quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Príncipe de Joinville

Em agosto de 1834, o Príncipe de Joinville (1818 -1900) passa novos exames em Brest, sob a direção de cavaleiro Préaux Locré. Recebido como aluno de primeira classe, embarca imediatamente em Lorient na fragata "La Syrene", vai a Lisboa, aos Açores, e regressa a França, após de três meses de navegação.

François d'Orléans, príncipe de Joinville (detalhe).
Chateau de Versailles, Franz Xavier Winterhalter, 1843.
Imagem: REPRO TABLEAUX

Em 1840 [...] participa na transladação dos restos mortais do imperador Napoleão. 

Transbordement des cendres de Napoléon, Morel-Fatio, 1841.
Imagem: L'HISTOIRE PAR L'IMAGE

Em maio de 1841, [...] embarcado na "Belle Poule", vai visitar Amesterdão e todos os portos ou instalações marítimas da Holanda. Seguidamente viaja para a América, visita o Cap-Rouge, Halifax, Filadélfia, Washington e regressa à Europa, por Lisboa, onde é recebido pela rainha Dona Maria, e regressa a França em janeiro 1842. (1)

Lisbonne vue du vieux port, François d'Orléans, prince de Joinville, 1842.
Imagem: LMT no Facebook

Após uma rápida travessia chegámos a Lisboa. É certo que o Tejo é um rio bonito, mas o panorama tão falado de Lisboa não merece, segundo eu, a sua reputação. Apenas a Torre de Belém charma os olhos com sua arquitetura original, e desde que aí desembarcámos o encantamento continua diante da igreja atrás dela, mas isso é tudo. O resto é feio.

Torre Velha, Lisbonne, François d'Orléans, prince de Joinville, 1842.
Imagem: Sotheby's

Nós descemos a terra na chalupa ( falua ) [sic, i.e. galeota] Real, uma embarcação guarnecida de esculturas douradas com dossel de seda à ré, cuja tripulação se compunha de em homens do Algarve de tez morena , vestidos de calções curtos, jaqueta de veludo amaranto [vermelho escuro] e envergando boinas venezianas. Remavam em pé cadenciando os movimentos do remo com uma espécie de ladainha, em homenagem à rainha, que cantavam em coro.

Não era a primeira vez que eu vinha a Lisboa; aí reencontrei com alegria a rainha D. Maria, uma amiga de infância da qual viria a ser, não sei quantas vezes, cunhado; aí reencontrei também o seu marido, o rei Fernando, que eu conhecia menos. Artista até à ponta das unhas, musico, aguarelista, aguafortista, ceramista notável, o rei Fernando detestava a política; esses e outros pequenos defeitos, que nos eram comuns, ligar-nos-iam intimamente, e essa amizade duraria até ao seu final prematuro.

Vue de Lisbonne, François d'Orléans, prince de Joinville, 1842.
Imagem: artnet


Regressei com frequência a Portugal; sempre aí recebi um acolhimento do qual guardo a recordação mais reconhecida. Aí encontrei homens distintos, mulhers amáveis, instruídas, charmosas; também dediquei a Portugal e aos portugueses sentimentos de uma afeição sincera e desejo que todos os meus votos sejam por eles seguidos sobre a terra e sobre o mar, mas não entrarei na mais pequena reflexão sobre a sua vida política.

Almada vue d'Alfeita [sic], François d'Orléans, prince de Joinville, 1842.
Imagem: artnet

Na época da qual falo, este país tinha duas ilustres espadas: os marechais Saldanha e terceira, que serviam alternadamente de apoio à mudanças alternadas da Constituição, fosse na ajuda a levantamentos militares, fosse na ajuda a procedimentos mais parlamentares. Era o costume do país, o qual ia melhorando. Havia, como em França, dois partidos dinásticos; mas, coisa curiosa, o partido miguelista que fazia oposição à rainha Dona Maria, partid pouco numeroso de resto, pretendia-se o partido da legitimidade, bem que ele reivindicasse os direitos de D. Miguel, representante de um ramo mais jovem.  Que os políticos profundos arranjem isso a seu modo.

Não sei se é na ocasião desta estadia que, recebendo em Belém o corpo diplomático, o duque de Palmela, que se me apresentou como ministro dos negócios estrangeiros, me pediu de o desculpar por abreviar a cerimónia, já que a duquesa de Palmela, nesse momento, estaria prestes a dar ao mundo o se décimo quinto filho, prova palpável, dada por um ministro de negócios estrangeiros, da vitalidade da nação portuguesa.

O duque de Palmela, um diplomata da velha escola, que pleno de espírito natural e de talento, combinava a vantagem de ser próximo dos grandes diplomatas do século, os Talleyrand, os Metternich, etc., etc., convida-me para jantar alguns dias depois.

A refeição foi explêndida. À chegada, os archeiros reais, assim chamados porque estão armados com alabardas, guarneciam a escadaria; depois passamos pelos belos salões, ao fundo dos quais, à saída da mesa, uma porta ampla se abria para deixar ver, no alto de um estrado de vários degraus, uma magnífica cama de cerimónia, e nessa cama a duquesa de Palmela, que há pouco tempo dera à luz, e a quem todos os convivas se apressavam a ir apresentar as suas homenagens.

Numa revista às tropas portuguesas notei belos batalhões de caçadores e tive uma conversa bem divertida com o célebre almirante Sir Charles Napier, que assistia a essa revista, a cavalo, em uniforme de comandante de navio inglês, mas com um pequeno chapéu à Napoleão com cocar [laço] português, as calças subidas, os pés armados com gigantescas esporas de caça e um bastão enorme na mão [...] (2)


No mês de junho seguinte, [o Príncipe de Joinville] voltou para o "Belle Poule" com a esquadra às ordens do vice-almirante Hugon. Acompanha então o seu irmão mais novo, o Duque de Aumale a Nápoles, depois, a Lisboa, e dirige-se ao Brasil fazendo escala em Saint Louis, Senegal [...]

