falecimento, nos empregos de enviado extraordinário na corte de Londres, de embaixador extraordinário e plenipotenciário no congresso de Utreque, e de embaixador nas cortes de Londres, Haia, Madrid e Paris, atendendo as sucessivas representações com que o sobredito suplicou os referidos serviços lhe fossem despachados em benefício da casa de seus pais e do administrador dela, seu sobrinho D. António Alvares da Cunha,

António Álvares da Cunha (c. 1700-1791).
1.° Conde da Cunha, Vice-rei do Brasil.
Instituto Histórico Brasileiro

contemplando ao mesmo tempo os serviços pessoais com que o dito D. António se tem distinguido também por sua profissão militar até o posto de capitão de mar e guerra das fragatas da armada, e nos empregos de governador e capitão general da praça de Mazagão e do reino de Angola", etc. Carta do título de conde da Cunha, na província do Minho, de juro e herdade, erigindo-se o dito lugar logo em vila. — Chancelaria de D. José, livs. 72,°, fl. 85, e 69, fl. 49. (1)

À semelhança de outras quintas do concelho de Almada, a Quinta de São Lourenço beneficia de uma situação geográfica privilegiada, localizando-se no cume de uma encosta que desce até ao Tejo, onde existiu, outrora, um pequeno ancoradouro de acesso directo à propriedade [...]

Vista da parte ocidental de Lisboa, Alexandre Jean Noel, início da década de 1790
FRESS

São muito escassas as informações disponíveis que se referem a São Lourenço. Pouco ou nada sabemos sobre a sua origem, e a cronologia que avançamos tem por base o inventários do conjunto de azulejos que reveste boa parte dos espaços da casa, e que ainda se conserva no local. A edificação da casa de habitação, de um piso único, deverá remontar ao século XVII.

Assim o indicam as suas principais características arquitectónicas, corroboradas pela existência de azulejos seiscentistas, de padrão azul e branco, no alpendre e na fachada (DUARTE; MANGUCCI, 1998, p. 57). 

Com planta em forma de L, o edifício é composto por uma ala residencial, e por outra, mais comprida, onde se integra a capela, prolongada por anexos destinados a fins agrícolas. A fachada principal é antecedida por uma estrutura formada por colunas toscanas sobre um soco alto.

No alçado imediatamente perpendicular, a capela destaca-se pelo portal, encimado por frontão triangular e cruz na empena, denunciando uma arquitectura de influência pombalina. O espaço interno divide-se em três naves, separadas por colunas toscanas (aliás, esta é a ordem empregue em toda a quinta), e com tribunas.

A abóbada da nave é pintada, e este espaço separa-se da capela-mor através de um arco triunfal de colunas também toscanas [...]

A depuração e linearidade do desenho evoca o gosto seiscentista, também presente no portão de acesso a este amplo terreiro definido pela habitação. De arco de volta perfeita, com aparelho rusticado, exibe, ao centro, a pedra de armas dos Cunha [encimada por elmo com viseira barrada], proprietários da Quinta. 

O terreiro é delimitado por um muro recortado, formando uma série de bancos. Uma lápide com a data de 1713 poderá indiciar nova campanha de obras [na verdade, a lápide indica a data de 1663, MDCLXIII, reinado de D. Pedro II, ano seguinte ao nascimento de D. Luís da Cunha (e ao casamento de Catarina de Bragança), facto, que entre outros, contextualiza de  modo diferente importância do lugar e da familia Cunha].

Quinta de S. Lourenço, lápide com data de 1663.
Património Cultural

Mas serão os azulejos do interior que estabelecem uma cronologia de intervenções. Assim, em 1742 terão sido encomendados os painéis mais conhecidos deste conjunto, aplicados na sala principal da casa. Um deles, com o brasão dos Cunha, exibe a data referida.

