sábado, 28 de outubro de 2017

Empreza d'Automoveis Almadense

Realizou-se já a primeira experiência de um omnibus automóvel adquirido pela Sociedade Portuguesa de Automóveis e que se destina a fazer carreiras para transporte de passageiros entre Cacilhas, Costa de Caparica e Sesimbra.

Omnibus "de Dion-Bouton" de 24cv, 1905-1906.
Imagem: Museu do Caramulo

Saiu o omnibus das garagens da Sociedade Portuguesa de Automóveis, na rua Jardim do Regedor, guiado pelo chauffeur Laurencel, contramestre na fábrica De Dion, levando além do sr. Serra e de alguns amigos, os srs.engenheiro Júlio de Vasconcelos e Carlos Bleck, directores da Sociedade Portuguesa de Automóveis, agentes exclusivos da casa Dion Bouton.

O primeiro autocarro português, "de Dion Bouton" de 1902, conduzido por Louis Laurencel.
Imagem: José Luis Covita, Memórias de um Século de Autocarros a Sul do Tejo, Lisboa, Scribe, 2013.

O omnibus carregado com 18 pessoas foi direito a Algés, estrada da Circunvalação, Benfica, Avenida e Campo Grande onde andou na fila. A Sociedade Almadense está à espera de outro automóvel igual a esse para imediatamente inaugurar as carreiras para Sesimbra. (1)


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A 29 de Maio [de 1905], uma segunda‑feira, a Empresa de Automóveis Almadense “(…) inaugurou um serviço provisório de carreiras, entre Cacilhas, Almada e Piedade, começando esse serviço, todos os dias, na sahida do vapor das nove da manhã, terminando na carreira das 7h40 da tarde, sendo o preço de cada logar até Almada, 40 réis e à Piedade de 50 réis” [...] (2)

Cacilhas a Piedade,
Bilhete da Empreza de Automoveis Almadense, serviço provisório .
Imagem: José Luis Covita, Memórias de um Século de Autocarros a Sul do Tejo, Lisboa, Scribe, 2013.

Inaugurou-se a semana passada o serviço de carreiras de automóveis entre Cacilhas, Cova da Piedade e Almada, organisado pela Empreza d'Automoveis Almadense, á testa da qual estão os conhecidos e importantes capitalistas Serras [João Baptista de Carvalho Serra, Sucessores, de Cacilhas] e Luís Fernandes. 

Omnibus de Dion Bouton.
Imagem: Delcampe

É este um importante melhoramento para as povoações da margem sul do Tejo pois não se limita a este pequeno percurso, o trajecto a percorrer pelos automóveis da Empreza Almadense.

Tendo já carros encomendados [à Empreza Portugueza de Automoveis (Auto Palace), "4 omnibus, Dion Bouton, sendo 2 de 15 cavalos e 2 de 24 cavalos" cf. Tiro e Sport n.° 302, 15 de março de 1905], conta-se em pouco tempo começar com as carreiras entre Cacilhas, Cezimbra, Azeitão e Setúbal, ficando assim substituídas as antiquadas diligências que actualmente fazem essa carreira.

Esse serviço é feito por modernos automóveis de Dion-Bouton, do modelo mais aperfeiçoado e moderno, e deve ser motivo de orgulho para o nosso paiz o saber que se está dando applicação prática a este novo invento, ao mesmo tempo que no estrangeiro se faz o mesmo, o que em geral não tem acontecido até aqui, aonde só tardiamente se imita o que de util há lá por fóra.

Omnibus de Dion Bouton.
Imagem: Delcampe

Nenhuma dúvida há que, em breve, teremos em Portugal a maior parte dos nossos serviços de diligências substituídos por serviços de automóveis, visto já não haver as legítimas apreensões que há pouco anos ainda existiam no espírito de pessoas ou empresas querendo entrar nesse caminho. (3)

Corpo do Estado Maior do Exército, assinaladas a Estrada Distrital 156 e a Estrada Real 79, 1902.
Imagem: IGeoE

Logo que estejam concluídos os arranjos a que se está procedendo em vários pontos da estrada, recomeçarão as carreiras de automóveis entre Cacilhas, Caparica e Vila Nova, que há tempo foram interrompidas. (4)


(1) JCB Rodrigues, A implantação do Automóvel em Portugal (1895-1910)  cf. Gazeta dos Caminhos-de-Ferro (Lisboa), Fevereiro, 1905, 71.
(2) José Luis Covita, Memórias de um Século de Autocarros a Sul do Tejo, Lisboa, Scribe, 2013
(3) Tiro e Sport n.° 302, 15 de março de 1905
(4) JCB Rodrigues, A implantação do Automóvel em Portugal (1895-1910)  cf. Gazeta dos Caminhos-de-Ferro (Lisboa), Maio, 1905, 362.

