terça-feira, 26 de novembro de 2019

Brigue Pedro Nunes

O cahimento de hum navio no mar, hé o acto mais solemne que tem a marinha, e sem entrarmos agora nessa demonstração, conhece-se desde logo a sua importância e belleza, pelo afan com que o publico em todos os paizes do mundo civilisado concorre a presencia-lo attrahido por quantas maravilhas o mesmo acto, e o navio comprehendem. 

Brigue Pedro Nunes, João Pedroso Gomes da Silva, 1857.
Palácio Nacional da Ajuda

Com effeito a scena da fuga, ou ausência daquelle volume inerte e pesadíssimo, que se move como animado de força própria, ou impellido por mãos de fadas, hé tão singular, e produz na alma sensações tão gratas e novas, apesar de esperadas, que nos extasiam. 

Por pequeno que hum navio seja, hé sempre grandíssimo em relação ao individuo (homem) que o ha de tripular, e fazer mover pelo mechanismo da roda do leme que o ajuda a dar-lhe direcção: duzentas toneladas, por exemplo que hé só a parte que hum pequeno navio immerge, corresponde ao volume e peso de dois mil e seiscentos homens; e hé hum homem só, nesse acto do lançamento ao mar, que parece dar-lhe o primeiro impulso, para a carreira que o leva a fender o fluido que o ha de sustentar na posição conveniente ao seu arriscadíssimo e aventuroso serviço.

Na sua carreira fumegante, como que se despede para sempre da terra que o vio levantar-sc pouco a pouco d'entre hum montão de madeiros dispersos a destacados, sem figura alguma regular, até ao admiravel aggregamento delles, que, á primeira vista nada tem de commiim entre si, e donde resulta a final aquelle composto das mais bellas formas, das mais graciosas linhas curvas em tão diversos planos, dos contornos mais elegantes e variados, que apresenta o lindo casco de hum navio bem construído; onde só ha de rectilinea a quilha, na construcção moderna, pois na antiga era esta também curva: 

"Que a morte intimam com fragor horrendo, 
De longe ás curvas quilhas." 

como descreve o nosso Diniz [Ode a Vasco da Gama].

Que esmero no calafeto do fundo, que segurança no cavilhame das cavernas e braços, na pregadura do costado, e do forro impermeável ao filtramento de qualquer gola d'agua; que união nas taboas do convés e cobertas, que meio engenhoso e solido de fixar os váus, dormentes, e trincanizes?!

Como de tantos milhares de partes disparatadas e heterogeneas, se compoz hum todo movel em todos os sentidos, invariavel na sua forma, qualquer que seja a posição que occupe, e resistindo ao choque poderosíssimo das ondas encapelladas sem se desconjunctar?! 

Admirável cousa na verdade, e tanto mais admirável, quanto mais se medita na perfeição e complexo desta machina chamada navio, onde todas as artes, e sciencias que a industria e intelligencia humanas imaginaram, são necessárias para o acabamento e desempenho a que se destina.

Navio de guerra disse o imaginativo creador da Revolução de Setembro, era em si "idéa, espada e caminho"! Sim, hé "idéa, espada e caminho"; e só a sua idéa podia compor esta definição que resume quanto o mesmo navio significa, tripulado e conimandado por quem entenda e falle correctamente a lingua do militar marítimo.

Brigue Pedro Nunes (detalhe), João Pedroso Gomes da Silva, 1857.
Palácio Nacional da Ajuda

Dois navios de guerra, pois, ainda que pequenos, cahiram no dia 21 de junho de 1850 ao mar, dos estaleiros do arsenal da marinha de Lisboa, em presença de milhares e milhares de espectadores!

O menor delles que hé a escuna Angra riscada pelo sr. Moraes, parece-nos poder desde já affirmar que ha de servir bem e nobremente ao seu fim; quanto ao de maior lote, o brigue Pedro Nunes aguardaremos as provas que a experiência der, para fazermos juizo do seu mérito como navio de guerra. 

No entre tanto, mais doas flâmulas portuguezas tremularão nos seus topes por esses mares, e talvez vão ainda a remotas plagas mostrar de novo a intrepidez e sabedoria que n'outras eras tanto distinguiram os Vascos da Gama, os Joões de Castro, os Antonios Galvões, os Farias, e os Magalhães. 