Painel de azulejos com as armas fa familia Cunha.
flickr

Seria, contudo, a iconografia naval, com representações de batalhas, desenhos de navios, e instrumentos náuticos que tornaria notados estes azulejos. (2)

Recheio azulejar: sala de entrada - silhares em azul e branco, com representação heráldica datada - 1742 - e painéis representando animais, alguns refeitos recentemente; sala contígua com silhares em azul e branco com cenas palacianas, revivalistas; cozinha do lado oposto com azulejos de figura avulsa;

Quinta de S. Lourenço, Painel de azulejos.
flickr

sala nobre com lambril em azul e branco, atribuível ao período de grande produção joanina, com 3 grandes painéis representado várias caravelas, um estaleiro naval com uma nau a ser lançada ao mar (cortado por chaminé de lareira), um grupo de geógrafos e navegadores rodeando globos terrestres e experimentando instrumentos de medição da latitude pelo sol, vários painéis menores com figuras masculinas segurando instrumentos de navegação marítima;

Quinta de S. Lourenço, Painel de azulejos.
Museu de Marinha

sala contígua - silhares em azul e branco, com cenas palacianas; casa de jantar - composição enxadrezada recente; pequena sala contígua à anterior - cenas palacianas com molduras rococó (c. 1760/70), algumas refeitas na Fábrica de Santana; varanda alpendrada - composições em axadrezado recentes; capela - silhar de padronagem na nave, figurativo na capela-mor, com cenas hagiográficas em azul e branco, com cercaduras polícromas (c. 1760/70).

Nas paredes da nave, sobre o arco triunfal e do lado oposto sobre a tribuna, 2 cartelas rococó em estuque com figurações emblemáticas de S. Sebastião e S. Lourenço.

No espaldar de acesso ao túnel, no jardim, um brasão gravado sobre o vão de acesso e uma lápide em latim datada de 1713 [1663, v. acima]. (3)

Sabemos que os pintores de azulejos não pintavam à vista os navios autênticos, nem iam para as docas com a intenção de representar os navios existentes tão fielmente quanto possível. O papel dos navios nas composições azulejares era meramente simbólico e destinado a ser apreciado por uma sociedade que não era muito literada nas complexidades do desenho de navios.

Em alguns casos parece que os artistas tentaram adaptar as imagens das gravuras numa tentativa de as fazerem mais portuguesas, como no caso da Quinta de São Lourenço, o simplificando o desenho. Nas palavras de Maria Alexandra Gago da Câmara: "A circulação das gravuras e a sua cópia através da Europa originou representações em azulejo, especialmente essas com lazer e paisagens idealizadas, que não são necessariamente uma realidade nacional. mas em vez disso supra-nacional, que ilustra uma série de valores comuns à época, tais como a invocação da vida do país e um certo modus vivendi" (Câmara, 2005: 163).

A Quinta de São Lourenço no Pragal, perto de Lisboa, tem um programa decorativo interessante que consiste em cenas relacionadas com o mar e a navegação, que datam de 1742, baseadas em gravuras holandesas. 

Uma delas apresenta cenas de um estaleiro naval e mostra a construção de um grande navio à esquerda, quase completo, de acordo com a princípio de construção "o esqueleto primeiro". Um grupo de trabalhadores à esquerda do navio puxa um cabo enquanto que outros escolhem madeira para a estrutura do navio. Atrás deles está um pequeno grupo de nobres, olhando para os navios, provavelmente representando os donos do navio. Uma vez que o navio não está completo não é possivel dizer que tipo de navio será [?].

Quinta de S. Lourenço, Painel de azulejos.
Museu de Marinha

O lado direito do painel é ocupado por outro grupo de trabalhadores calafetando um outro grande navio, que está querenado com a ajuda de uma barcaça (Raposo and Reis, 1994: 110, 111; Simões, 2010: 454).

Três dos painéis da Quinta de São Lourenço, Pragal, apresentam navios isolados, um em cada painel, quase certamente reproduções de gravuras holandesas, todos eles representados com grande detalhe.

Um mostra uma galé com remadores levemente desenhados e uma cruz de malta na ré. Perto do navio está um pequeno barco a remos com um nobre de pé.

Galé remada a scaloccio (quatro ou cinco remadores por remo), Quinta de S. Lourenço.
Museu de Marinha

O segundo painel representa um grande navio de guerra com a bandeira holandesa, três mastros, castelo de popa e de proa, e uma lindamente detalhada figura de proa de uma sereia segurando uma coroa.

Quinta de S. Lourenço Painel de azulejos.
Museu de Marinha

O ultimo painel, talvez o mais interessante, revela um navio mais pequeno do que os precedentes, que é baseado nos navios holandeses mas tem a bandeira portuguesa e outras características como uma vela triangular [?] (Raposo e Reis, 1994: 114, 115; 2010: 454) .

