terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Defesa de Lisboa em 1810 (III)

O número de prisioneiros acumulou-se tanto que se tornou um sério inconveniente; porque, por alguma razão não aparente, o almirantado inglês não permitia que eles fossem transportados para Inglaterra nos navios de guerra, e os outros barcos não podiam ser dispensados.

Views in Spain and Portugal..., The Aqueduct (called os Arcos), with a distant view of Lisbon and the Tagus.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Ao mesmo tempo também o almirante Berkeley em cujo relatório, elaborado um ano antes, dizia que mesmo que o inimigo pudesse ocupar as alturas de Almada, não poderia provocar dano na frota no rio [v. Defesa de Lisboa em 1810 (II)], agora admitindo que estava errado, os engenheiros tiveram diretivas para construir linhas secundárias nesse lado.

Esboço do terreno da margem esquerda do Tejo, extendendo-se de Almada à Trafaria, entrincheirado como posição militar, cf. Journals of sieges carried on by the army under the Duke of Wellington, 1811-1814.
(Assinalam-se também o Vale de Mourelos interseptado por vedações e os esteiros no lugar da Piedade)
Imagem: Internet Archive

Outro mal formidável, proveniente da conduta da regência, era o estado do exército português. As tropas eram tão precariamente abastecidas que mais do que uma vez teriam desmobilizado, se não tivessem sido aliviadas pelos abastecimentos ingleses. 

Dez mil soldados de linha desertaram entre abril e dezembro, e as milícias e as ordenanças abandonaram as suas cores em números muito maiores; já que nenhum forte protesto poderia induzir a regência a pôr as leis em força contra os delinquentes, o que a princípio era por querer e que depois se tornou um hábito; então mesmo quando alimentados regularmente, pelos armazéns ingleses nas linhas, a deserção era alarmadamente grande.

Mesmo apesar desta má conduta que crescia de dia para dia, nem o patriarca nem o representante do príncipe regente deixaram de se opor.

A ordem para fortificar as alturas de Almada causou uma violenta altercação na regência, e lord Wellington, muito zangado, denunciou-a ao príncipe regente; e a sua carta produziu um tal ataque de ira no patriarca, que este insultou pessoalmente mr. Stuart, e ventilou a sua paixão na mais indecente linguagem contra o general.

Imediatamente após isto, o estado deplorável das finanças obrigou o governo a virar-se para o perigoso expediente das requisições em géneros para alimentar as tropas: e nesse momento crítico o patriarca, cuja influência era, por diversas causas, muito grande, tomou a ocasião para declarar que "não sofreria incómodos por concordar com pessoas que evidentemente não tinham algum outro propósito do que o de alimentar a guerra no coração do reino". [...]

No exército português, desde o mês de abril, as mortes foram 4.000, as desmobilizações 4.000, as deserções 10.000, os recrutas 30.000; os números foram a partir daí incrementados, mas a eficiência para grandes evoluções, apesar disso, decresceu. Os auxiliares espanhóis também, mal governados e turbulentos, estavam em desacordo aberto com os portugueses, e o seu general não era ele mesmo capaz na guerra nem capaz com aqueles que o eram.

Enquanto as alturas de Almada estivessem despidas, a margem esquerda do Tejo não poderia ser vigiada com menos de 12.000 homens [...]

Lisbon from Fort Almeida [sic], Drawn by C. Stanfield from a Sketch by W. Page, Engraved by E. Finden, Fieldmarshal The Duke of Wellington
Imagem: Cesar Ojeda

Se Massena perdesse mesmo que fosse só um terço das suas forças, o 9e Corps d'Armée poderia substitui-las. Se lord Wellington falhasse, as linhas teriam ido, e com elas toda a península.

Ele julgou que seria melhor ficar na defensiva, para fortalecer as linhas, e avançar suficientemente com os trabalhos em Almada; entretanto, acalmando as perturbações causadas pelo patriarca, para aperfeiçoar a disciplina nas tropas portuguesas, e melhorar a organização da milícia na retaguarda do inimigo. [...]

Calculou-se que antes do fim de janeiro mais de 40.000 tropas frescas cooperariam com Massena; e os preparos foram feitos de acordo com isso. Uma linha externa de defesa, desde Aldea Gallega [Montijo] to Setuval, estava já em estado avançado; Abrantes, Palmella, and St. Felippe de Setuval foram finalmente aprovisionadas; e uma cadeia de fortes paralelos ao Tejo foi contruida nas colinas, alinhada na margem esquerda, de Almada até à Trafaria [v. Defesa de Lisboa em 1810 (I)] [...]