Esta viagem tem por objetivo o pedido em casamento da Princesa Dona Francisca de Bragança (1824 - 1898), filha do imperador Dom Pedro I, e irmã do futuro imperador Dom Pedro II e da Rainha de Portugal Dona Maria. 

Dona Francisca de Bragança, princesa de Joinville (detalhe),
Musée de la Vie romantique, Ary Scheffer, 1844.
Imagem: The Royal Forums

A união dos dois príncipes é celebrada no Rio de Janeiro, no dia 1º de maio de 1843. Imediatamente após, o Príncipe leva a sua esposa para França, onde brevemente nascerão os seus dois filhos. No dia 31 de julho de 1843, Joinville é nomeado contra-almirante [...] (3)


(1) Wikipédia, François d'Orléans (1818-1900)
(2) Joinville, François Ferdinand Philippe Louis Marie d'Orléans prince de, Vieux souvenirs: 1818 - 1848, Paris, Calmann Lévi, 1894
(3) Wikipédia, idem

Versão inglesa:
Joinville, François Ferdinand Philippe Louis Marie d'Orléans prince de, Memoirs (Vieux souvenirs) of the Prince de Joinville, London, William Heinemann, 1895


Leitura adicional:
Outros escritos de François d'Orléans, príncipe de Joinville

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Romântico Porto Brandão

Ninguém me há de acreditar a história da quarta mulher. Quer creiam, quer não, ela ai vai com pouca arte, a ver se a sua mesma desnudez a faz menos incrível.

Lisbon from Porto Brandão, James Holland, 1845.
Imagem: BBC Your Paintings

Fui um dia de agosto a Porto Brandão, onde estava a banhos um meu amigo. Numa quinta para lá da encosta houve uma reunião de famílias de Lisboa, à qual fui convidado. O meu amigo apresentou-me a um cavalheiro, que me tomou o braço e me apresentou a algumas senhoras, todas galantes, palreiras e doutoras em Paulo de Kock. 

Pedi miúdos esclarecimentos acerca de todas, e particularmente da mais bonita e modesta. O cavalheiro de todas disse mal, mal, porém, que eu indultei cordialmente, defeitos que são enfeites, vícios que alindam as formosas e denigrem as feias. O crime de todas era a casquilhice, que o leitor pode, se quiser, traduzir para coquetterie. Amavam toda a gente, segundo o informador. Fiquei satisfeito, pensando que o amarem elas toda a gente era boa probabilidade para eu ser amado. Eu não queria mais nada.

Camilo Castelo Branco (1825 -1890).

Languiram em doce ternura meus olhos, fitos na mais amável das quatro. Algumas vezes nossas vistas se encontraram, e disseram profundos mistérios da alma. Fugi outras vezes da sala e fui a uma varanda, donde se ouvia o bramido do oceano, casar as melodias do meu amor com as dissonâncias formidolosas do estrugir das ondas. A lua prateava-me a testa, em que o sangue, aquecido no coração, subia em arquejos daquela poesia, que não sai em rimas, e enlouquece, se a paixão a não desafoga em suspiros. Aquilo é que era!

Ao romper de alva, vi que um rancho de meninas desciam ao jardim e colhiam flores. A minha amada ficou à janela conversando com senhoras idosas. "Tragam-me a mim uma rosa de musgo", disse ela às amigas. E as amigas voltaram sem a rosa. Desci ao jardim, colhi duas rosas aljofradas das lágrimas da aurora, pedi licença para lhes oferecer, e disse: "Não as enxuguei, para não privar as florinhas das carícias de um anjo."

Porto Brandão, à esquerda do Tejo.
Imagem: Ateneu Livros

Eu queria comunicar a exuberância da minha ventura, mas tive sempre para mim que a felicidade quer-se recatada para não suscitar invejas: é ela como a fina essência das flores destiladas, que perde o aroma, destapado o cristal que a encerra. Não contei nada ao meu amigo; simulei até desapego das mulheres mais belas do baile, e da preferida nem se quer falei.

Este meu dito foi celebrado em Porto Brandão [...] (1)


(1) Castelo Branco, Camilo, Coração, cabeça e estômago, Lisboa, Publicações Europa América, 1988 [1.a ed. 1862]

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

O Tramoceiro

Há nele [no Tejo] tanta abundância de peixe que os habitantes acreditam que dois terços da sua corrente são de água e outro terço são de peixe. É também rico de marisco como de área, e é principalmente de notar que os peixes desta água conservam a sua gordura e sabor natural sem os mudar ou corromper por qualquer circunstância [...] (1)

Olho de Boi - Beira Tejo, Manuel Tavares, aguarela sobre papel, 1960
Imagem: Cabral Moncada Leilões

[...] gordos e saborosos linguados, salmonetes, cações, raias, corvinas, douradas, pampos, cabras, ruivos, cibas, chocos, choupos, salemas, charroco, peixe delicado que dão aos doentes, cavalas, sardas, sardinhas, safios, congros, amêijoa, berbigão, ostra, lingueirão, mexilhão, caramujo, muito camarão, grande número de lagostas em Porto Brandão muitas sapateiras, santola, lagostim, caranguejos [...] (2)

Os peixes grandes comem os pequenos, Pieter Bruegel o Velho,  gravura de Pieter van der Heyden, 1557.
Imagem: THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART

Os abismos insondáveis do rio, reino de animais marinhos e de riquezas esquecidas — tão perto e tão longe da cobiça dos homens! Que variedade de peixes a que os iscos atraíam e as linhas puxavam para a riba do cais. Safios, congros, polvos charrocos, robalos, tainhas eirozes, linguados, corvinas, cações ... Na baixa-mar, as rochas e as pedras ofereciam ostras, mexilhões, lapas e ainda camarões nas poças salgadas da areia. (3)

Planta do Rio Tejo e suas margens (detalhe), as praias da Fonte da Pipa, Tramoceiro e Ginjal, 1883.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Os habitantes da muralha viviam enamorados do rio e, de pais para filhos, conservavam os apetrechos da pesca. Todos os peixes lhes eram familiares e as manhas para os capturar pertenciam à sabedoria do lugar.