Quinta de S. Lourenço, Painel de azulejos.
Museu de Marinha

A batalha naval apresentada na Quinta de São Lourenço, Pragal, de 1742 e baseada em graviuras estrangeiras, tem sido identificada como a batalha de La Hogue (1692), apesar do facto dessa batalha ter sido travada entre ingleses, franceses e holandeses, e que apenas as duas ultimas bandeiras possam ser identificadas nesse painel.

Batalha naval entre navios com proa ao estilo do século 18 e popa ao estilo do século 17 na Quinta de São Lourenço.
Museu de Marinha

Mostra dois navios de guerra disparando um contra e o fumo esconde detalhes de ambos os navios. Atrás deles podemos entre as velas de dois navios semelhantes (Raposo and Reis, 1994: 114; Simões, 2010: 454). (4)

Pelo grande augmenlo que tinham tido todas as Capitanias meridionaes, e sobretudo pela guerra pendente no Rio da Prata, achando-se ameaçado o territorio do Rio Grande do Sul pela rapida invasão de Cevallos [Dom Pedro de] daquelle Continente, resolveu El-Rei mudar a metropoli do Brasil, da Bahia para o Rio de Janeiro; e para 1.° Vice-Rei e Capitão General de mar e terra foi nomeado D. Antonio Alvares da Cunha, Conde da Cunha, por Carta Patente de 27 de Junho de 1763. 

António Álvares da Cunha (c. 1700-1791).
1.° Conde da Cunha, Vice-rei do Brasil.
Literatura Rio de Janeiro (Nireu Cavalcanti)

Chegando ao Rio de Janeiro, tomou posse a 10 de Oulubro do mesmo anno, e governou até o dia 17 de Novembro de 1767, em que foi rendido.

Arsenal do Rio de Janeiro, no sopé do morro de São Bento.
Criado em 29 de dezembro de 1763 pelo Vice-rei Antônio Álvares da Cunha, 1° Conde da Cunha.
O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na História, 1763-1822

No pouco tempo, que durou a sua administração, reparou todas as fortalezas desmanteladas, levantou a da Praia Vermelha, fez construir na ilha das Pombas dois grandes armazens para deposito da polvora, e. uma armaria na fortaleza da Conceição; na fralda do morro de S. Bento assentou o arsenal da marinha, onde se fabricou a nau S. Sebastião [v. São Sebastião (nau)], e na ponta da Misericordia edificou uma grande casa para o trem de artilharia, que hoje serve de arsenal do exercito; e ultimamente foi este celebre administrador quem creou o Hospital dos Lazaros em S. Christovão, como logo se dirá. (5)


(1) Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra. Vol. I, Coimbra, ,Imprensa da Universidade, 1921
(2) Quinta de São Lourenço... habitação e dependências da lavoura, capela (São Sebastião)...
(3) Casa e Capela da Quinta de São Lourenço
(4) The representation of vessels in early modern portuguese tile
(5) José Inácio de Abreu e Lima, Sinopse ou dedução cronológica dos fatos mais notáveis da história do Brasil, Pernanbuco, 1845

Artigo relacionado:
Palença de Baixo

Leitura adicional:
Oceanos n° 17, 1994: Raposo F. H., Os Azulejos náuticos da Quinta de São Lourenço, p. 109-115
O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis : 1763 - 1808 (pesquisa: conde da cunha)
Guerra e sociedade: a situação militar do Rio de Janeiro no Vice-Reinado do Conde da Cunha, 1763-1767
Joaquim Manuel de Macedo, As Mulheres de Mantilha, Vol. I, Rio de Janeiro, 1870

Mais informação:
Cronologia do Rio de Janeiro colonial em Imagens
Carlos Couto, Os Capitães Mores de Angola
Arquivo Histórico Umltramarino [Governador e Capitão-General de Angola 1753-1758]
Jardim da Quinta de São Lourenço
As quintas da "Outra Banda": de um passado rural a um futuro cultural

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Ante-projecto do Arsenal de Marinha na margem sul do Tejo

Quando se pretendeu melhorar a nossa marinha, ahi por 1895, chamou-se Croneau para dirigir o arsenal e pôl-o em condições de fabricar os modernos navios de aço. Não é facil saber a quanto montam as despezas feitas desde então em obras e acquisição de machinas-ferramentas, mas pode-se agir mar que mais de 700 contos se gastaram. Durante muito tempo não se pensou na transferencia do arsenal. 