Informação relacionada:
José Barros Rodrigues, Os Automóveis na Rede de Transportes Públicos...

Leitura recomendada:
José Luis Covita, Memórias de um Século de Autocarros a Sul do Tejo, Lisboa, Scribe, 2013

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Bombeiros Voluntários do Caramujo

Já está definitamente organisada a companhia dos bombeiros voluntarios do Caramujo. Assim o communicou á Camara Municipal d 'Almada uma commissão nomeada para tal effeito.

Manoel José Gomes & Filhos, fábrica de moagem do Caramujo, nota de divida de 1881 (detalhe).
Imagem: Delcampe

Existe desde alguns meses a associação dos bombeiros voluntarios de Almada, que n'aquella localidade estabeleceu esse philantropico serviço. Tem aquella associação feito successivos exercicios no Alfeite com a bomba ali existente, e deseja augmentar os seus socios para poder realisar com mais vantagem os serviços a que se destina. 

Fábrica de moagem e cais da farinha, Caramujo, edifícios de 1864, 1872 e 1889.
Imagem: Maria Conceição Toscano 

Algumas divergencias, cremos nós havidas na associação, o que são sempre para lastimar, deram logar a que se creasse outra sociedade de bombeiros voluntarios no Caramujo. Parece-nos existir inquieta rivalidade d'esta com aquella sociedade.

Praia do Alfeite, António Ramalho, 1881.
Imagem: Alexandra Reis Gomes Markl, Op. Cit.

Mas esse sentimento deve ser substituido pelo da confraternidade sincera, se o desejo da nova sociedade, como o da mais antiga, é unica e simplesmente, como deve ser, o de servir a causa da humanidade e da sociedade. Rivalisar só no amor do bem. Fraternidade no exercicio do mesmo apostolado.

Bombeiro em Lisboa,
Typos Costumes Portugueses n.° 41,  João Palhares c. 1850.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Exclusão absoluta das paixões pequenas, e ávante. (1)
Simbologia dos Bombeiros Voluntário d'Almada, 1882.
Imagem: bombeiros-portugal.net

Do sr. presidente d'esta associação recebemos a seguinte carta a que gostosamente damos publicidade fazendo sinceros votos para que a associação dos bombeiros voluntarios do Caramujo se torne digna pela sua seriedade e pelos seus bons servi ços, da consideração publica.

Eis a carta a que nos referimos:

"Sr. redactor.

A associação dos bombeiros voluntarios do Caramujo, acha-se penhoradissima para com v ., pela noticia inserida no Bombeiro de 15 de junho proximo passado.

Emquanto ás divergencias havidas na associação dos bombeiros voluntarios d 'Almada é na verdade para lastimar que as houvesse, porém d'ellas emanou esta associação que soube á custa de mil sacrificios e prívações e estabelecer no curto espaço de 60 dias a 1.a estação no concelho a que pertence, tencionando no dia 20 fazer a inauguração com a sua machina.

Bomba a vapor Jauck n.° 1.
Consome esta machiina 1500 litros d'agua por miuuto, e o jacto alcança a distancia de 60 metros...
Imagem: O Bombeiro Portuguez n.° 8, 15 de julho de 1282

Sendo effectivamente os socios d'esta associaçãto desprovidos de paixões mesquinhas, trabalhando apenas em prol da humanidade, veem os mesmos demonstrar publicamente que nenhuma rivalidade existe entre esta corporação e os bombeiros voluntarios d'Almada; por isso pedimos á redacção a publicação do presente officio pelo que nos consideramos summamente agradecidos.

Lisboa 11 de julho de 1882.

Sr. redactor do Bombeiro Portuguez.


O presidente, José Maria Subtil d'Andrade" (2)

Piedade, D. Carlos de Bragança 1885.
Imagem: ComJeitoeArte

No dia 23 do passado a Associação dos bombeiros voluntarios do Caramujo abriu a sua primeira estação, na rua de S. Thiago, em Almada, tendo o material necessario para o serviço do incendios. (3)


(1) O Bombeiro Portuguez n.° 6, 15 de junho de 1882
(2) O Bombeiro Portuguez n.° 8, 15 de julho de 1882
(3) O Bombeiro Portuguez n.° 9, 1 de agosto de 1882

Artigos relacionados:
O incendio da fabrica da Margueira
Museu de Bombeiros

Mais informação
Hemeroteca Digital de Lisboa: O Bombeiro Portuguez

[Abaixo publicamos algumas referências cordialmente elaboradas pelo professor Alexandre Magno Flores, relativas à efémera associação dos Bombeiros Voluntários do Caramujo e ao material contido nesta mensagem:]