O Tramoceiro visto da rocha de Almada.
Imagem: Correia, Romeu, O Tritão, Lisboa, Editorial Notícias, 1982

Canas de pesca, linhas empatadas com anzóis de várias barbelas, camaroeiros de boca redonda ou rectangular, de malha larga ou a terminar com um saco de rede miúda.

A pedra do Tramoceiro, fotografia de Fernando Barão, década de 1950.
Imagem: Casario do Ginjal

Camarões capturados na vazante barrenta, camarão branco, com o linguadinho parasita junto da cabeça.

A pedra do Tramoceiro.
Imagem: Correia, Romeu, O Tritão, Lisboa, Editorial Notícias, 1982

Polvos, santolas, lagostas e lavagantes. Charrocos, tainhas, congros, safios, cações, robalos, corvinas, eirós e fanecas [...] (4)


(1) De expugnatione Lyxbonensi, excerto traduzido da carta escrita por um cruzado que participou no cerco e conquista de Lisboa em 1147

(2) Oliveira, Frei Nicolau de, Livro das Grandezas de Lisboa, 1620, citado em Porto Brandão, A Terra e o Tejo, Almada, Centro de Arqueologia de Almada, 2007

(3) Correia, Romeu, O Tritão, Lisboa, Editorial Notícias, 1982, 174 págs.

(4) Correia, Romeu, Cais do Ginjal, Lisboa, Editorial Notícias, 1989, 188 págs.

Leitura adicional:
Freitas, Joana Teresa Cruz Mimoso, Turismo Náutico: agentes dinamizadores do estuário do Tejo, Estoril, eshte, 2010
Gomes, Sandra Rute Fonseca, Territórios medievais do pescado do reino de Portugal, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2011

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Margem esquerda

A Joseph Fortuné Séraphin Layraud (1834 – 1912)

Vista do Tejo tomada do palácio da embaixada de França, Joseph Fortuné Séraphin Layraud, 1874.
Image: Musée Saint-Loup, Troyes, no flickr

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

Vista de Lisboa tomada da margem esquerda do Tejo, Joseph Fortuné Séraphin Layraud, 1874.
Image: Musée Saint-Loup, Troyes, no flickr

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

D. Maria Pia de Sabóia, Palácio Nacional da Ajuda.
Image: Wikipédia

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.


Família real portuguesa em Queluz, Palácio Nacional da Ajuda, 1876.
Image: Wikipédia

E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.


A manhã seguinte, Joseph Fortuné Séraphin Layraud, 1884.
Imagem: LAPHAM'S QUARTERLY

Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.


O artista no seu estúdio, 1899.
Imagem: artnet

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele. (1)



(1) Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos — Poema XX"

Informação relacionada:
Catalogue des tableaux exposés au Musée de Troyes fondé et dirigé par la Société académique de l'Aube (1907)

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Panorâmica de Lisboa em 1763

Esta panorâmica, representando a capital lusitana oito anos após o terramoto de 1755, é dedicada a Carlos Alberto Guilherme de Colson, conselheiro da corte do Conde de Lippe [...]

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa,  Bernardo de Caula, 1763.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A cidade aqui representada estende-se desde a Torre do Bugio até ao Palácio do Patriarca [Palácio da Mitra] e evidencia as marcas de destruição deixadas pelo terramoto [...]

O seu autor, Bernardo de Caula, de origem francesa, ingressou no exército português, como primeiro-tenente da Companhia de Mineiros e Sapadores do Regimento de Artilharia de Lagos, em 7 de Novembro de 1763. Nesse ano terminara a campanha militar — que decorreu de 30 de Abril de 1762 a 10 de Fevereiro de 1763 — como consequência do Pacto de Família (celebrado entre os soberanos de França, Espanha e Nápoles, todos pertencentes à família Bourbon) que pretendia forçar Portugal a fechar os seus portos a navios ingleses.

Nesse conflito, o Exército português foi dirigido pelo Conde de Schaumbourg-Lippe, nomeado seu comandante-chefe com a patente de Marechal General, o qual permaneceria em Portugal até 20 de Setembro de 1764. (1) 

1 Torre de Bogio
2 Torre de sam Julian da Barra
3 Carcavellas
4 Forte S.to Amaro
105 Grande Caxope da Barra

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa (detalhe 1/9),  Bernardo de Caula, 1763.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

  5 Forte S. João da Mayo
6 Villa e Condado de Oeyras
7 Paço d'Arcos
8 Forte de Caxias
9 Caxias e os Cartuchos

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa (detalhe 2/9),  Bernardo de Caula, 1763.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

 10 N.a S.a de Boa Viagem
11 Ponte de S.ta Catharina
12 Convento de S.ta Catharina
13 Forte arruinado de S. Jozé
14 Convento de Sam Jozé

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa (detalhe 3/9),  Bernardo de Caula, 1763.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