Talvez, dizemos nós, porque não hé só nos grandes navios que se realisam navegações arriscadas, nem tão pouco só nas batalhas de muitas náos e fragatas que se mostra a valentia e audácia dos. homens de guerra, como bem o demonstrou o capitão Pevrieux na noite de 16 de agosto de 1801 a bordo da canhoneira Volcan contra Nelson no ataque de Boulonha, e o nosso destemido Quintella na curveta Andorinha contra a fragata franceza Chiffonne perto da Bahia no dia 19 de maio de 1801.

Cabimento do Pedro Nunes e da escuna Angra.

— Relatando porém o facto de hoje, diremos que ás duas e três quartos da tarde, que era a hora do preamar, deviam estes dois navios cahir na agua, mas como se esperasse por El-Rei até ás quatro, e a maré começasse a baixar, sem que o mesmo senhor apparecesse, permittio Sua Alteza o sr. Infante D. Luiz que o brigue Pedro Nunes partisse em quanto podia nadar; e com effeito elle escorregou admiravelmente pela carreira, deixando os milhares de espectadores maravilhados do modo por que fez aquelle trajecto, e fluctuou sobre as aguas do Tejo que tão fagueiras lhe lambiam o costado. 

Pouco depois chegaram Suas Magestades, El-Rei e seu augusto pai com toda a real familia que assistiram ao cahimento da escuna Angra, a qual ainda mais veloz que o Pedro Nunes levantou pelo attricto dos cachorros na carreira, hum fumo immenso, efendeo as aguas do mesmo Tejo, com huma velocidade de 10 a 12 milhas, cercando-se de cachões de espuma alvíssima que a rapidez do sulco produzio. 

O corpo de marinheiros da armada com a sua musica, achava-se postado entre os dois estaleiros com a frente para o mar, a companhia de guardas marinhas com correias, armas e bandeira fazia a guarda de honra a Suas Magestades, como em tão solemne acto sempre se praticou; o arsenal estava apinhado de curiosos de ambos os sexos e de todas as classes e jerarchias; o reducto da inspecção, era occupado pela corte e ministros estrangeiros com suas famílias; no cáes da mesma inspecção havia hum toldo e cadeiras para os altos funccionarios e membros das camaras legislativas; as janellas da sala do risco e da escola naval foram offerecidas e franqueadas a muitas senhoras que as adornaram com a sua presença e beldade, terminando a funcção ao aprazimento de todos, e sem o menor transtorno ou desgosto, o que hé de bom agouro para os navios que lhe deram causa, e aos quaes desejámos o melhor e mais patriótico futuro. (1)

Brigue Pedro Nunes (detalhe), João Pedroso Gomes da Silva, 1857.
Palácio Nacional da Ajuda

Nascido em 31 de outubro de 1838 [o infante D. Luiz], um anno depois do senhor D. Pedro V, e obedecendo á vocação precoce, assentou praça na armada aos oito annos de idade, e foi nomeado guarda marinha em 9 de outubro de 1846.

Promovido ao posto de segundo tenente em 19 de maio de 1851, ao de capitão tenente em 29 de outubro de 1854, e ao de capitão de fragata em 24 de março de 1858, encetou com menos de vinte annos a vida do mar, assumindo em 12 de setembro de 1857 o commando de brigue Pedro Nunes, e cruzando na costa de Portugal desde o dia 18 de janeiro do seguinte anno, sujeito em tudo como simples official ás obrigações e á responsabilidade do serviço naval. (2)


(1) Joaquim Pedro Celestino Soares, Quadros navaes, 1861
(2) Coroa poética no consorcio de suas magestades fidelissimas... 1862

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Alfredo Keil e o vapor da carreira de Cacilhas

A boa fada que presidiu ao seu nascimento votara-o á Arte. Nasceu artista. Nas suas phantasias de creança, nos seus devaneios d’adolescente, apparecia-lhe sempre uma figura divina, que o chamava, sorrindo, mostrando-lhe coroas de louros.

Vapor no Tejo (detalhe), Alfredo Keil 1890.
Casario do Ginjal

Foram as artes plasticas que primeiro o attrahiram; a seducção da fórma, o deslumbramento da côr, levaram-n'o para a pintura. Consagrou-lhe com ardor Alfredo Keil os primeiros annos da sua juventude, e entre os moços pintores que, a esse tempo, procuravam uma vereda segura d'arte, elle era dos que seguiam impulsionados por mais orgulhoso enthusiasmo.