Para quem estiver interessado em aprofundar a história dos «Bombeiros Voluntários do Caramujo», aconselhamos também a consulta de trabalhos sobre a mesma temática, publicados há vários anos. Registamos, por exemplo, os seguintes títulos: «Bombeiros Voluntários do Caramujo (...)», da autoria de Manuel Lourenço Soares, in "Jornal de Almada", n.º 1687, 25 de Dezembro de 1983, páginas 17 e 18 // «Almada Antiga e Moderna - Roteiro Iconográfico -II. Freguesia de Cacilhas, CMA, 1987, página 108 // «Almada Antiga e Moderna - Roteiro Iconográfico - III. Freguesia da Cova da Piedade, CMA, 1990, páginas 73, 84, 85 e 94 // «Bombeiros do Concelho de Almada (século XIX)», (separata revista e actualizada da publicação periódica «Anais de Almada», 2004-2005, n.ºs 7 e 8, páginas 113-150), da autoria de Alexandre M. Flores, Edição dos Bombeiros Voluntários de Cacilhas, 2007, páginas 18,19,20,21,22,38,39. Em relação às imagens reproduzidas no texto do «Almada Virtual Museum», importa referir que a foto da "Fábrica de moagem e cais da farinha, Caramujo"(de Maria Conceição Toscano) , nos foi cedida pelo por Mário Faria de Carvalho, bisneto do industrial e benemérito António José Gomes, para reprodução no livro «António José Gomes: o Homem e o Industrial (1847-1909)», editado pela Junta de Freguesia da Cova da Piedade, em 1991, na página 30. Quanto à reprodução do «símbolo dos Bombeiros Voluntários de Almada», a imagem foi plagiada por alguém e a colocou no «bombeiro-Portugal.net.», a partir da referida revista cultural «Anais de Almada», 2004-2005, n.ºs 7 e 8, na página 120 // ou a partir do livro, atrás citado, «Bombeiros do Concelho de Almada», 2007, na página 19.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Jackass Bay (ou Os ingleses em Cacilhas)

No século XIV, os peregrinos ingleses levantaram, em Cacilhas, a Casa dos Palmeiros, ainda existente em meados de quinhentos e destinada a agasalhar os peregrinos: "Nos tempos passados, escreve o autor quinhentista, vierão a este reyno os ingleses romeiros e chegando a Cacilhas, lugar dalém pegado com o mar, não acharam gasalhado, e vindo a esta cidade acharam a mesma falta.

A entrada em Jerusalém, Giotto (c. 1266 - 1337), c. 1305.
Imagem: The Athenaeum

Espantados muyto de em tão nobre cidade não aver gasalhado para os peregrinos determinarão fazer aas suas custas dous espritaes hum no mesmo lugar de Cacilhas e o outro na cidade". Era o Sprital dos Palmeiros. (1)

O almirante John Leake, comandante da expedição a Málaga em 1704, e cuja base era Lisboa procurou instalar, nesta cidade, um hospital destinado à Marinha de Guerra Inglesa. As negociações, levadas a cabo pelo embaixador inglês, foram difíceis e longas a ponto do almirante se referir, em termos pouco abonatórios, à colaboração, ou falta dela, dos portugueses.

A squadron of the Red lying in the Tagus off the Belem Tower, Lisbon, Peter Monamy (1689-1749).
Imagem: artnet

O que é um facto é que, um ano depois, estava em funcionamento, o hospital identificado como sendo "near Almeida on the south bank of River Tagus", povoação esta que não pode ser outra que Almada. Pese embora as várias diligências efectuadas não foi possfvel conhecer qual a data em que este hospital foi encerrado o que se averiguou foi que, em 1745, o hospital estaria instalado em Lisboa de onde, por determinação régia, teria de sair.

De acordo com o cônsul britânico Charles Compton as freiras do convento que se encontrava nas proximidades do hospital ter-se-iam queixado que haveria perigo de contágio o que teria levado a Coroa a mandar encerrá-lo. De acordo com o cônsul as acusações não tinham qualquer fundamento mas, apesar disso, o cirurgião tinha transferido os doentes para bordo de alguns navios. Em carta de 22 de Março de 1745 o cônsul informa já ter encontrado uma casa adequada à instalação do hospital, mais uma vez na margem Sul do Tejo.

É esse hospital que aparece retratado numa pintura de Noel com o titulo de "A view taken from Lisbon , the english Hospital and the Convento of Almada" de 1793.

