terça-feira, 17 de maio de 2016

Fragatas e varinos do Tejo

A proa é, em algumas delas, bem caracterizadamente arqueada, como nos varinos. e até prolongada. no alto por uma ou duas peças maciças emparelhadas de madeira, semelhante à dos barcos de duas proas, que em cima continuam e acentuam a forte arcatura.

Fragata ou varino do Tejo à descarga do sal no cais da Ribeira Nova em Lisboa.
Imagem: Delcampe

Outras fragatas têem a curva da proa quási imperceptível até ser rectilínea, mas, é notável, com aquela peça complementar, simples, mais de permanência construtiva e formal, do que utilitária, embora de serventia.

Fragatas e varinos nas docas e cais do Jardim do Tabaco, em Lisboa, junto a Alfama, c. 1900.
Imagem: Delcampe

A ré, não sendo larga como em outros barcos, nem redonda, procede por curta truncalura de uma popa simétrica da proa. Toda a estrutura obedece a esta hipotética operação. Olhemos para qualquer dessas fragatas, mais arcaicas, ou passem a meio rio, ou encostem aos molhes e varadouros.

Embarcações no rio Tejo, fragata ou varino, Artur Pastor, 1950-1970.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Vejamo-la de perfil. Reconhecemos na proa, humildemente agachada, a carena altiva e provocante dos barcos. de Roma. A curvatura da amurada é suave e harmónicaa . Quando a curva de um bordo ia beijar a curva do outro, para formareom o bico de pôpa o bico da põpa, desceu nela subitamente o fio da guilhotina, e decepou-a [...]

Fragata do Tejo em frente ao cais do Ginjal.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O "Caderno de todos os Barcos do reio tanto de Carga e Transporte como d'Pesca" por João de Souza, Lente d' Arquitcctura Naval e Desenho da Companhia dos Guardas Marinhas, do ultimo quartel do século XVIII [...] é um álbum de vinte estampas com gravuras. que representam os barcos do rio Tejo e os que nele entravam. Dirigiu a obra de gravura Joaquim Carneiro da Silva e executou-a Ramalho [em 1785].

Caderno de todos os barcos do Tejo, Tanto
de Carga e Transporte como d'Pesca, por João de Souza
Lente d'Arquitectura Naval e Desenho da Companhia
de Guarda Marinha

A muitos dêles se refere Baldaque da Silva em seu Livro Estado Actual das Pescas em Portugal (Lisboa. 1908), cap. IX, p. 871-417. Reparando nestes barcos, desenhados por um técnico de arquitectura naval, que teria todo o cuidado profissional e magistral em ser fiel aos modelos, vemos que pertencem a dois sub-tipos de uma só forma fundamental.

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Saveiro da Costa fig. A e do Tejo fig. B
Petits Batiments pêcheurs Ceux de la fig. A
pêchent hors du Tage

Um, o mais próximo da origem e que melhor a exprime. é o do Saveiro da Costa da Caparica, um meia-lua, com as duas pontas aduncas. Outro, mais numeroso, de curva abatida mas pronunciada pelo esguiamente e pelo alçado da proa, tem por exemplar mais esbelto a fragata; os restantes barcos são mais pesados, conservando todavia o ar de comunidade. 


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Fragatas
Fregates, elles servent xxxx les besoins de la Ville

O destino utilitário, as águas e os ventos com que navegavam, a aplicação exclusivamente à navegação fluvial, ou à pesca fora da barra. provocaram diferenciações secundárias e sobretudo variedade intrínseca no velame.

"Barinel", década de 1890.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O iate, de dois mastros com duas velas trapezoidais, latinas, nas caranguejas, e gurupés com duas velas, foi embarcação de carga e recreio; a falua, para passageiros: os barcos de Alcochete, e de Aldeia-Galega, para transporte da lenha; os dos Moinhos, para farinha, dos moleiros da "Outra-Banda" para Lisboa, com dois bastardos; os barcos do Ribatejo, os batéis de água acima, com um bastardo, o último a armar também, como a fragata. com carangueja, e estai, para transporte de provisões, destinadas a Lisboa: a bateira de Porto-Brandão, com "carangueja e estai, para condução de areia; as fragatas, de carga; todos estes barcos velejaram com velame latino [ver artigo dedicado].