A estadia de Massena em Santarém mostra o que 30.000 homens adicionais agindo na margem esquerda do Tejo poderiam ter feito, se tivessem chegado às alturas de Almada antes da descoberta do erro do almirante Berkeley: o abastecimento das provisões vindas do Alemtejo e de Espanha teria então sido transferido de Lisboa para os exércitos franceses, e a esquadra teria sido forçada a sair do Tejo; quando a miséria dos habitantes, os medos do gabinete britânico, as maquinações do patriarca, e a pouca chance do sucesso final, teriam provalvelmente induzido o general inglês a embarcar [...]

A carta do almirante George Cranfield Berkeley (1753-1818).
Imagem: Berryhill & Sturgeon

as linhas de Almada estando inacabadas, a imprudência de deixar o Tejo sem guarda, perante um inimigo que possuia 80 barcos grandes, excluindo aqueles que formavam as pontes no Zêzere, é aparente [...]

Views in Spain and Portugal...,  Punhete, at the junction of the river Zezere with the Tejo, Estremadura.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Sob a noção de que a vinda de Napoleão era provável, o general inglês, com a prudente característica, virou a sua atenção para a segurança deste antigo refugio dentro das linhas, e como tal, urgentemente pediu ao governo para pôr o forte em ordem, reparar as estradas, e restaurar as pontes destruídas durante a invasão de Massena.

Views in Spain and Portugal...,  View of the Duke of Wellington's Lines covering Lisbon.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Um número acrescentado de trabalhadores foram também postos nas linhas, já que os engenheiros nunca cessaram de melhorar as da margem norte do Tejo, e na margem sul, as linhas duplas de Almada, foram continuadas numa escala gigantesca. (1) 


(1) William Francis Patrick Napier, History of the War in the Peninsula and in the South of France, London, G. Routledge, 1882

Leitura relacionada:
Cardozo de Bethencourt, Catalogo das obras referentes á guerra da peninsula, Lisboa, Academia das Sciências, 1910
William Granville Eliot, A treatise on the defence of Portugal..., London, T. Egerton..., 1810
Papers on subjects connected with the duties of the Corps of Royal Engineers Vol. III, London, J. Weale, 1837

Leitura relacionada:
The dispatches of Field Marshal the Duke of Wellington

Defesa de Lisboa em 1810 (II)

A única parte da província da Estremadura, situada a sul do Tejo, que pode ter alguma importância para a defesa geral do reino, é a margem do rio, de Almada até à Trafaria; mas mesmo isso não tem consequências materiais, já que os navios podem ser ancorados numa posição em que fiquem fora do alcance dos tiros de canhão; e Lisboa tem pouco a temer de um ataque a partir desse ponto.

Esboço do terreno da margem esquerda do Tejo, extendendo-se de Almada à Trafaria, entrincheirado como posição militar, cf. Journals of sieges carried on by the army under the Duke of Wellington, 1811-1814.
(Assinalam-se também o Vale de Mourelos interseptado por vedações e os esteiros no lugar da Piedade)
Imagem: Internet Archive

Deveria isso, contudo, ser minimizado o suficiente para conservar esta parte de terra oposta [a Lisboa] durante tanto tempo quanto possível; uma extensão de terra de cerca de quatro léguas deveria, em primeira instância, ser ocupada, desde Aldea Gallega [Montijo] até Setúbal.

Historical military picturesque..., George Landmann, View up the Tejo.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Este território é na sua maior parte florestal, com fortes charnecas ou arbustos e pequenas árvores.   Setuval, ou St. Ubes [Setúbal], um porto de mar de comércio considerável, está já fortificado, mas não é um lugar de alguma grande força.

Historical military picturesque..., George Landmann, Cidade e porto de Setúbal.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Palmela é um posto forte, e poderá ainda ser mais fortificado. O sapal na estrada para Elvas, a cerca de uma légua e meia de Aldea Galega, pode vir a ser uma vantagem. Existe um caminho longo que o atravessa, no qual pode ser eregida uma bateria.

A linha pode, quando necessário, ser recuada à esquerda, para Coina, por detrás de um ribeiro que corre para o Tejo nesse ponto [rio Coina].

