sábado, 25 de abril de 2015

Sábado sem Sol

EIS-NOS perante um facto que não pode deixar de nos causar certa alegria: Romeu Correia, um jovem auto-didata cuja experiencia da arte de escrever era quase nula e cuja cultura tem sido adquirida, em ande parte, nas bibliotecas populares da sua terra, publica um volume de contos que é, sob vários aspectos, digno da maior atenção. Na verdade se Romeu Correia produziu obra onde não e difícil apontar erros e deficiências, o certo e que o seu livro é também a demonstração inequívoca de reais qualidades que injustiça seria não destacar.

Sábado sem Sol, 1947, ilustração Fernando Camarinha.
Imagem: Tertúlia Bibliófila

"Consolador" será, talvez, o adjectivo mais apropriado para caracterizar este "Sábado sem Sol". É que, apesar de todos os senões, ele é a prova clara de que estamos perante um jovem escritor que soube encontrar na vida do povo os motivos e a razão dos seus contos; que conhece e sente os ambientes que descreve.

Julgamos não haver, da parte do autor, apenas uma adesão sentimental ou ideológica às vidas que palpitam e sofrem nas páginas do seu livro; mas sim uma identificação do autor com essas vidas — o sentir seus, também, os dramas e as esperanças dessa gente — o que nos parece constituir uma das mais importantes condições para a realização de uma literatura sincera e humana e não uma literatura que seja um mero reflexo do que é moda fazer-se.

Romeu Correia está ainda longe, como e fácil de ver, daquela maturidade artistica e intelectual que lhe permita escrever uma obra sólida e duradoira. Contudo, este seu "Sábado sem Sol" dá-nos a esperança de que talvez isso venha a acontecer. As qualidades nele patentes são razões fortes para assim pensarmos. Os tres melhores contos do volume — "Chegou o carvoeiro ! 

O carvoeiro, Leslie Howard, década de 1930.
Imagem: Museu da Cidade de Almada

Mestra e Novela interrompida" — dizem-nos que o seu autor pode, se souber superar-se por um trabalho sério e constante, vir a escrever obra de valor.

O mesmo não acontece com os outros trabalhos do seu livro, que são, fora de dúvida, de nivel nitidamente inferior ao dos tres atrás citados. Vê-se, através deles, uma fragilidade técnica que os prejudica enormemente, desde a inesperada passagem da terceira para a primeira pessoa, no modo de contar de "Destino. . ." até "O Fogueiro" que mal chega a ser uma crónica a fugir para conto e na qual o desfecho — o aparecimento o filho cadastrado, rico e com uma bela mulher — não tem explicação alguma nem chega a sugerir, com solidez, qualquer hipótese.

Porém, a primeira grande qualidade de Romeu Correia reside na extraordinária habilidade de nos dar um diálogo vivo e natural — coisa que raramente acontece entre os que, como o autor de "Sábado sem Sol", não tem atrás de si uma longa experiencia da arte de escrever. A segunda, o bom aproveitamento de pormenores felizes, o que da aos seus contos a impressão de coisa mais vista do que imaginada. Ora, se e certo que a obra de arte tem de ser criação — e aqui o factor imaginação tem uma inestimável importancia — a verdade é que essa imaginação não terá elementos fecundos e trabalho se não estiver bem assente na observação da realidade. Romeu Correia, ao que nos parece, é senhor de um poder de observação e de um conhecimento dessa realidade que julgamos excelentes. Falta-lhe, talvez, ainda, o poder artístico que lhe permita "recriá-la", de modo a produzir obra que verdadeiramente se possa impor. Romeu Correia está, pois, perante um dilema: ou fica satisfeito com o que fez, ou considera o seu "Sábado sem Sol" como o primeiro passo, balbuciante ainda, o longo e penoso caminho que tem à sua frente. No primeiro caso, nada de inteiramente serio poderá realizar, visto que, apesar das apreciáveis qualidades que nele encontramos, o seu livro está demasiado eivado de imperfeições para que, por si só, possa ter mais do que um momentâneo interesse. No segundo caso — e esta é a única atitude aceitável e a única fecunda — então, sim, tenhamos esperança em Romeu Correia! O artista — o verdadeiro artista — vive em constante insatisfação e em constante desejo de aperfeiçoamento.

Auto de apreensão do livro Sábado Sem Sol, 26 de maio de 1947.
Imagem: Biblioteca da Incrível Almadense

É nesta insatisfação e neste desejo que Romeu Correia poderá encontrar as condições essenciais para se afirmar como escritor. (1)


(1) Costa, Nataniel, MUNDO LITERÁRIO : semanário de crítica e informação literária, científica e artística, Editorial Confluência, 26 de abril de 1947

n.do e.: na mesma edição de Mundo Literário é também publicada poesia de Hélio Quartim.

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