A marinha de guerra Portuguesa em 1899.
O Occidente, dezembro de 1899.

Miguel Paes, que tanto estudou os melhoramentos de Lisboa, viu claro, neste como noutros pontos, e alvitrou a sua mudança para a Margueira.

Lisboa monumental, ilustração, Alonso [Joaquim Guilherme Santos Silva, (1871-1948)].
Hemeroteca Digital

No plano geral das obras do porto de Lisboa [1884] contou-se com a conservação do arsenal. A doca que ficava na sua frente teria na entrada urna ponte rolante rara passagem da linha e avenida marginal. 

Construiram-se carreiras dando para essa doca, ficava um unico dique, de acanhadas dimensões, continuavam a existir todos os defeitos que apontámos. Tão manifestos eram elles, que em 1890 foi uma comissão encarregada de estudar a transferencia do arsenal. 

Dos seus trabalhos resultou o encargo cometido em 1895 a outra comissão de fazer o projecto do novo arsenal entre Cacilhas e a Margueira. (1)

Ante-projeto do Arsenal de Marinha na margem sul do Tejo.
Museu de Marinha

Em 1909 Ayres d´Ornellas publicou O problema naval portuguez [– alguns elementos para a sua resolução, Lisboa, Typ. do Anuário Commercial, 1909]. O oficial do Exército e político, que no ano anterior tinha abandonado a pasta da Marinha, recuperava para o seu livro as propostas que tinha apresentado à Câmara dos Deputados em 5 de Fevereiro de 1907, nas quais preconizava uma Marinha separada em duas componentes.

Uma componente destinava-se à defesa das colónias, dependente dos governadores provinciais e coloniais, contando com cerca de 400 efectivos em "navios adaptados ás condições do clima, e, portanto, muito mais hygienicos". 

Esta Marinha Colonial deveria ser composta por canhoneiras a construir e por três dos cruzadores existentes: o "S. Rafael" (1900-1911), o "São Gabriel" (1900-1925) e o "Adamastor" (1897-1932) "mais economicos no consumo de combustivel, ficariam destinados ao serviço de representação nacional no ultramar, por meio de cruzeiros de fórma que estivessem sempre fóra dos mares continentaes".


Navios da Marinha de Guerra Portugueza no alto mar, Alfredo Roque Gameiro, 1903.
(Da esq. para a dir., cruzador Vasco da Gama, cruzador D. Carlos I, torpedeiro n.°2, cruzador S. Raphael, cruzador D. Amélia, torpedeiro n.° 3, cruzador S. Gabriel, cruzador Adamastor.)
  europeana collections

A proposta não foi bem recebida na Câmara, admitimos que mais por razões políticas do que técnicas. 

Com efeito, o que mais perturbou alguns deputados terá sido a proposta de criação de uma Marinha exclusiva do serviço colonial, a par de uma outra dedicada à defesa metropolitana. As acusações foram pois as de que o ministro pretenderia criar duas marinhas. 

Cruzador Couraçado Vasco da Gama, aguarela de Fernando Lemos Gomes no Museu de Marinha.
Revista Militar

No entanto o tempo passou e foi a República que, em 1912, acabou por criar a Marinha Colonial, que iria sobreviver organicamente até 1926.

Por outro lado, a Marinha que deveria assegurar a defesa metropolitana, que devia ser dotada de dois contratorpedeiros de 300 toneladas, seis torpedeiros de 150 toneladas e dois submersíveis do tipo "Holland"49, todos a mandar construir . Os cruzadores "D. Carlos" (1899-1925, depois "Almirante Reis"), "Vasco da Gama" (1876-1936) e "D. Amélia" (1899-1915, depois "República") constituiriam uma Divisão Naval de Instrução, que deveria estar em situação de armamento completo pelo período mínimo de seis meses em cada ano. 