Historical military picturesque..., George Landmann, Palmela vista da estrada da Moita, Estremadura.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Finalmente, as alturas acima de Almada, podem ser fortificadas com redutos, ou outros trabalhos de campo. 

Journals of sieges carried on by the army under the Duke of Wellington, 1811-1814, trabalhos de campo.
Imagem: Internet Archive

Eu mencionei estes postos, mas se me é permitido dar uma opinião, a menos que eles possam ser ocupados por uma força considerável, seria mais anconselhável evacuar esta parte da província "in toto", do que arriscar a perda de pequenos corpos na sua defesa; se confrontados a outros [corpos] mais numerosos;

Journals of sieges.., trabalhos de campo.
Imagem: Internet Archive

e penso que me posso aventurar a afirmar, que o perigo de serem interrompidos impediria qualquer inimigo de avançar com um pequeno [corpo] para este ponto, especialmente se a província da Beira e a parte oriental da Estremadura continuarem inconquistadas. (1)  


(1) William Granville Eliot, A treatise on the defence of Portugal..., London, T. Egerton..., 1810

Leitura relacionada:
Cardozo de Bethencourt, Catalogo das obras referentes á guerra da peninsula, Lisboa, Academia das Sciências, 1910
William Francis Patrick Napier, History of the War in the Peninsula and in the South of France, London, G. Routledge, 1882
Papers on subjects connected with the duties of the Corps of Royal Engineers Vol. III, London, J. Weale, 1837

Informação relacionada:
Biblioteca Digital do Exército

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Defesa de Lisboa em 1810 (I)

No início de dezembro, alguns movimentos das tropas francesas no sul da Espanha levaram a crer que uma movimentação estava a ser intentada no Alentejo, em apoio da renovada operação contra as linhas [de defesa], [no caso,] o promontório de Almada à esquerda do Tejo, oposto a Lisboa, que comanda a navegação do rio, e de cujas proteções abrange uma grande parte da cidade,* foi reduzido sob a superintendência do Capitão Goldfinch.

* O Tejo, oposto ao Castelo de Almada, tem apenas 2,200 jardas [2.011 mts.] de largo.

A military sketch of the country between Lisbon and Vimeiro occupied by the British Army (detail), 1810.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A esquerda desta posição ficava sobre a ampla bacia do Tejo, no alto imediatamente acima de Mutella; o seu centro estava no Monte de Caparica, Lugar de Monte, e a sua direita sobre a falésia rochosa, chamada de Altos da Raposeira, elevando-se acima do mar, a toda a extensão da sua frente, cerca de 8.000 jardas [7.315 mts.].

Carta Topográfica Militar da Península de Setúbal (detalhe), José Maria das Neves Costa, 1813
Imagem: IGeoE

Uma cadeia de redutos, 17 em número [revisto posteriormente], flanqueando-se mutuamente, e tendo seteiras frontais, para permitir a observação nas ravinas, foi estabelecida sobre os outeiros mais proeminentes desta linha, estando a sua defesa unida com, e apoiada por, várias casas de campo na sua retaguarda, que, sendo construídas em pedra, com recintos de pedra, podem a qualquer momento ser formidáveis postos.
  • 01 Forte de Almada
  • 02 Forte do Pragal, perto do Pau de Bandeira, alt. 108 mts.
  • 03 Forte de Palença, 200 mts. a norte de Palença de Cima
  • 04 Forte do Raposo, na colina do marco trigonométrico
  • 05 Forte do Bicheiro, Quinta do Bicheiro, Caparica
  • 06 Forte do Prior, sítio de S. António na povoação de Caparica
  • 07 Forte da Granja, Quinta da Granja entre Formosinho e Vigia
  • 08 Forte de Castelo Picão, pequena povoação no monte de Caparica
  • 09 Forte de Montinhoso, no sítio do mesmo nome
  • 10 Forte do Guedes, atual Quinta da Conceição
  • 11 Forte de Murfacém, a oeste de igreja, alt. 105 mts.
  • 12 Forte da Raposeira Pequena, no atual sítio de Alpena
  • 13 Forte da Raposeira Grande, no lugar do novo reduto de Alpena
  • 14 Forte da Margueira, alt. 35 mts.
  • 15 Forte do Conde, atual rua Lourenço Pires de Távora
  • 16 Forte de S. Sebastião, 100 mts. a sul da ermida de S. Sebastião
  • 17 Forte do Armeiro Mor, Pragal, alt. 80 mts.
  • 18 Forte do Melo, Ginjal do Monte, Caparica
  • 19 Forte do Pombal, lado sul da estrada Caparica - Casas Velhas
  • 20 Forte de Possolos, onde hoje se encontra o cemitério de Caparica
  • 21 Forte de Pera de Cima, Quinta da Conceição, alt. 200 mts.
  •  
  • in PEREIRA DE SOUSA , R. H., Fortalezas de Almada e seu termo, Almada, Arquivo Histórico da Câmara Municipal, 1981, 192 págs.
Uma estrada afundada, que se estendia a quase toda a posição, na traseira dos redutos, formava uma comunicação segura entre eles e foi engenhosamente feita pelo oficial executivo para reforçar à sua defesa, cortada em banqueta, e protegendo fora do declive à sua frente, de modo a formar um caminho coberto normal, com locais armados nos pontos que davam os melhores flancos e que melhor poderiam ser apoiados pelos edifícios de pedra.