Natural de Lisboa, onde seu pae, Christiano Keil, era muito conhecido e estimado, partiu, em 1868, para a Baviera, com desasete annos, a encetar os seus estudos artisticos, e foi na patria d’Alberto Dürer, na velha e pittoresca Nuremberg, que começou a cultivar a arte.

O vapor da carreira de Cacilhas, Alfredo Keil.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

A residência n'essa cidade, tão impregnada da attrahente poesia do passado, tão cheia de velhos monumentos, nao podia deixar d'influir no espirito juvenil d'Alfredo Keil e lançar n’elle a semente d’essa poética melancolia que o faz procurar asylo, para as suas horas de trabalho, junto ás penedias do oceano, que parecem desmoronamentos de velhas cathedraes, e em que as ondas vem quebrar-se entoando psalmos d’uma liturgia grandiosa. 

De Nuremberg, Keil passou a Munich, mas a sua delicada saude obrigou-o a deixar a Allemanha, e foi em Lisboa, com Joaquim Prieto, que continuou a estudar pintura.

Barcos no Tejo, Alfredo Keil.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Em 1876 expoz, pela primeira vez, trabalhos seus na Sociedade Promotora de Bellas-Artes. Em 1878 concorreu á Exposição Lniversal de Paris com o seu bello quadro "Melancolia".

Em 1886 á Exposição de Pintura de Madrid com o "Pateo do Prior" e "Boa lamina" que lhe obtiveram o ser condecorado com a ordem de Carlos III. Já em 1885 o governo portuguez o agraciara, pelo seu mérito artistico, com o habito de Christo.

Em 1890 abriu no seu atelier, na Avenida da Liberdade, uma exposição onde apresentava umas trezentas telas, na sua maior parte estudos de marinhas e de paysagem, que quasi todas foram adquiridas por diversos amadores, muitos d’elles estrangeiros.

Cacilhas, Alfredo Keil.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Este artista, que, sem ser impulsionado pela rigorosa exigencia d'attender ás necessidades da vida, se dedicava com tal ardor ao trabalho, era um espirito complexo e inquieto, a quem a pintura não bastava, e, ao mesmo tempo que lançava na tela, n’uma pâte delicada e fina com escrúpulos singulares de nitidez, as suas impressões visuaes de paysagista, ia coordenando a harmonia dos sons, as vozes do mar a que estudava os cambiantes da vaga, a variedade de cantos, que em maravilhosos accordes animam o campo e os bosques, as alvoradas festivaes da natureza, os hymnos religiosos da noite, para os traduzir também pela arte sublime de Palestrina e de Mozart. (1)


(1)  Ribeiro Arthur, Arte e artistas contemporaneos (II), 1898

Artigos relacionados:
Invocação
Palette de Alfredo Cristiano Keil (1850-1907)

Exposições:
Exposição de quadros de Alfredo Keil, O Occidente n.° 415, 1 de julho de 1890
Catalogo da exposição de pintura de quadros..., Lisboa, A Editora, 1910
Catalogo da exposição de pintura e desenhos de Alfredo Keil no salao da Ilustração Portuguesa . Abril 1912, Lisboa, Tip. A Editora Limitada, 1912 [IllustracaoPort n.° 322, 22 de abril de 1912]
Evocação da obra olisiponense do pintor Alfredo Keil [1953]
Exposição evocativa de Alfredo Keil, músico, pintor e poeta. Palácio Galveias de 3 a 18 de Julho de 1957

Leitura relacionada:
Alfredo Keil, Collecções e Museus de Arte em Lisboa, Lisboa, Livraria Ferreira e Oliveira, 1905
Alfredo Keil, Um independente, 1950
Olisipo n.° 63, julho de 1953
Rui Ramos, O Cidadão Keil, Publicações D. Quixote, 2010

Mais informação:
Delcampe
Alexandre Pomar, ALFREDO KEIL 1850-1907, Viagens artísticas, in EXPRESSO/Cartaz de 2/3/2002

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Henri l`Évêque, Cacilhas no início da década de 1800 (II de II)

O registro dos tipos sociais se tornará efetivamente um tema para artistas portugueses somente a partir de inícios do século XIX, difundindo-se pelo viés "pitoresco" da literatura de viagem. E, nesse sentido, mostra-se semelhante ao caso brasileiro. 

