sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Jackass Bay (ou Os ingleses em Cacilhas)

No século XIV, os peregrinos ingleses levantaram, em Cacilhas, a Casa dos Palmeiros, ainda existente em meados de quinhentos e destinada a agasalhar os peregrinos: "Nos tempos passados, escreve o autor quinhentista, vierão a este reyno os ingleses romeiros e chegando a Cacilhas, lugar dalém pegado com o mar, não acharam gasalhado, e vindo a esta cidade acharam a mesma falta.

A entrada em Jerusalém, Giotto (c. 1266 - 1337), c. 1305.
Imagem: The Athenaeum

Espantados muyto de em tão nobre cidade não aver gasalhado para os peregrinos determinarão fazer aas suas custas dous espritaes hum no mesmo lugar de Cacilhas e o outro na cidade". Era o Sprital dos Palmeiros. (1)

O almirante John Leake, comandante da expedição a Málaga em 1704, e cuja base era Lisboa procurou instalar, nesta cidade, um hospital destinado à Marinha de Guerra Inglesa. As negociações, levadas a cabo pelo embaixador inglês, foram difíceis e longas a ponto do almirante se referir, em termos pouco abonatórios, à colaboração, ou falta dela, dos portugueses.

A squadron of the Red lying in the Tagus off the Belem Tower, Lisbon, Peter Monamy (1689-1749).
Imagem: artnet

O que é um facto é que, um ano depois, estava em funcionamento, o hospital identificado como sendo "near Almeida on the south bank of River Tagus", povoação esta que não pode ser outra que Almada. Pese embora as várias diligências efectuadas não foi possfvel conhecer qual a data em que este hospital foi encerrado o que se averiguou foi que, em 1745, o hospital estaria instalado em Lisboa de onde, por determinação régia, teria de sair.

De acordo com o cônsul britânico Charles Compton as freiras do convento que se encontrava nas proximidades do hospital ter-se-iam queixado que haveria perigo de contágio o que teria levado a Coroa a mandar encerrá-lo. De acordo com o cônsul as acusações não tinham qualquer fundamento mas, apesar disso, o cirurgião tinha transferido os doentes para bordo de alguns navios. Em carta de 22 de Março de 1745 o cônsul informa já ter encontrado uma casa adequada à instalação do hospital, mais uma vez na margem Sul do Tejo.

É esse hospital que aparece retratado numa pintura de Noel com o titulo de "A view taken from Lisbon , the english Hospital and the Convento of Almada" de 1793.

Vista norte de Cacilhas. Em primeiro plano ao lado esquerdo, dois marinheiros carregam cestos a partir de uma barcaça, com a inscrição 'JWells Aqua', para o convés de um ferry-boat onde uma mulher e dois homens aguardam. Do lado direito um barco transporta um passageiro abrigado por um dossel e seis remadores. Vista da igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso, do porto e do lugar de Cacilhas. A bandeira inglesa sobre o hospital. Ao fundo, veleiros no rio Tejo.
in British Library 
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Em 1798 Heinrich Friedrick Link [Notas de uma viagem a Portugal e através de França e Espanha] refere a existência, logo abaixo de Almada, no sopé da colina, de um grande hospital inglês para a marinhagem, em especial a das frotas e que ficava junto a um armazém grande de vinhos.

Edward Thornton, 1.° Conde de Cacilhas, c. 1799.
Imagem: Wikipedia

Um dos doentes que foi tratado naquele hospital foi o almirante Francis Beauford, o inventor da ainda em uso escala de ventos, que tendo sido ferido em 28 de Outubro de 1800, aquando da captura do navio espanhol S. José, veio completar a cura em Almada onde, segundo refere, dava grandes passeios pelos arredores. Beauford só veio a largar de Lisboa, findo o tratamento, em 18 de Agosto de 1801. 

Em 15 de Janeiro de 1802 a Gazeta de Lisboa publicava o seguinte anúncio: Terça feira 19 do corrente mês, pelas 10 horas da manhã, na casa da Praça do Comércio se hão de vender em leilão vários restos de medicamentos, instrumentos de cirurgia, camas, lençóis, cobertores e outras pertenças do Hospital da Marinha Britânica, sito no lugar de Cacilhas, aonde se poderão examinar os ditos artigos nos três dias antecedentes à venda; e tanto ali, como na Casa da Praça, se achará a sua relação, e as condições da arrematação. (2)

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O lado sul do Tejo ou Outra Banda [...] consiste numa cadeia de colinas revestidas de vinha que se estendem até Cacilhas, em frente ao Arsenal, onde a margem faz uma curva em direção a sudeste, formando uma baía espaçosa chamada Cova da Piedade, conhecida dos marinheiros ingleses pelo menos eufórico título de "Jackass Bay" [Baía dos Burros]. (3)


Os ingleses em Cacilhas, Os costumes antigos - Portugal de algum dia, ilustração de Roque Gameiro, 1931.
Imagem: Roque Gameiro.org

O Tejo, que lava as fundações a todo o comprimento da cidade, estende-se para o leste numa baía espaçosa chamada Cova da Piedade, e elegantemente pelos marinheiros ingleses, "Jackass Bay", provavelmente devido ao número da raça de orelha comprida que estão constantemente à espera no seu extremo para transportar os visitantes pelo país. (4)

Costa da Caparica, 1907.
Imagem: Delcampe

Um dia, depois do nosso regresso, navegamos o Tejo até Cacilhas, a aldeia no Alemtejo, frente à cidade. O lugar de atracagem tem sido chamado "Jackass Bay" pelos marinheiros ingleses, por causa da multidão de burros e rapazes, clamorosos por emprego, que assaltam os estranhos que lá chegam.

Edward Thornton, 2.° Conde de Cacilhas, 1886.
Imagem: Wikipedia

Montados em burros robustos, subimos até a estação do telégrafo, da qual tivemos a vista panorâmica mais esplêndida de "Lisboa antiga". (5)

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Partiu o comboio ao longo das margens do Tejo, que logo se abriram no amplo lago de esteiros  conhecido pelos marinheiros ingleses como Jackass Bay. (6)

Almada [Cova da Piedade], Uma Burricada, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 14, década de 1900.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Do Portugal de ha século e meio escasseia o documento, e a não juntarem-se agora os elementos fragmentádos, e a não apontarem-se as memórias que sôbrevivem, cerzindo-se umas a outras neste Portugal de algum dia, êsse período tão longínquo, e ainda tão perto da nossa sensibilidade, ficaria impreciso n'uma das suas facêtas mais reverberantes e mais comunicativas. (7)


(1) Mário Martins S. J., Peregrinações e livros de milagres..., Lisboa, ed. Brotéria, 1937
(2) Revista da Armada  nº 459, janeiro de 2012
(3) Joaquim António de Macedo, A guide to Lisbon and its environs..., 1874
(4) The stranger's guide in Lisbon, 1848
(5) William Edward Baxter, The Tagus and the Tiber, 1852
(6) J. Richard Digby Beste, Nowadays; or, Courts, courtiers, churchmen..., 1870
(7) Roque Gameiro/Matos Sequeira, Portugal de algum dia..., 1931

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