Fortificação típica das linhas de defesa de Lisboa, 1810.
Imagem: Papers on Subjects Connected with the Duties of the Corps of Royal Engnieers

O castelo de Almada, em ruínas, foi reparado e armado para defesa, de modo a formar uma espécie de cidadela interior, que deve garantir a comunicação com Lisboa até ao último momento; e como meio pronto de comunicação entre a esquadra e as várias partes da posição, foram contruídas estradas em várias pontos do penhasco,* formando a sua garganta.

* Após uma parte desta estrada ter sido construída, o acabamento do remanescente foi suspenso; em consequência dos inconvenientes ocasionados aos ocupantes de habitações privadas, e o conhecimento de que a estrada poderia, com a devida atenção, ser acabada quando requerido num tempo inferior ao necessário ao inimigo para reunir forças, e marchar através do Alentejo.

Ruínas do castelo de Almada, Carta Geographica da Provincia da Estremadura (detalhe), c.1777 - 1780?
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Foi proposto confiar a defesa desta posição aos marinheiros e fuzileiros navais da esquadra, juntamente com as milícias [ordenanças] e os corpos cívicos de Lisboa [voluntários], os redutos foram construídos com uma magnitude fora do comum, muitos sendo capazes de conter 400, 500, ou 600 homens, e desde 6 a 10 peças de artilharia; a guarnição calculada para o conjunto quando concluído será 7.500 homens e 86 peças de artilharia.

Soldado de Caçadores n° 6, 1811,
Organização de Beresford,
Aguarela de Ribeiro Arthur.
Imagem: Colecção de Postais de Ribeiro Arthur

Qualquer ataque de Almada neste momento só poderia ter sido uma operação secundária; mesmo se bem sucedida, o Tejo ter-se-ia interposto como um obstáculo intransponível entre os vencedores e Lisboa, e ocupação do promontório deveria ter sido completamente dependente do sucesso na frente. 

Portanto, qualquer modo de ocupação de Almada, que devesse prejudicar a defesa das linhas, dificilmente poderia ter sido justificado; mas era objeto de um grande valor, assim, por meio de profundos trabalhos e um esforço que de outra maneira não poderia ter sido tornado útil, por ter eliminado a possibilidade de pequenas forças inimigas perturbarem a esquadra, criando alarme e confusão na capital, e, talvez, espalhando o pânico através do país na retaguarda do exército, no momento em que as linhas [de Torres, a norte de Lisboa,] fossem atacadas [...]

Castelo de Almada após as reparações de 1810, gravura (detalhe), Pierre Eugène Aubert (Aubert pére),
cf. Lisbon from Fort Almeida [sic], Drawn by C. Stanfield from a Sketch by W. Page, Engraved by E. Finden,
Fieldmarshal The Duke of Wellington.
Imagem:  Biblioteca Nacional de Portugal

Nenhuma das objecções às linhas contínuas, no entanto, se aplicam aos postos fechados e isolados, cada um deles capaz de uma boa resistência, já que os intervalos entre eles não exigem uma linha de tropas de apoio, e após o fornecimento de guarnições para o trabalho, o exército pode permanecer em grupos abrigados, dos bombardeamentos, por algumas irregularidades do terreno perto do cume da elevações; 

Cabo do Regimento de Infantaria n° 24, 1813.
Aguarela de Ribeiro Arthur.
Imagem: Colecção de Postais de Ribeiro Arthur

ou se isso não se encontrar, no reverso, imediatamente abaixo da crista, pronto para se mover em grupos compactos e formidáveis sobre qualquer ponto ameaçado, ou formar em linha ou manobrar sobre os postos tomados, de maneira a melhor deter os esforços do assaltantes; um bom exemplo, cuja natureza da posição pode ser estudada nas defesas de Almada [...]