 15 Quinta de Dom Luiz de Portugal
16 Forte d'Argels
17 Gurita do Duque de Cadaval
18 Aldeia d'Argels
19 Quinta do Duque de Cadaval
20 Cazas do lettrado
21 Pedrooza
22 Cazas de Dona inés

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa (detalhe 4/9),  Bernardo de Caula, 1763.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

 23 Quinta velha do Conde S'Jago
— occupada pelo Conde R. de la Lippe
24 Caza da Saude
25 Torre de Belem
26 Ermida de S.o Jeronimo
27 Cazas do Marques de Tancos
28 Bom Socefso
29 Cazas do Conde Barão
30 Cazas do Marques de Marialva
31 Convento de Belem
32 Alculena
33 N.a S.ra do livramento
34 Paço Real de N.a S.ra da Ajuda
35 Calçada da Ajuda e Cazas do Conde D'oeyras

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa (detalhe 5/9),  Bernardo de Caula, 1763.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

 36 Cazas da Duqueza d'Abrantes
37 N.a S.ra da Boa Hora
38 Villa de Belem
39 quais de Belem e Paço Real
40 Quinta Real de Belem
41 Cazas de Descanfo da tapada
42 Cazas de Gaspar D de Saldanha
43 Cazas e Pateo D de Saldanha
44 Junqueira e q.ta da Condeça da Ega
45 Forte da Junqueira
46 Palacio do Cardeal Patriarcha
47 Sam Amaro
48 Quinta do Conde Daponte
49 N.a S.ra de Bona morte
50 Q.ta e Palacio das necefsidades

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa (detalhe 6/9),  Bernardo de Caula, 1763.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

 51 O Con.to do livramento
52 arrebaldo e Porta d'alcantara
53 Buenas Ayres
54 Pampouilla e S. F.a de Paula
55 Jannellas verdas
56 N.a S.ra da Lapaz
57 N.a S.ra dos Navegantes
58 As Tercenas B.ro do Mocambo
59 Fraiguezia de Santos
60 os Barbadinhos francezes
61 os apostolos Caza da aula
62 Bazilica Patriarchal
63 Bairro Alto e os Paulistas
64 Fraiguezia de Sta Catharina
65 Bairro da Bica Grande e as xagas
66 Cazas da India
67 quais de Boa vista
68 Fraiguezia de Sam Roque
69 N.a S.ra de Loretta dos italianos
70 Fraiguezia de N.a S.ra da anunciada
71 Palacio de Bragança
72 Fraiguezia do Corpus Satus
73 Convento da Trinidade

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa (detalhe 7/9),  Bernardo de Caula, 1763.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

 74 Convento S Francisco da Cidade
75 Convento dos Carmos
76 Ruinas e Convento do Spiritu Santo e do paço Real
77 Arcenal Novo
78 Rocio e Collegio S. Antão
79 Convento de N.a S.ra da Graça
80 Castel Sam George
81 Cazas do Marques de Tancos
82 Fraiguezia de Sta Moniqua
83 See velha e S antonio
84 Terreiro do Paço
85 Cazas da ribeira e Ruinas da misericodia
86 Ribeira do peixe
87 Convento de S. vicente De fora
88 Cazas do Marques de lavradio e Sta Ingracia
89 Alfandega
90 Aercenal da fondiçam
91 Campo Santa Clara
92 Quais dos Soldados
93 Convento dos barbadinhos italianos

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa (detalhe 8/9),  Bernardo de Caula, 1763.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

94 Convento da S.ta appolonia
95 Convento de Santos novo
96 Porta do arrebaldo da madre de Deos
97 N.a S.ra da madre de Deos
98 Cazas do Conde de unhão
99 S Francisco de Xabregas
100 Convento dos Grelos
101 Convento do Beat antonio
102 Palacio do Patriarcha
103 Campo dos olivaes
104 Rio Tejo

Vista e perspectiva da Barra Costa e Cidade de Lisboa (detalhe 9/9),  Bernardo de Caula, 1763.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal


(1) Biblioteca Nacional de Portugal

sábado, 10 de janeiro de 2015

Os Cachopos

Se o Conde de Bolonha D. Affonso, Infante de Portugal, teve filhos de sua primcira mulher a Condessa Mathilde (1202 -1259), he hum dos pontos, em que com mayor vigor se tem contendido, e disputado.

A map of the mouth of the famous river Tagus or the harbour of the city of Lisbon (detalhe), William Burgess 1729 - 1746.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Em quanto Portugal se conservou separado [de Hespanha], nunca esta materia teve mais fundamento do que a tradição pueril de alguns Historiadores, de quem se pode dizer, que a escreverão para gastarem tempo, e papel com a sua narração, mas depois, que o imprudente valor del Rey D. Sebastião condenou ás masrnorras de Africa no,campo de Alcacere toda a gloria Portugueza, e depoia que a indesculpavel irresolução do Cardeal D. Henrique, que quasi na sepultura cingio a Coroa, deo lugar a que se occupasse o Throno Porruguez pela violencia das armas, e não pela desarmada força do Direito, então he que começou a soar pelo mundo com mayor estrondo a injustiça, que El Rey D. Alfonso III usou com os filhos, que houve de sua primeira mulher a Condessa Mathilde de Bolonha [...]

Vista do Tejo e do palácio da Ajuda, Charles Landseer, 1825.
Imagem: Instituto Moreira Salles

Diz pois a tradição, como referem estes Authores, que sabendo em França a Condessa Mathilde, que seu marido o Infante D. Affonso estava casado em Portugal com D. Brites, filha bastarda de D. Alfonso X Rey de Castella, levada da impaciencia de caso tão feyo e doendolhe vivamente o desprezo da sua pessoa, e do seu amor, viera acompanhada de huma frota a este Reyno, e que chegando a Cascaes, soubera que o infante estava em Frielas, e que por huns criados de grande estimação, e confiança, que consigo trazia, lhe escrevera, representandolhe a indignissima acção, que usava com ella, e pedindolhe, que desse satisfação ao escandalo de toda a Europa.