Alfeite aterro do novo Arsenal (no Alfeite).
Museu de Marinha

O plano também envolvia como elemento de importância fundamental (o que não era uma novidade), a construção de uma base para as operações da Marinha na margem sul do Tejo e de um novo Arsenal na zona da Margueira. (2)


(1) Gazeta dos Caminhos de Ferro, 1 de março de 1959 (cf. Gazeta dos Caminhos de Ferro, 1 de março de 1909)
(2) A Marinha e a Paz "Armada", Planos Navais 1897-1916

Temas:
Marinha
Arsenal do Alfeite

Construção naval
Mais informação:
Relatório apresentado ao Parlamento pelo Ministro da Marinha, 1915 (pesquisa: margem sul))

Outra informação:
Gazeta dos Caminhos de Ferro, 16 de setembro de 1940

domingo, 19 de maio de 2019

Dornier Do X1 no areal do Alfeite em janeiro de 1931

Para apresentar o avião ao potencial mercado dos Estados Unidos o Do X descolou de Friedrichshafen na Alemanha a 3 de novembro de 1930, sob o comando de Friedrich Christiansen, para um voo de teste transatlântico até Nova Iorque.

Dornier X no areal do Alfeite para limpeza em Janeiro de 1931, aquando da passagem por Lisboa...
Museu de Marinha

A rota levou o Do X à Holanda, Inglaterra, França, Espanha, e Portugal. A viagem foi interrompida em Lisboa a 29 de novembro, quando um oleado entrou em contacto com um tubo de escape quente e começou a arder, consumindo a maior parte da asa esquerda.

Dornier X frente ao Mosteiro dos Jerónimos.
Vela de bombordo do Dornier DoX na sequência do fogo ocorrido quando o aparelho estava atracado em Lisboa em 29 de novembro de 1930.
age fotostock

Depois de ter estado parado no porto de Lisboa durante seis semanas, enquanto novas peças foram fabricadas e os danos reparados, o hidroavião continuou (com posteriores adversidades e atrasos) pela costa ocidental de África e a 5 de junho de 1931 chegou às ilhas de Cabo Verde, donde cruzou o oceano até Natal no Brasil [...] (1)

Hidrovião DO X1 na baía de Alfeite perto de Lisboa, Portugal:
Escadas até a fuselagem, levantadas na popa; Vista oblíqua de trás para a porta.
Flugschiff DO X1 in der Bucht von Alfeite bei Lissabon

A aeronave tinha 41 metros de comprimento por 48 metros de envergadura e 10 metros de altura. Possuía doze motores radiais Bristol Jupiter, fabricados sob licença pela Siemens, com 524 HP cada um, montados em tandem em seis naceles duplas, tendo, assim, seis hélices tratoras e seis hélices impulsoras. 

Hidrovião DO X1 na Baía de Alfeite em Lisboa, Portugal:
Vista de homens e meninos indígenas.
Flugschiff DO X1 in der Bucht von Alfeite bei Lissabon

A fuselagem era em duralumínio, e as asas, com uma superfície de 450 metros quadrados, possuíam estrutura em alumínio e aço, revestidas em tela pintada em cor alumínio. 

Hidrovião DO X 1 na baía de Alfeite perto de Lisboa, Portugal:
trabalhador esfregando e escovando o casco a bombordo, homens de pé ao redor com boina de marinheiro...
Flugschiff DO X1 in der Bucht von Alfeite bei Lissabon



O peso máximo de descolagem era de 56 toneladas, e a velocidade de cruzeiro era de 109 MPH. Tinha capacidade para 66 passageiros com todo o conforto, em voos transoceânicos, ou até 100, em distâncias mais curtas.

 

Tendo os primeiros voos demonstrado que os motores Jupiter, refrigerados a ar, tendiam a superaquecer e não conseguiam erguer a aeronave além de 1.400 pés em velocidade de cruzeiro, altitude insuficiente para realizar voos através do oceano Atlântico, a partir de 1930, a Dornier substituiu-os por 12 motores americanos "Curtiss Conqueror", de 12 cilindros em "V" e refrigerados a líquido, eliminando assim os problemas de superaquecimento. 