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 por Henri l`Évêque.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Admite-se que a primeira publicação a trazer estampas de tipos portugueses seja Travels in Portugal, do irlandês James Murphy, publicado em Londres em 1795

A portuguese merchant and his wife and maid servant, Travels in Portugal... 1789, 1790, James Cavanagh Murphy.
Biblioteca Nacional de Portugal

Segue-se a esta publicação o surgimento de uma coletânea de gravuras de fatura portuguesa em 1806, atribuída a Manuel Godinho, abridor de registros de santos e “estampinhas” devotas. Era aluno de Joaquim Carneiro da Silva (1727-1818), gravador especializado na Itália e criador da Aula de Gravura da Imprensa Régia.

Quer bote?
O barqueiro, Manuel Godinho, 1809.
O Mundo do Livro

As coleções de costumes de Lisboa  de Godinho totalizavam 70 estampas gravadas a buril que seriam republicadas com acréscimos em 1809, 1819 e 1826 com títulos como Ruas de Lisboa ou Povo de Lisboa.

Os demais exemplos relativos ao século XIX surgidos durante a pesquisa são prioritariamente estrangeiros.

De 1809, por exemplo, datam as têmperas do francês Félix Zacharie Doumet (1761-1818), atualmente no acervo do Museu da Cidade, que bem estariam por merecer um estudo comparativo com as aquarelas de Debret. 

La conversation portugaise ou le temps perdu, Zacharie Félix Doumet.
ComJeitoeArte

Do mesmo ano, data a publicação de Sketches of  the country, character and costume in Portugal and Spain de William Bradford, editado em Londres, que comporta quinze gravuras de tipos portugueses.

Aqueduct of Alcantara.
Sketches of the Country, character, and Costume, William Bradford, 1808/1809.
Biblioteca Nacional de Portugal

O mais famoso desses conjuntos seria o de autoria do francês Henri L’Evêque (1769-1832), intitulado Costume  of   Portugal (Londres, 1814), publicação dedicada a Antonio de Araújo e Azevedo, o conde da Barca (1754-1817).

L’Evêque era um típico viajante, que fazia render seu talento aplicando-o a novos assuntos destinados ao mercado internacional.

Embarque do principe regente de Portugal com toda a Familia Real em 27 de novembro às 11 horas da manhã [1807],
des. Henri L' Évêque (1769-1832), grav. Francesco Bartolozzi (1728-1815).
Biblioteca Nacional de Portugal

Foi responsável pelo desenho que deu origem à famosa gravura de Francesco Bartolozzi (1725-1815) que representa a partida do príncipe regente d.João para o Brasil. (1) 


(1) Valéria Piccoli, O tipo popular e o pitoresco

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Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800, apontamentos gráficos e notas descritivas comparadas com a publicação de Henri l`Évêque, Costume of Portugal, London, 1814

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 por Henri l`Évêque.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Momento de cenário amplo do Tejo e Lisboa distante. Figuras, apresentação de tipos e costumes num mesmo espaço.

Distinguem-se parte da muralha e do parapeito da esplanada do forte de Santa Luzia. As construções estão sitas sobre um alfaque rochoso, o Pontaleto. Sentado junto à parede do armazém um mariola, espera um frete ou um recado.

À esquerda, um personagem de manto e sobrecapa, cobre a cabeça com um bicorne. Sentado num pequeno muro, está ligeiramente reclinado. Escreve ou desenha, talvez, num pequeno caderno que não mostra. Será um observador conhecido, um passante distinto, nós mesmos, ou L`Évêque, o autor.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe).
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Perto deste, os burriqueiros. O garoto e o asno teimoso que não se levanta. O outro, mais velho, acena aos clientes garantindo a albarda mais macia, a manta mais limpa, a cadeirinha para as senhoras... "Quer bote?! Quer bote?!" Ouvem-se os barqueiros. "Merca a laranja da china!" Apregoa a vendedeira, que negoceia com o homem vestido à moda, inglês, talvez, que não desmonta o burro para não se sujar no areal que crê imundo.

Em Lisboa e nos arredores usam-se muito os burros...

Ladies riding on asses, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

... à voz sagrada da religião, o coração do rico abre-se sem cessar à piedade, e o do pobre ao reconhecimento.

A poor woman, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

A baía espaçosa que forma o Tejo junto a Lisboa, e as costas vizinhas à foz deste belo rio, são tão ricas em peixe...

The fishwoman, La marchande de poisson, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

... os condutores destes barcos são, na maioria, originários da pequena província do Algarve, que é renomeada pelos excelentes homens de mar que fornece.