Descripção da boqua do Tejo, Vincenzo Casale, 1590.
Imagem: Fortificações da foz do Tejo

Diz mais a tradição, que o Infante sem fazer caso dos seus rogos, nem das suas justificadas representações, lhe respondera com aspereza tão pouco esperada, que desconfiando de conseguir o que pretendia, entre a dor, e a desesperação expuzera os os filhos, que comsigo trazia, na foz do Tejo, donde teve principio o nome de Cachopos que na nossa linguegem antiga he o mesmo que Meninos, e que voltando outra vez para França, se valera do respeito de S. Luiz, que então reynava gloriosamente naquella Monarchia, para que a grande authoridade desse Principe fosse o remedio da sua injuria, o não chegou a ter effeito [...]

A map of the mouth of the famous river Tagus or the harbour of the city of Lisbon (detalhe), William Burgess 1729 - 1746.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Quem se não ha de rir vendo que escreverão huns homens, que se prezavão de eruditos, que desta acção se derivou o nome de Cachopos, por se exporem naquelle lugar estes reos innocentes? Que mayor argumento da ignorancia desta nova tradição? Os Cachopos he huma corrupção da palavra Latina Scopulm, com que se explicão os baixos, que se fizerão infames no escandalo dos navegantes pelos naufragios, que causarão, e nunca se derivarão dos meninos, que nelles deixou o desconfiado amor da Condessa Mathilde.

18
Moleta
Batiment qui pêche dans le Tage et en dehors

Só huma circunstancia tem faltado a este conto de velhas, que foy o como se salvarão daquelle liquido patibulo. Não appareceo atégora algum compadecido pescador, que vendo-os em tão evidente perigo, os salvasse na sua molleta, ou no seu barco do alto [...] (1)

13
Lanchas do Alto
Batiments pecheurs qui vont en haute Mer

A entrada do Tejo fica situada entre as torres de S. Julião e do Bugio, que distam 2:750 metros uma da outra, e entre o Bugio e o Bico da Calha, ou ponta do cabedelo do S. Dois grandes bancos se prolongam para o mar na direcção geral de NE. - SW., que se denominam Cachopo do N. e Cachopo do S., ou Alpeidão. Formam estes cachopos dois canaes, o do N., ou corredor do N., que fica entre o cachopo do N. e a torre de S. Julião da Barra, e o do S., ou Barra Grande, que fica entre os dois cachopos indicados. Alem d'estes canaes ha um outro, estreito, pouco fundo e variável em planta, chamado Golada, entre a torre do Bugio e a terra.

Vista do estuário do Tejo, tomada da Estação Espacial Internacional, Samantha Cristoforetti, 2015.
Imagem: Samantha Cristoforetti no Facebook

O cachopo do N. estende-se naquelle rumo por 5:500 a 6:500 metros. O do S. é formado da cabeça do Pato, das coroas de Santa Catharina e do cachopo propriamente dito.

Sobre a primeira parte ha peio menos 10 a 12 metros de agua. As coroas de Santa Catharina ficam entre a cabeça do cachopo e a do Pato. Este cachopo do S., ou Alpeidão. na extensão proximamente de 5:500 metros, é um banco de areia, que descobre em baixa-mar em diversos logares.

Lisboa com a sua área às 10 horas, Christian Friedrich von der Heiden, 1672.
Imagem: BLR

O banco, ou barra que liga os extremos dos cachopos pelo W., fica entre a cabeça do Pato e o Espigão, na máxima largura de 3:700 metros, e forma grande escarcéu com ventos do quadrante do SW., levantando ás vezes um rolo do mar, ou arrebentação, que fecha de um lado ao outro o canal da barra e offerece nessas occasiões perigo em arrostar com elle. (2)


(1) Barbosa, Joze, Catalogo chronologico, historico, genealogico, e critico, das rainhas de Portugal..., Lisboa, Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1727.
(2) Loureiro, Adolfo, Os portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes, Vol III parte 1, Lisboa, Imprensa Nacional, 1906

Artigo relacionado:
A pequena tocha do mar


Leitura relacionada:
Naufrágios na foz do Tejo
Santos, Cristina, Fortificações da foz do Tejo, Lisboa, Universidade Lusíada, 2014

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Os Paços do Concelho

Os Paços do Concelho ou edifício do Poder Local é um edifício localizado na Praça Luís de Camões (Largo da Câmara ou Praça Nova).

Almada. Rua Direita e Egreja de S. Paulo Câmara Municipal, ed. Martins/Martins & Silva, 31, c. 1900
Imagem: Fundação Portimagem

Tem um enquadramento na malha urbana, elevando-se no topo de um quarteirão, entre dois arruamentos, em frente à praça.

Almada, Camara Municipal, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 11, década de 1900.
Imagem: Delacampe

Encontra-se, adossado a construções de menor importância arquitectónica e à Igreja da Misericórdia construção do mesmo porte. Tem uma planta irregular, em trapézio, com coincidência interior — exterior. 

Os volumes são articulados: compostos por edifício principal e torre de planta irregular, com disposição da massa com tentativa de alcance de um equilíbrio entre a verticalidade da torre com a horizontalidade da fachada principal, conseguida com a inclinação grande dos telhados, a elevação do segundo piso e a distribuição da dupla escadaria.

A cobertura é feita em telhado de 4 águas, com subeira, pátio, e coruchéu. A frente está orientada a Oeste, com embasamento.