Com 610 HP cada um, esses motores podiam fazer o avião alçar-se a 1650 pés, suficiente para cruzar o Atlântico com segurança. (2)


(1) Wikipedia (en)
(2) Wikipédia (pt)

Mais informação:
1929-1932 The Dornier Do-X
A flight aboard the DoX - 1930 (youtube)
Delcampe

sábado, 11 de maio de 2019

Caramujo Revisited (2018)

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.  (1)

Praia do Alfeite, aguarela, António Ramalho, 1881.
Alexandra Reis Gomes Markl, António Ramalho, Pintores Portugueses, Lisboa, Edições Inapa, 2004

"Nasci, fui criada, namorei e casei no Caramujo", diz D. Berta, 89 anos, 66 dos quais no antigo bairro industrial. Os pais, vindos do interior, conheceram-se em Lisboa e mudaram-se para ali, onde abriram uma taberna. Depois de casar, Berta seguiu-lhes os passos. "Ficava em frente à fábrica das farinhas. Ainda lá está", recorda a antiga comerciante, que servia refeições à base de sopa e peixe frito.

Fábrica Gomes, Caramujo, Arnaldo Fonseca, c 1900.
Delcampe - Oliveira

D. Berta frequentou a escola primária no Alfeite, aprendeu a nadar na praia da Mutela e lavou roupa nos tanques da Romeira. Vai desfiando um rol de figuras do bairro: os aguadeiros Manuel e António, o "maneta" — "que não tinha um braço e vendia água com um carrinho de mão" — a "Beatriz bêbeda" ou o Martins, cujo estabelecimento ficava onde é hoje o restaurante Tia Bé, no Caramujo.

Romeira, Tanque das Lavadeiras, Martins & Silva, década de 1900.
Noticias Magazine, 4 de fevereiro de 2018

À lista junta o senhor Jerónimo — o cliernte que lhe levava os bilhetinhos de Álvaro, o namorado, com quem está casada há 64 anos. "Era uma zona de muito movimento."

A chaminé da moagem, que apitava à hora do almoço e da saída, causava desassossego e o barulho era constante. "Quando a fábrica parava para fazer limpeza era um silêncio!..."

No Cais do Caramujo, as fragatas descarregavam o carvão para as vagonetas que seguiam pelos carris até perto da chaminé da fábrica e que hoje ainda atravessam a rua.

Descarga de carvão no cais do Caramujo, Leslie Howard, década de 1930.
ZONA Magazine

Rosa, a filha de Berta, lembra-se de a água vir até perto das casas e de tudo ser desembarcado ali: trigo, cevada, louças de barro e carvão de pedra. O bairro apenas parava ao domingo, dia de visitar os amigos ou de deixar o assado numa das padarias do bairro, que cedia os fornos à vizinhança.

Há 23 anos, D. Berta trespassou o negócio e saiu do Caramujo. Não gosta de voltar ao bairro. "Era uma coisa digna de se ver e agora não há nada ali."

Também Hélia Santos, de 59 anos, que nasceu e ali viveu até ao início dos anos 1990, evita voltar.

"As recordações agradáveis já não existem." O pai era guarda-fiscal e chegou ao Caramujo em 1953. Mais tarde mudaria de posto mas continuou a viver ali. "A entrada principal do Alfeite ficava perto e de manhã e à tarde as ruas enchiam-se de militares. E havia também uns carros pretos, de Estado, que traziam os oficiais."

Caramujo, vista docais e do posto da Guarda Fiscal (o edifício mais alto), Leslie Howard, década de 1930.
ZONA Magazine

Das fábricas, lembra-se do mar de gente que enchia a rua às cinco da tarde: as condições de vida eram modestas, com várias famílias a partilhar a mesma casa e a maioria regressava do trabalho a pé. Hélia recorda-se do convívio entre vizinhos, com conversas na rua ou à janela. As padarias abriam à tarde para garantir que quem saía do trabalho levava pão fresco para casa.

Hélia soma ainda às memórias as fragatas vindas do Ribatejo, que chegavam no verão ao cais do Caramujo carregadas de melão, e as carroças que, depois de vazias, levavam os miúdos do bairro a passear. As idas à "cooperativa" também eram uma constante.

Fundada por corticeiros, em 1893, a Cooperativa de Consumo Piedense chegou a ser considerada a mais importante da Península Ibérica. Ser sócio implicava ter dinheiro para pagar as quotas e dava um certo estatuto [...]