Falua atracada num pequeno cais da margem sul.
Imagem: The Tagus Estuary Traditional Boats

Só os barcos cacilheiros, utilizados na carga dos navios, levantaram panos tranversos, de ensacar o vento. Os caíques, os barcos de Sezimbra. da Ericeira, de Cascais, usam dois bastardos, como as lanchas do alto. com duas «caranguejas,. e dois panos no gurupés, para pesca; entram e saem do Tejo. O sàveiro da Costa difere pela vela rectangular. cruzada no mastro único.

Varino de pano bastardo junto ao Cais do Sodré.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A aparelhagem das fragatas, ao que se viu acima, na lista dos barcos, marcava um tipo definido; conjugava no mesmo mastro, único dêstes barcos, e muito à proa, mais ou menos inclinado à vante, a vela da carangueja trapezoidal, suspensa da carangueja. arvorada no mastro, e a vela do estai, triangular, estendida do mastro à proa.

Lisboa — Fragatas no Tejo, ed. Dulia, 26.
Imagem: Delcampe

Nas águas do Tejo, desde então, — e desde quando? — as fragatas velejaram rio abaixo, rio acima, com êste velame, sem remos, de leme seguro [...]

Fragata (à esquerda) e varino (à direita) diante a panorâmica de Alfama, Artur Pastor, 1950-1970.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O varino é a fragata de fundo chato. A fragata e o varino são irmãos de geração diferente:

Varino do Tejo, Artur Pastor, década de 1970.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A fragata está sem dúvida mais longe do modêlo, mas reparemos nela. A proa é alta, em algumas sensivelmente mais alta; em tôdas é alteada pela cabeça da trave mestra, que prolongam a linha média [...]

Lisboa, A Praça do Comercio vista do Tejo, ed. RAN, 106, década de 1950.
Imagem: Delcampe - Oliveira

A fragata e o varino que ainda conservam a decoração tradicional, poderiam adaptar-se à descrição do moliceiro. À frente abrem-se dois painéis divididos ao meio pela aresta da prôa, que em verdade forma um painel único.

Fragatas, Ferreira da Cunha.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A moldura, feita de rosas grandes, folhagem, rosáceas, vai de lado a lado, continuando de bombordo a estibordo, para abranger todo o painel.

Este é pintado de cõr viva, amarelo, azul, verde. ou de branco. Ao centro, de cada face boleada e lisa do diedro da proa, tem uma grande flor, ou ramo de flores recentemente, apresentavam figuras; o nome repete-se de ambos os lados.

Friso de ornatos semelhantcs, floridos e geometrizados em losangos e dentes triangulares, estende-se a tôda a borda anterior da amura da embarcação; cinta de cõr viva cerca-a, fá-la sorrir, cantar, brincar, bailadora como enfeitiçado Maio-Moço, em primeiro de Maio, que dura o ano todo.

Mas a decoração não fica por ai, entra na fragata e à volta da amurada, no poço ou escotilha, bandeiras das portas. matiza a obra interior como fôrro de azulejo policrómico, a lembrar as guarnições artísticas dos mosaicos romanos em tanques de "balneum" ou de "impluvium" de "villa" rica e das taças azulejadas de pátio arábico. 

Harmônicamenle composta, deduzida e colorida, a decoração das fragatas é opulenta. São porém poucas já as que mantêem esta decoração brilhante. Valia bem, para beleza do rio e pitoresco da cidade, por iluminura de velho códice desenrolado no Tejo, que se conservasse e estendesse até com estímulo êste espécime precioso da nossa arte popular marítima ou aquática.

Tais ornatos, ricos nas fragatas, mais variados espontâneos nos moliceiros, mais humildes nos sàveiros (uma silva, flores, vasos com cravos, dentro de moldura própria ou da que a pintura do casco deixa à proa e à ré), derivam das pinturas nos flancos e nos extremos dos barcos romanos, com o nome dêles, figuras decorativas, para os distinguir uns dos outros, e dar-lhes beleza.

Embarcações de carga no estuário do Tejo junto à Ribeira Nova, Cais do Sodré, 1919.
Imagem: iolanda andrade, Do Belo e Vasto Porto de Lisboa

Imagens, divisas, legendas (como Vamos com Deus. Valha-nos Deus. Fé em Deus. etc.), correspondem às pinturas e esculturas, que à vante representavam a pessoa ou objecto, causador do nome do barco (insignia). e à figura, que na ré imaginava a divindade protectora (tutella) do navio e da equipagem. que o tripulava.