Soldado de Infantaria n° 8, 1810.
Aguarela de Ribeiro Arthur.
Imagem: Colecção de Postais de Ribeiro Arthur

Não se dá plano sobre as posições de Almada, Oeiras e Setúbal, já que é possível que, ao correr dos anos, sejam novamente ocupadas; uma referência aos planos pode ser feita por quem o deseje no escritório em Londres [...]* (1)


* originalmente publicado em julho de 2015

(1) John Thomas Jones, Memoranda relative to the lines thrown up to cover Lisbon in 1810, Londres, 1829

Leitura adicional:
Papers on Subjects Connected with the Duties of the Corps of Royal Engineers
Journals of sieges carried on by the army under the Duke of Wellington, in Spain, during the years 1811 to 1814

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Maluda (a outra margem)

Podemos sustentar que o Universo é uma incomensurável rede cristalina, logo, um contínuo geometricamente arranjado.

Lisboa, Maluda 1966.
Imagem: maluda.eu

Pois, de facto, o espaço infinito abriga átomos e partículas subatómicas que se relacionam, congregam, interagem, estabelecendo afinidades, co valências, ligações, tensões, distanciamentos e proximidades, refazendo mundos dentro duma certa arquitectónica em que a matéria (ou a matéria/espírito) se comporta e organiza de acordo com leis que ficam muito além das formulações teóricas conhecidas.

Tejo 16, Maluda, 1971.
Imagem: maluda.eu

Será então pertinente dizer que o Universo – ao mesmo tempo conservador e auto-transformador – contém um ADN matricial cujas peças, repetitivas, não impedem que a estrutura geral e o rigor filético fundamental, que criam a unidade e diversidade da Vida, se enriqueçam.

Lisboa 33, Maluda, 1987.
Imagem: maluda.eu

Esta teleologia, que associo aos conceitos de ontogénese (J. Monod) e de cosmogénese (P.T. Chardin), não será estranha ao sentido e conteúdo de algumas das propostas “geometrizantes” que podemos encontrar na Arte contemporânea.

Tejo 10, Maluda, 1985.
Imagem: maluda.eu

Simetria, simplificação formal, esquematização, etc, são atributos relevantes do processo geométrico. 

Tejo 11, Maluda, 1985.
Imagem: maluda.eu

Segundo certos autores, esta tendência terá como recurso consciente a partir das antiguidades Egípcia e Mesopotâmica.

Lisboa, Maluda.
Imagem: maluda.eu

Surgia da necessidade de compatibilizar o carácter fugaz e complexo da actividade humana que crescia em planos, motivos e categorias simbólicas – com a representação simples e durável dessa actividade.

Lisboa 43, Maluda, 1992.
Imagem: maluda.eu

Quando o cubismo se insinuava no estilo de alguns quadros de Cézanne, os elementos simplificados que o pintor fixava nas suas composições conferiam o poder da síntese e da essencialidade.

Lisboa 26, Maluda, 1983.
Imagem: maluda.eu

Mais tarde, e até aos nossos dias, a componente geométrica é encontrada numa larga panóplia de criadores pictóricos: Robert Delaunay, Mondrian, Malevich, Picasso, Arp, Ben Nicholson, Egil Jacobsen, Vieira da Silva, Vasarely, Kidner, Noland, e tantos outros.

Tejo 06, Maluda, 1975.
Imagem: maluda.eu

Tais artistas representam várias correntes da Arte Moderna, desde o Raionismo ao Suprematismo, desde os Cubismos às Abstrações geométicas e à Op-arte. (1)


(1) Geometria de Maluda: Uma alma fascinada pelas formas, extracto da introducção da entrevista de Hugo Beja a Maluda, publicada na revista Galeria de Arte (Nº 5, Ano 2, Junho/Agosto de 1996)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Courelas e Figueirinhas

Em 1695 o Conde de Assumar, D. João de Almeida Portugal, arrendou ao Capitão-Mor Álvaro Pereira de Carvalho, uma propriedade no sítio "aonde chamam as figueirinhas [à direita na imagem]" que contactava "da banda do Sul com a estrada pública que vem da Mutela para Cacilhas... e do Norte com a estrada que vem de S. Sebastião para Cacilhas". (1)

Almada, vista sul tomada do mirante da Quinta dos Bichos, posteriormente, Quinta da Alegria,
Joaquim Possidónio Narcizo da Silva, 1862.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Conforme Pereira de Sousa (op. cit), [Azinhaga de Mata-Cães] uma designação popular para a Azinhaga das Courelas, do lugar que no século XIX e até à viragem do século XX começava na Rua José Fontana [ao centro na imagem].