Os 3 pisos desenvolvem-se em torno da torre sineira (o que restou da igreja de Santa Maria, após o terramoto de 1755 e depois integrada no edifício dos Paços do Concelho), cujo sino tem gravado a data de 1795, relativamente descentrada do corpo do edifício, e assenta, em parte, sobre lajedo e cantarias; de 1 pano entre cunhais, com os registos marcados pelo ritmo horizontal de 3 séries de vãos sobrepostos; porta de acesso ao piso térreo. 

Escada de acesso ao 2º piso, guarnecida por gradeamento, com dois patamares. A torre de estrutura compacta tem dois registos: o primeiro contem a maquinaria de relógio, com quatro mostradores visíveis em cada uma das faces da torre, colocados em aberturas circulares; vãos moldurados em alvenaria.

Brasão real sobrepujado à porta de acesso ao piso de cima. Remate das fachadas em cornija corrida e beiral. Flancos em grande parte adossados a outras construções, onde existe cantaria proveniente de antigas construções.

O interior é caracterizado por espaços diferenciados, com grande número de salas nos vários pisos. A iluminação é feita, apenas, através dos vãos existentes na fachada.

Inicialmente os Paços Municipais albergavam também uma prisão e um tribunal. Actualmente alberga o Gabinete da Presidente da Câmara Municipal, e os serviços de apoio à Presidente, bem como o Departamento de Informação e Relações Públicas. É uma propriedade pública de âmbito municipal.

Estima-se que a construção do edifício remonta ao século XVIII.

Cronologia do edifício dos Paços do Concelho

Datas — Características/Referências

Séc. XVII — gravura onde é representada a torre com aberturas para sinos, em dois pisos

Portogallo, Lisbona dal promontorio.
Gravura executada por Terzaghi sobre desenho de Barbieri reproduzido de um original do século XVII.

1795 — inauguração do edifício segundo a inscrição do sino do relógio com a data da fundição (oferta de D. Maria I)

1796 a 1830 — data provável de uma gravura onde o edifício da Câmara aparece ainda incompleto, faltando-lhe uma parte do lado direito

Lisbon from Fort Almeida [sic], Drawn by C. Stanfield from a Sketch by W. Page, Engraved by E. Finden, Fieldmarshal The Duke of Wellington

1832 — nas gravuras após esta data o edifício aparece como existe hoje

Lisbon from Almada, Drawn by Lt. Col. Batty, Engraved by William Miller, 1830

1868 — o pelourinho que se situava no largo em frente, foi destruído quase na íntegra

1940 — inícios — realização de importantes obras no edifício

Escondidinho Boca de Vento, vista tomada da rua Trigueiros Martel, Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

1985 — iniciaram-se no edifício dos Paços do Concelho obras de transformação e beneficiação em algumas salas do piso térreo; trabalhos arqueológicos em torno de duas salas situadas na ala Sul do edifício

A sua tipologia é caracterizada por ser uma arquitectura civil, da época do Maneirismo, e com influência Pombalina. A torre e a porta do piso térreo têm traços classicizantes do Maneirismo, anteriores ao do resto do edifício.

Do Pombalino ressalta a estrutura do edifício, a simetria da fachada, ainda que não haja fidelidade rigorosa a este estilo, pela dissimetria existente entre os volumes da torre em relação ao edifício, que teria resultado do compromisso assumido pela estética do novo edifício camarário. (1)


(1) Graça, Filipe Alexandre Antunes, Eficiência Energética em Edifícios de Serviços no Concelho de Almada, Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia, 2011

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Ramalho Ortigão, verão de 1886

Cartas portuguezas*

Cova da Piedade, 22 de outubro [de 1886]

Escrevo-lhes estas linhas de uma pequena, mas bem interessante povoação, aonde vim passar o verão.

Cacilheiro, D. Carlos de Bragança, aguarela, 1893.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

A Cova da Piedade fica ao sul do Tejo, a vinte minutos da ponte dos vapores, na estrada de Cacilhas a Cezimbra. Da bacia da Piedade faz parte a praia do Caramujo para léste, e para oeste o lindo e fértil valle de Mourellos, todo elle um pomar, em que a bella uva trincadeira, de bagos grossos e duros como cerejas, amadurece em enormes cachos, por entre as romanzeiras, as figueiras moscatel, as macieiras e os medronheiros cobertos de fructo. É uma terra abençoada para a producção. N'uma estreita nesga de quinta, uma familia habilidosa e diligente vive n'um confortável commodo burguez sem outra renda além da que resulta do cuidadoso amanho da sua vinha e da sua horta.

Cova da Piedade, zona rural, Francesco Rocchini, anterior a 1895.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Não se faz vulgarmente idéa do gráu de intensidade a que se póde chegar na cultura, porque a verdade é que em geral a terra portugueza produz como muito bem quer. Ainda ha muito pouco tempo principiámos a estrumar as vinhas, mas os cuidados de que a cepa é objecto, estão ainda a uma distancia infinita d'aquelles que se lhe consagram, por exemplo, nos vinhedos do Rheno. De sorte que, apparecendo um proprietario entendido e zeloso, assíduo ao trabalho, vigiando elle próprio dia a dia a sua vinha, curando por assim dizer a cacho por cacho, suspendendo aqui, amparando acolá, abrigando n'uns sitios, desparrando n'outros, pondo estes cachos á sombra e expondo aquelles ao sol, torna-se enorme, no pequeno terreno assim tratado, a differença remuneradora no lucro.

Ha nas visinhanças duas grandes quintas reaes : a quinta do Alfeite, pertencente a el-rei, e a da Amora, tambem chamada da princeza, pertencente ao Sr. infante D. Augusto.