The waterman, Le batelier, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

Cães, sempre muitos destes animais, por toda a parte. A mulher, com a trouxa, ou cesta, debaixo do braço, recebe as ultimas recomendações da religiosa, sua ama. O tanoeiro sentado junto aos barris que o cliente há-de vir buscar, interrompe uma das jovens mulheres, talvez sua familiar. A outra conversa com o marido, ou irmão. Ao pedinte cego, o garoto que o acompanha desparasita-lhe os cabelos. Dois moços de fretes, galegos, aguardam. O barqueiro da pequena muleta impacienta-se.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe).
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

... a grande afluência de estrangeiros que o comércio trouxe a Lisboa, desde há uma vintena de anos, produziu uma mudança muito sensível no vestuário das damas.

A young woman wrapped-up in her great coat, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

Um elegante da classe do povo. Enverga um chapéu de três pontas, para se dar um ar de militar, tem um cigarro na boca, e embrulha-se num grande capote com mangas ["josésinho"], que traz durante todas as estações.

A petty beau, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

... outros percorrem a cidade, conduzidos por uma criança, ou guiados por um cão inteligente e fiel.

The blind man, L'aveugle, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

... são, na sua maior parte, naturais da Galiza (galegos) que vêm para Lisboa para fazer o trabalho de carregadores e de moços de recados, aproximadamente do mesmo modo que fazem os irlandeses em Londres e os saboianos em Paris.

The street-porter, Le porte-faix, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

O moço de estribaria segura as rédeas dos equídeos que, talvez, virão a acasalar. Dois cavalheiros, um com botas de montar, burgueses, talvez nobres, estão junto ao cavalo malhado. Atrás deste, um soldado de cavalaria da recém creada, por decreto do príncipe regente de 10 de dezembro de 1801, Guarda Real de Polícia sob o comando do exilado francês Conde de Novion. À direita os calafates, impermeabilizam os botes com estopa e bréu que fervilha no caldeirão da imagem seguinte.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe).
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Duas mulheres na praia, uma delas com uma criança, se forem lavadeiras, interromperam o trabalho na charca próxima à passagem do frade mendicante. Um bote é arrastado pelo areal, vai sair para Lisboa com o comerciante à proa e o soldado de pé. Mais ao lado está uma falua, com o seu mastro frontal tirado a vante e a quilha reforçada por quebra-mar.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe).
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

... elas entregam-vos a roupa com uma brancura resplandecente, absolutamente desembaraçada de toda a espécie de nódoas, e perfumada com este odor suave que só a boa lavagem pode dar.

The washerwoman, La lavandière, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

Os portugueses, sobretudo esses das últimas classes, têm uma veneração muito particular por Santo António, que nasceu em Lisboa, e que é conhecido pelo resto da catolicidade sob o nome de Santo António de Pádua.

The mendicant friar, Le frère queteur, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal


Leitura relacionada:
Irisalva Moita, O povo de Lisboa, tipos, modos de vida, ambiente, mercados e feiras, divertimentos, mentalidade, Câmara Municipal de Lisboa, Direcção dos Serviços Centrais e Culturais, 1979
Agostinho Araújo, Foteini Vlachou, Miguel Figueira de Faria, Henri L’Évêque: artista viajante (1769-1832), Lisboa Scribe, 2018

Bibliografia:
Agostinho Araújo, Experiência da natureza e sensibilidade pré-romântica em Portugal : temas de pintura e seu consumo : 1780-1825, 1991
Agostinho Araújo, Foteini Vlachou, Miguel Figueira de Faria, Henri L’Évêque: artista viajante (1769-1832), Lisboa, Scribe, 2018

Edições impressas de Henri l`Évêque:
Henri L`Évêque, Campaigns of the British Army in Portugal, under the command of general the Earl of Wellington, K. B... dedicated by permission to his lordship, London, 1812
Henri l`Évêque, Costume of Portugal, London, 1814

Ligações adicionais:
Campaigns of the British Army
Costume of Portugal
Henri l'Evêque, c. 1814
Henri l'Evêque, c. 1814

Artigos relacionados:
Henri l’Évêque, artista viajante, primeiras impressões
Henri l'Évêque (1769-1832)
Nicolas Delerive (1755-1818)
Alexandre-Jean Noël (1752-1834), no Museu de Artes Decorativas de Lisboa
O Tejo de Jean-Baptiste Pillement
etc.