Almada, vista em primeiro plano da Estrada da Mutela e, em segundo, da Azinhaga das Courelas,
Joaquim Possidónio Narcizo da Silva, 1862.
Imagem:  Biblioteca Nacional de Portugal

Este nome surge relacionado com um proprietário conhecido por Mata-cães da Mutela, que terá vivido em Almada antes de 1682, "apodo" cuja atribuição seria mais tarde reconhecida a uma outra pessoa no século XIX, sem que qualquer relação se possa estabelecer em concreto.

Almada, vista em primeiro plano da Estrada da Mutela e, em segundo, da Azinhaga das Courelas,
Joaquim Possidónio Narcizo da Silva, 1862.
Imagem:  Biblioteca Nacional de Portugal

Verifica-se no entanto que em 1857 esta designação aparece relacionada, com a compra de "uma Quinta chamada S. Luís, vulgo Matacães, próximo da Mutela", cuja localização seria correspondente à zona da Rua Luís de Queiróz.

Almada, vista em primeiro plano da Estrada da Mutela e, em segundo, da Azinhaga das Courelas,
Joaquim Possidónio Narcizo da Silva, 1862.
Imagem:  Biblioteca Nacional de Portugal

Veja-se o esquema da estrutura de quintas [que consta na Carta Topográfica Militar da Península de Setúbal (detalhe), José Maria das Neves Costa, de 1813, e aquela] elaborada por Atkins et, al. (2006, p. 46), cuja localização é indicada entre as quintas das Serras, Armeiro, Caranguejais e S. Sebastião de Baixo;

Carta Topográfica Militar da Península de Setúbal, José Maria das Neves Costa (detalhe), 1813,
Estrutura de Quintas em Almada. Atkins, 2006.
Imagem: Praça da Liberdade, Almada - Apropriação e vida da praça no século XXI

ou o mapa de Almada em 1902, onde a zona correspondente a este lugar revela um enorme vazio delimitado por um polígono de quatro ruas ou caminhos, cuja configuração se manteve até à actualidade,

Corpo do Estado Maior do Exército, assinaladasas quintas, a Estrada Distrital 156, a Estrada Real 79 etc., 1902.
Imagem: IGeoE

muito próxima daquela que representam o traçado da Av. Dom Nuno Álvares Pereira, com a Rua Luíz de Queiróz, a Av. Rainha D. Leonor e a Rua Padre António Vieria. (2)


(1) Pereira de Sousa, R. H., Almada, Toponímia e História, Almada, Câmara Municipal de Almada, 2003, 259 págs.
(2) Luís Gonçalves, Praça da Liberdade, Almada - Apropriação e vida da praça no século XXI

Artigos relacionados:
Horizontes
O centro cívico
Praça da Renovação
Largo Gil Vicente

Outras leituras:
Revista pittoresca e descriptiva de Portugal com vistas photographicas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1861-63
Encyclopedia of Nineteenth-Century Photography

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Cova da Piedade, 1874

Atravessando o Tejo, e desembarcando em Cacilhas, outro campo de distracções se nos depara.

Praça do Comércio e Rio Tejo, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Onde ainda ha pouco se encontrava por unico vehiculo o proverbial burro de Cacilhas, com o seu peito hirsuto de animal faminto, burro explorado cruelmente pelo burriqueiro seu dono, que engordava de rico á proporção que emmagrecia a olhos vistos o animalejo, capital vivo da sua industria asinina, encontram-se hoje numerosas seges e carros, que por uma estrada fácil e curta conduzem os passeantes á Cova da Piedade.

Chafariz de Cacilhas, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 4, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Confessemos que este nome tem um não sei quê de mysticismo sombrio. Cova da Piedade! Não faz lembrar esta designação os titulos d aquellas paisagens, ora melancólicas, ora medonhas, entrevistas por Bunyan na "Viagem do Peregrino" [John Bunyan (1628-1648), The Pilgrim's Progress], uma das obras primas da litteratura ingleza e da imaginação humana?