Nenhuma d'estas propriedades póde infelizmente considerar-se um modelo de cultivo. São meras quintas de recreio, no triste sentido portuguez d'esta infeliz expressão.

O Alfeite é quasi inteiramente um parque, parque enorme, principalmente ensorabrado de pinheiros mansos, arruado por entre moitas de giestas, de tojo e de rosmaninho, d'onde rompem, atravessando os caminhos, ao ruído de passos, as abaladas de coelhos. Desde que, sendo os príncipes crianças, a rainha aqui passou com elles alguns dias para os curar de tosse convulsa, nunca mais — creio — tornou o Alfeite a ser habitado por pessoas da familia real, e o palácio é apenas um descanço de caça para as rápidas excursões venatorias de suas altezas, quo nos bons dias de inverno aqui vêm, ás vezes, dar alguns tiros aos coelhos ou ás gallinholas.

Paço Real do Alfeite, Aguarela, Enrique Casanova
Imagem: Cabral Moncada Leilões

A quinta da Princeza, na Amora, que o Sr. D. Augusto recentemente alargou com a compra de terras adjacentes, construindo uma nova e grande casa de habitação no alto chamado de Cheira-ventos, é uma bella propriedade do seculo passado, entrecortada de jardins de murtas, de restos de cascatas, a que cahiram os velhos embrechados, e de antigas escadarias de pedra, hoje desconjuntadas pelos escolrachos e cobertas de musgo. Tem sombras espessas, doces meandros de alameda, platanos magníficos, e á beira da agua que a cingo n'um d'esses longos e contorcidos bracejamentos do Tejo, nos espraiados da margem esquerda, perto da confluência do Coina, um grande lago com as ruinas de tres ilhas, a que cahiram as pontes, a com um viveiro de peixes, separado do Tejo por adufas de represa. N'outra vertente da propriedade, ha vinhedos de optimas castas, comparaveis ás do Lavradio, algumas terras de semeadura e pomares dè larangeiras. Creio, porém, que o infante Sr. D. Augusto não tem por esta quinta predilecção mais vivamente manifesta, que a de seus parentes pelo Alfeite. O palácio de Cheira-ventos, inteiramente deshabitado, acha-se por mobilhar desde que foi concluído, e os ventos do logar, n'uma exposição magnífica sobre Lisboa, sobre a enseada de Seixal e sobre as colunas, acastelladas de Palmella e de Cezimbra, são cheirados apenas por meia duzia de poldros e por tres ou quatro éguas de criação, em pastagem nas terras de Sua Alteza.

Palácio da Quinta da Amora, Cheira-ventos, 1899.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Durante a mocidade de nossos paes, a Cova da Piedade foi celebre pela casa de pasto do antigo Escoveiro, theatro de memoráveis noitadas de amor e de batota.

Botequim de Lisboa no século XIX, Alberto de Sousa, 1924.
Imagem: Museu da Cidade de Lisboa

O pretexto da concurrencia ao Escoveiro era a sua afamada sopa de camarões e os salmonetes, que elle preparava do um modo especial, mettendo-os no forno envoltos n'um papel com manteiga, e servindo-os em sumo de limão, polvilhados de pimenta. Uma belleza! Comidos os salmonetes, armava-se a mesa do monte e muitos dos estroinas celebres da terrível Lisboa de ha trinta annos abancavam ao jogo até o outro dia pela manhã. N'uma noite que lhe deveria ter ficado de memória, o pobre Escoveiro deixou as caçarolas, para ver a jogatina, em que se faziam, paradas de cincoenta moedas, e arriscou de porta um cruzado novo. Cruzado novo foi elle, qua puxou atraz de si para o panno verde, dentro de pouco tempo, toda a linda fortuna que o Escoveiro accumulara om longos annos de sabia economia e de lucrativa gloria culinária. O infortúnio do estalajadeiro destingiu lugubremente na estalagem, e toda clientella — noivados, que por vezes vinham aos sabbados com os padrinhos, os parentes e os convidados celebrar os bodas com um jantar; raparigas alegres, rapazes patuscos, simples burguezes, pacatos amantes da boa mesa, e os próprios batoteiros, — fugiu, como de um lugar sinistro, da assignalada casa do Escoveiro arruinado Ainda hoje, depois de tantos annos, o prédio respectivo, á entrada da estrada de Cezimbra, sempre fechado, de frontaria apalaçada, mas ennegrecida, tem como um ar de desgraça.

Extinto o Escoveiro, veio o José [Joaquim?]dos Melões, e as merendas populares suecederam-se aos jantares e ás ceias da burguezia romântica.

No Lazareto de Lisboa, Joaquim dos Melões, Rafael Bordalo Pinheiro, 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Hoje, o logar é um considerável centro industrial, com uma grande officina da moagem a vapor e quatro fabricas de rolhas, no sitio do Caramujo. Ha abastados agricultores, intelligentes e instruidos, tomando a terra a serio como Pompeu Dias Torres, que amanhece a anoitece a cavallo, e percorre quotidianamente a área de toda a sua lavoura, dirigindo em pessoa as cavas, as mondas, os varejps, as podas, as vindimas, as lagaradas, as cortimentas, todos os serviços emflm da grande lavra; e como Paulo Plantier, que na sua quinta do Pombal fabrica o mais especial vinho branco da região e as mais bellas rosas de todo o paiz, em rosaes de dez mil pés, cingidos de sementeiras preciosas de morangos e de melões da mais fina e delicada selecção horticola.