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Henri l`Évêque, Cacilhas no início da década de 1800 (I de II)

Foi a recente publicação do professor Alexandre Flores, A via fluvial do Tejo entre Almada e Lisboa..., na qual a aguarela é parcialmente reproduzida, que nos chamou a atenção para a sua existência, e para a exposição de grata memória.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe) por Henri l`Évêque.
Reprodução fotográfica dos estúdios U. Antunes, colecção de Alexandre Flores

A aguarela, que descreveríamos como "Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 por Henri l`Évêque", foi apresentada ao público na exposição integrada nas Festas da Cidade de Lisboa de junho de 1978 e é referenciada, sem reprodução de imagem, no catálogo de 1979 dessa exposição, O povo de Lisboa", tipos, modos de vida, ambiente, mercados e feiras, divertimentos, mentalidade, da autoria de Irisalva Moita, então conservadora-chefe dos Museus Municipais de Lisboa.  

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O que se sabe então sobre Henry L'Évéque? Retenhamos o essencial da informação disponbilizada por Agostinho Araújo. Nascido em Genebra, no ano de 1768, debutou no desenho documental, como muitos outros aspirantes à arte da pintura, ilustrando a expedição de Horace-Bénédict de Saussure (1740-1799) ao Monte Branco.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe) por Henri l`Évêque.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Informa-nos o citado autor que L'Évéque "se especializou na pintura sobre esmalte", o que a nosso ver o aproximou da indústria relojoeira, de reconhecida tradição suíça, corporação da qual viria a receber apoios, nomeadamente através do relojoeiro Henrique de Sales, distribuidor das suas obras no Rio de Janeiro no período de fixação da corte portuguesa no Brasil.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 por Henri l`Évêque.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

A sua passagem a Portugal situa-se entre o inicio do século e meados de 1811, tendo presenciado momentos determinantes da história contemporânea, nomeadamente a partida da corte para o Brasil e o conflito peninsular, episódios a que dedicada espaço de relevo na obra produzida em território nacional.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe) por Henri l`Évêque.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

De Portugal passaria a Inglaterra onde com os seus parceiros editores pode ampliar a difusão da sua obra gráfica. Evocando inadaptação ao clima londrino, que dizia "inconveniente para a sua saúde", solicita com persistência, apoio do Príncipe Regente para passar ao Rio de Janeiro, oferecendo-se para fazer "vistas do Brasil, retratos em miniatura, ou em esmalte, ou a aguarela, ou para gravura", numa síntese oportuna feita na primeira pessoa que ilustra os seus interesses e competências em fase já madura da vida.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe) por Henri l`Évêque.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Deste período britânico deve pertencer a sua ascensão a "esmaltista da corte da princesa Carlota de Gales", aspecto a ter em consideração sobre esta outra fase Igualmente pouco conhecida da sua carreira.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe) por Henri l`Évêque.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Gorada a oportunidade de uma aventura nos trópicos junto da corte portuguesa, que não lhe concederia o solicitado apoio, terminaria os seus dias em Roma como pintor de paisagens, onde viria a falecer em 1832. (1)


(1) Miguel de Faria, Henry L'Eveque e outros reporteres, III. Dados biográficos, 2015

Leitura relacionada:
Irisalva Moita, O povo de Lisboa, tipos, modos de vida, ambiente, mercados e feiras, divertimentos, mentalidade, Câmara Municipal de Lisboa, Direcção dos Serviços Centrais e Culturais, 1979
Agostinho Araújo, Foteini Vlachou, Miguel Figueira de Faria, Henri L’Évêque: artista viajante (1769-1832), Lisboa Scribe, 2018

Bibliografia:
Agostinho Araújo, Experiência da natureza e sensibilidade pré-romântica em Portugal : temas de pintura e seu consumo : 1780-1825, 1991
Agostinho Araújo, Foteini Vlachou, Miguel Figueira de Faria, Henri L’Évêque: artista viajante (1769-1832), Lisboa, Scribe, 2018

Edições impressas de Henri l`Évêque:
Henri L`Évêque, Campaigns of the British Army in Portugal, under the command of general the Earl of Wellington, K. B... dedicated by permission to his lordship, London, 1812
Henri l`Évêque, Costume of Portugal, London, 1814

Ligações adicionais:
Campaigns of the British Army
Costume of Portugal
Henri l'Evêque, c. 1814
Henri l'Evêque, c. 1814

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Alexandre-Jean Noël (1752-1834), no Museu de Artes Decorativas de Lisboa
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etc.