Vista norte de Cacilhas. Em primeiro plano ao lado esquerdo, dois marinheiros carregam cestos a partir de uma barcaça, com a inscrição 'JWells Aqua', para o convés de um ferry-boat onde uma mulher e dois homens aguardam. Do lado direito um barco transporta um passageiro abrigado por um dossel e seis remadores. Vista da igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso, do porto e do lugar de Cacilhas. A bandeira inglesa sobre o hospital. Ao fundo, veleiros no rio Tejo.
in British Library 
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Em 1798 Heinrich Friedrick Link [Notas de uma viagem a Portugal e através de França e Espanha] refere a existência, logo abaixo de Almada, no sopé da colina, de um grande hospital inglês para a marinhagem, em especial a das frotas e que ficava junto a um armazém grande de vinhos.

Edward Thornton, 1.° Conde de Cacilhas, c. 1799.
Imagem: Wikipedia

Um dos doentes que foi tratado naquele hospital foi o almirante Francis Beauford, o inventor da ainda em uso escala de ventos, que tendo sido ferido em 28 de Outubro de 1800, aquando da captura do navio espanhol S. José, veio completar a cura em Almada onde, segundo refere, dava grandes passeios pelos arredores. Beauford só veio a largar de Lisboa, findo o tratamento, em 18 de Agosto de 1801. 

Em 15 de Janeiro de 1802 a Gazeta de Lisboa publicava o seguinte anúncio: Terça feira 19 do corrente mês, pelas 10 horas da manhã, na casa da Praça do Comércio se hão de vender em leilão vários restos de medicamentos, instrumentos de cirurgia, camas, lençóis, cobertores e outras pertenças do Hospital da Marinha Britânica, sito no lugar de Cacilhas, aonde se poderão examinar os ditos artigos nos três dias antecedentes à venda; e tanto ali, como na Casa da Praça, se achará a sua relação, e as condições da arrematação. (2)

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O lado sul do Tejo ou Outra Banda [...] consiste numa cadeia de colinas revestidas de vinha que se estendem até Cacilhas, em frente ao Arsenal, onde a margem faz uma curva em direção a sudeste, formando uma baía espaçosa chamada Cova da Piedade, conhecida dos marinheiros ingleses pelo menos eufórico título de "Jackass Bay" [Baía dos Burros]. (3)


Os ingleses em Cacilhas, Os costumes antigos - Portugal de algum dia, ilustração de Roque Gameiro, 1931.
Imagem: Roque Gameiro.org

O Tejo, que lava as fundações a todo o comprimento da cidade, estende-se para o leste numa baía espaçosa chamada Cova da Piedade, e elegantemente pelos marinheiros ingleses, "Jackass Bay", provavelmente devido ao número da raça de orelha comprida que estão constantemente à espera no seu extremo para transportar os visitantes pelo país. (4)

Costa da Caparica, 1907.
Imagem: Delcampe

Um dia, depois do nosso regresso, navegamos o Tejo até Cacilhas, a aldeia no Alemtejo, frente à cidade. O lugar de atracagem tem sido chamado "Jackass Bay" pelos marinheiros ingleses, por causa da multidão de burros e rapazes, clamorosos por emprego, que assaltam os estranhos que lá chegam.

Edward Thornton, 2.° Conde de Cacilhas, 1886.
Imagem: Wikipedia

Montados em burros robustos, subimos até a estação do telégrafo, da qual tivemos a vista panorâmica mais esplêndida de "Lisboa antiga". (5)

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Partiu o comboio ao longo das margens do Tejo, que logo se abriram no amplo lago de esteiros  conhecido pelos marinheiros ingleses como Jackass Bay. (6)

Almada [Cova da Piedade], Uma Burricada, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 14, década de 1900.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Do Portugal de ha século e meio escasseia o documento, e a não juntarem-se agora os elementos fragmentádos, e a não apontarem-se as memórias que sôbrevivem, cerzindo-se umas a outras neste Portugal de algum dia, êsse período tão longínquo, e ainda tão perto da nossa sensibilidade, ficaria impreciso n'uma das suas facêtas mais reverberantes e mais comunicativas. (7)


(1) Mário Martins S. J., Peregrinações e livros de milagres..., Lisboa, ed. Brotéria, 1937
(2) Revista da Armada  nº 459, janeiro de 2012
(3) Joaquim António de Macedo, A guide to Lisbon and its environs..., 1874
(4) The stranger's guide in Lisbon, 1848
(5) William Edward Baxter, The Tagus and the Tiber, 1852
(6) J. Richard Digby Beste, Nowadays; or, Courts, courtiers, churchmen..., 1870
(7) Roque Gameiro/Matos Sequeira, Portugal de algum dia..., 1931