Além d'estes elementos de actividado o de riqueza local, quasi todas as pequenas casas da população indígena da Piedade são, mais ou menos, restaurantes campestres, com a taberninha á frente, o retiro bucólico ao fundo, com a mesa de jardim debaixo do parreiral ou do aboboreiro, e o terreno para o jogo da malha ou do chinquilho, a um lado da horta. Porque não ha dia lindo, com céu azul, quer de verão, quer de inverno, em que uma alegre burricada ou uma cavalgada impetuosa não passe com os respectivos cavalleiros aguçados de appetite pelo ar vivo do campo, uns ávidos de coelho guizado, de fritura d'ovos e chouriço, e de salada de pimentas, outros sequiosos da frescura de um melão maduro e da espuma vermelha do vinho palhete de Santa Martha ou do S. Simão, sugado pela chupéta ao batoque do casco e decilitrado ao pé da mãi.

Os estudantes e os caíxeiros preferem nas excursões equestres os esgalgados o escancellados cavallos de Cacilhas, aos quaes elles se impõem o dever sagrado de tirar em duas horas de gineta as manhas de uma vida intoira de mortificação e de jejum.

Os mestres d'officios com suas mulheres, os pequenos logistas com as sua. famílias, as coristas do theatro do Recreio ou da Trindade com os músicos ou com os poetas seus amigos, as costureiras e as cocottes com os seus companheiros, optam pelos burrinhos, em cujos albardôes o guarda-pó do cavalleiro, enfunado ao sopro, da brisa, e as bamboloantes botinas da dama, descobertas até o ultimo botão, são logo dopois de montar um começo auspicioso de festança. E na minha qualidade de paizagista eu bemdigo os que continuam a ser pela velha tradição da burricada cacilheira, porque não ha cousa que mais avivente e alegre o macadam poeirento, faiscante de sol, entre os aloés e as oliveiras alvacentas da beira das estradas, do que essas luminosas manchas movediças de guardas-sol brancos, azues e vermelhos, trespassados de sol, por baixo das quaes tremeluz em leves e fugidias pulverisações de prata, a terra solta, ferida pelo choto miudinho dos jericos.

Almada [Cova da Piedade], Uma Burricada, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 14, década de 1900.
Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia da Cova da Piedade, Almada, Câmara Municipal de Almada, 1990, 318 págs.

O burriqueiro de Cacilhas, para o qual me glorio de chamar por um momento a benigna attenção do leitor, não é um ser tão indifferente para a civilisação, quanto á primeira vista poderá parecer. Elle é por educação muscular o melhor dos andarilhos, e seria o mais ligeiro soldado de caçadores. Pela intimidade do seu trato com o burro, adquire, além d'isso, singulares qualidades contagiosas de tenacidade e de resistência, equivalentes á posse de toda uma philosophia. O burro teima com todo o mundo — excepto com o hurriqueiro, porque a experiencia dolorosa e amarga lhe tem demonstrado, que o burriqueiro é mais teimoso que elle. Da classe dos burriqueiros sahiu para a litteratura nacional um eminente escriptor, de cuja obra individual é fácil deduzir a índole da corporação.

Foi tangendo os burros em que pesadamente se transportavam ao vir de Lisboa, que os barrigudos frades de S. Domingos conheceram em Cacilhas a José Agostinho de Macedo, a quem se affeiçoaram, que recolheram, e que por fim educaram como noviço nas escolas da communidade.

Padre José Agostinho de Macedo (1761 - 1831).
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O padre José Agostinho, tirado de traz dos burros, da carreira de Cacilhas á Cova da Piedade, para a carreira das lettras, foi, como se sabe, um dos mais eruditos escriptores e um dos primeiros litteratos do começo d'este século. Mas a profissão que primeiro exerceu, a indole nativa de cavallariceiro e de tangedor de burros, imprimiu-lhe caracter tão indelével, como o da tonsura ou o das ordens sacras.

Em toda a sua obra encyclopedica, no púlpito e no livro, em prosa o em verso, desde o poema épico do Oriente até ao pamphleto da Besta esfolada, orador, poeta, philosopho, critico, elle foi sempre, invariavelmente, inconfundivelmente, essencialente — através de tudo e acima de tudo — o arrieiro.

Ramalho Ortigão (1836 - 1915).
Imagem: Wikipédia

Macedo fez escola, deixou numerosos e imitadores na publicidade portugueza, e é dos escriptores do seu tempo, aquelle talvez de cuja influencia encontram mais vestígios na prosa ontemporanea. No estylo, por exemplo, da controvérsia política, nos jornaes de Lisboa, é palpável a ascendência do macedismo.

Os Vencidos da Vida (com excepção de António Cândido) fotografados por Augusto Bobone em 1889, no jardim da casa do conde de Arnoso, na Rua de S. Domingos à Lapa: marquês de Soveral (Luiz Pinto de Soveral, 1850-1922), Carlos Lima Mayer (1846-1910), conde de Sabugosa (António José de Mello Cezar de Menezes, 1854-1923), Oliveira Martins (1846-1894), Carlos Lobo d’Ávila (1860-1895), Eça (1845-1900), Ramalho Ortigão (1836-1915), Guerra Junqueiro (1850-1923), conde de Arnoso (Bernardo Pinheiro Correia de Mello, 1855-1911) e conde de Ficalho (Francisco Manoel de Mello Breyner, 1837-1903).
Imagem: Lisboa Desaparecida

Mal sabe o burriqueiro, mal sabe o burro de Cacilhas, que é d'elles ambos que procede essa notável corrente da arte applicada á sova entre escriptòres, e tendo por base suggestiva e inicial a incidência combinada, do coice, da arrochada e da cólera fradesca, sobre a litteratura de uma raça!

* Reservando-so o direito de reedição, o auctor d'este artigo roga aos seus confrades da imprensa portuguesa o obséquio de o não transcreverem.

Ramalho Ortigão (1)


(1) Gazeta de Noticias, 7 de dezembro de 1886