Vista parcial do lado sul de Almada, Possidónio da Silva, 1863
Imagem: Revista pittoresca e descriptiva de Portugal


É nessse livro de comoçoes violentas e de horríveis visões da alma, que se rasgam as gargantas dos montes mais sinistros que a nossa imaginação pôde phantasiar; é ali que se abre a nossos olhos o abismo sombrio e terrível a que Bunyan chamou "O valle da sombra da morte", valle tenebroso, em que se erguem pilhas de ca da veres desfigurados dp gente morta pelos gigantes que hahitam aquellas cavernas. A cidade de destruição, a lagoa tristonha, o valle da humilhação, valle retirado e verdejante, não podiam ter por companheiros mais outro logar que se chamasse "A cova da Piedade"?

Entrada do Jardim, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900

Pois apesar do titulo, que convida aos terrores do ascetismo solitário, não conhecemos logar que mais se anime de rumores profanos. Fez-se um jardim, que está povoado de arbustos ainda tenros. Ao meio d'elle, um coreto onde ás tardes dos domingos uma orchestra entretem os passeantes. Á roda do jardim edificações novas, alegres, e a poucos passos d'ali o hotel Club, que respira limpeza e aceio.

Hotel Club na Cova da Piedade, inaugurado a 31 de maio de 1874.
Imagem: Hemeroteca Digital

Á beira da estrada o Salão Veneziano, com os seus gelados e sorvetes e o seu champagne democrático, porque se serve aos copos, e cada copo a troco de um tostão. Digam-me se ha cerveja mais barata do que este champagne, que por escrupulos de seriedade não se atreve a espumar nos copos, tão grave é a sua compustura e tão urbana a sua effervescencia mesmo debaixo dos tectos de um salão veneziano, titulo que nos despeita na memoria as orgias pintadas por Paulo Veroneso, e as desinvolturas tempestuosas do Byron na poética cidade dos Doges.

Terreiro da Cova da Piedade, actual Largo 5 de Outubro.
Imagem: CMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes

Os ranchos cruzam-se com vivacidade meridional; no hotel nota-se continuo fluxo o refluxo de hospedes; de toda a paisagem allumiada pelas scintillaçòes e pelos raios do nosso bello sol exhala-se um aroma de contentamento, e de bem estar; n'uma palavra, respira-se na margem de além Tejo o ar saudavel da civilisação, ar perfumado de um certo conforto, que até agora não era o distinctivo dos areiaes ardentes e das povoações tristonhas da outra banda.

Cova da Piedade, Rua das Salgadeiras.
Imagem: CMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes


N'um paiz, em que o gosto pelas diversões marítimas fosse um sentimento popular, profundamente gravado na imaginação e nos hábitos communs, que admiravel theatro lhes estava aberto na vasta enseada do Tejo, a qual encurvando-se largamente diante da cidade, e bordando-se em suas margens ora de vinhedos, ora de praias arenosas, ora de pinhaes, ora de logares e de villas, que na brancura do seu cáio parecem lavradas de alabastro, aproxima-se de Lisboa pelo pontal de Cacilhas, que, n'este ponto, dá á margem fronteira, entalada entre a enseada e o rio, a apparencia de um isthmo  [...]

Paisagem com casa, Bertha Ortigão.
Cat. Palácio do Correio Velho, 17 de dezembro de 2008.
Imagem: Arcadja

Que vastidão de aguas, e que largueza de margens, ali e em toda a extensão do rio, desde Marvilla diante da qual elle se espraia como um mar mediterrâneo (na expressão feliz de Garrett) até á sua foz! [...]

O Tejo em frente do Caramujo, Revista Illustrada, fotografia de A. Lamarcão, gravura de A. Pedroso, 1892.
Imagem: Fábrica de molienda António José Gomes

Com o "fora da terra" paralysou-se de todo o movimento da sociedade elegante [...] (1)

Do Commercio do Porto
Cartas Lisbonenses, Visconde de Benalcanfor [Ricardo Augusto Pereira Guimarães]


(1) Diário Illustrado, 31 de julho de 1874

Artgos relacionados: 
Cova da Piedade elegante e encantadora em 1874
Hotel Club da Piedade
Os festejos de 24 de julho de 1874