Passear com António Policarpo pelo bairro é receber uma aula de história. O pai veio trabalhar para a construção naval e António, com 15 nos, também foi para o Alfeite — e é um interessado pelo passado do local.  O ponto de encontro, do outro lado da estrada que passa junto ao Hospital Particular de Almada, revela-se fonte infindável de informação.

Vista do Arsenal do Alfeite, Caramujo e Mutela, Mario Novais, década de 1930.
flickr

"A ponte do Caramujo passava por cima de uma linha de água e ficava aqui, quase ao lado do restaurante", explica enquanto mostra uma imagem antiga. A ponte, construída em 1890 [de facto a existência de uma ponte neste local é anterior a 1890], foi demolida em 1939 aquando da instalação do saneamento.

Cova da Piedade, Arnaldo Fonseca, 1890
Boletim do Grémio Portuguez d’Amadores Photographicos

Ali perto, a ameaçar ruína, está o edifício onde, no início da década de 1860, foi fundada a Sociedade Filarmónica Caramujense — a que mais tarde um grupo de cidadãos próximos da maçonaria e do movimento republicano mudaria o nome para Sociedade Filarmónica União Piedense (SFUAP), que existe até hoje. 

"A população vinha de outros pontos do país para trabalhar nas vinhas — a Quinta da Romeira tinha vinha e a região era afamada — mas chegou a filoxera e foi a indústria corticeira que veio salvar a situação", recorda António. 

Trabalhadores da Fábrica H. Bucknall & Sons. no Caramujo, década de 1920.
Alexandre M. Flores, Almada na História da Indústria Corticeira e do Movimento Operário (1860-1930), ed. CMA 2003

Um pouco mais à frente, lembra que antes da moagem existiam ali moinhos de maré — pelo menos desde o século XVI — e, ao virar da esquina, junto ao Tejo, conta histórias de contrabando nas barbas da guarda fiscal. 

E junta-lhes histórias dos "assaltos", os encontros entre rapazes e raparigas à socapa dos mais conservadores. «As moças eram supervigi-adas, mas juntavam-se quatro ou cinco em casa de quem tivesse pais mais permissivos e onde houvesse gira-discos, as meninas faziam bo-los e estavam feitas as condições para um "assalto".

Orlando Pedroso era uma presença popular nesses "assaltos" que animavam a Cova da Piedade nos anos 196O. Afinal, era ele o "dono da música"! O pai — o "Pedroso das telefonias" — tinha-lhe cedido um can"to do estabelecimento onde Orlando vendia discos.

Tanoeiros.
Memórias e Identidades da Cooperativa de Consumo Piedense

Orlando descende de uma linhagem de tanoeiros. O bisavô tinha a sua oficina no Caramujo e, no livro Almada Antiga e Moderna, de Alexandre M. Flores, é possível ver a cópia do contrato de arrendamento assinado a 1 de janeiro de 1887 pelo mestre tanoeiro António Pedro: a renda — 36 mil réis anuais — deveria ser paga adiantada "do Natal ao São João".

O bulício era uma constante. "A decadência começou só nos anos 1970 e acentuou-se a partir de então", diz Orlando. "Nos anos 1960, lembro-me dos operários da Mundet [Bucknall] e da Rank[in] que carregavam fardos de cortiça com mais de sessenta quilos às costas!"

Vista panorâmica da "praia pequena" á saída do trabalho na Rankin & Sons
Alexandre Flores, Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia da Cova da Piedade... 1990

Mas o Caramujo também oferecia oportunidades de lazer: "Pescava-se enguias. Era a chamada pesca ao guizo: tínhamos uma linha com uma chumbada, uma tabuinha com um guizo que tocava quando o peixe picava", recorda o bisneto do mestre tanoeiro, que lembra ainda as sessões de cinema na SFUAP, "o cinema do piolho" [...] (2)


(1) Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos, in "Poemas" (Citador)
(2) Há nova vida no bairro fantasma, Noticias Magazine, 4 de fevereiro de 2018 (ou pressreader)

Artigos relacionados:
Almada e Val de Piedade no diário de Dorothy Quillinan
Cova da Piedade em 1890, a ponte do Caramujo
Almada Virtual Museum (pesquisa: caramujo)

Tema:
Caramujo