Fragatas no rio Tejo, António Passaporte.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Outra classe ornamental de fragatas, semelhante ao que se dá com a maior parte dos barcos de pesca e de tráfego, recebe pintura em faixas horizontais de côres vivas, em que domina o vermelho. Por fim nem pintadas são pintadas são; ficou  apenas a forma.

Fragatas no cais, Armando Serôdio, 1966.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Como nos caíques, nas canoas do alto, de Lisboa, Sezimbra, Setúbal costa abaixo até o Algarve, e no calão desta província, e nas faluas do Tejo e também na fragata pintaram os olhos, pelos quais, ser vivo que ele era, o barco romano via desviava dos escolhos.

Vi, há anos, uma fragata com os dois olhos a pequena distância da aresta da proa; sobrancelhas, formadas de arco simples, e por cima dêle uma linha quebrada em largos dentes, pareciam limosas, próprias de olhos de divindades marinhas; a aresta avultava o nariz, com as narinas. indicadas quási sôbre a linha de água. Mais nada; friso de losangos e cruzes compunha a faixa envolvente, polictómica, do barco.

Fragatas no cais da Ribeira Nova.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O olho do barco de Ulisses repetiu-se, e continuou-se nos barcos da nossa terra, a espreitar os perigos da água. 

Se a proa perde a pouco e pouco o boleado elegante, e fica rectillnea, quási a prumo, ainda o aplustre, hirto e contínuo como poste ou cabeço grande, ímpar, maior que os outros, lhe prolonga a linha. Os outros barcos tinham essa disposição e conservam-na; a fragata degenerou de si, quando a adoptou, e deixou por isso o perfil adunco da aplustre de duas peças deslisantes entre si. 

Botes, fragatas e varinos e as diferentes formas de prôa, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Encontra-se caracteristicamente expressivo ao que chamaremos o tipo A, o mais arcaico, desenhado na aguarela de Leonel Cardoso, que ilustra êste ensaio: tão expressivo como nos modelos afins, nos saveiros e meias-luas. É tipo do varino, de fundo chato, o modêlo de "moliceiro" do Tejo [...]

Lisboa,  Fragatas [e/ou varinos] e Frota Bacalhoeira no Rio Tejo, ed. Passaporte, 195.
Imagens: Delcampe

O tipo B das fragatas fonnam-no as que teem o tipo mais frouxo, com a linha da proa menos redonda, e o apl~fTe direito. São menos "varinos". Predomina a pintura do painel da proa com as côres claras e lisas, uniformes, sem decoração. Também interiormente lhes faltam ornatos. Algumas limitam-se à pintura das arestas, molduras e salientes, de verde e encarnado. 

Nas de tipo A, bem pintadas e de colorido vivo e quente, é curioso notar os ecos da côr ou faúlhas da iluminação ornamental por tôda a parte: nas cabeças, nos cadernais, nos «vaus», na cana do leme, no mastro, as faixas ascendentes, sobrepostas.

Em certos exemplares, o conjunto surpreendente desta incandescência faz da fragata uma girândola de festa. O tipo C das fragatas compreende as que já se confundiram com outros barcos, na construção e na decoração. A proa endireitou. embora termine pelo hirto poste do aplustre. Não tem decorações. 

Com êste tipo, a fragata chegou ao extrêmo utilitarismo, sem nenhuma graça, que lhe dê espiritualidade, e prenda simpatias. O contraste é de tal forma grande, entre os melhores exemplares do tipo A e os melhores do tipo C, que o primeiro é o sol das fragatas, e o segundo a noite sem estrelas. 

As duas velas é que são as mesmas em todos os tipos dns íragatas e dos varinos; — a vela da carangueja, latino cortado em trapêzio rectângulo largo e alto, no mastro caracterizadamcnte alto, vai do mastro à carangueja e prende à ré (o velum romano correspondente ao pano latino por excelência); — e a vela do estai, triangular, estende-se da talha do estai, àvante do mastro, com o estai que prende na proa. Com êste aparelho navegam no Tejo, muito veleiras, a todo o vento, ora atravessando o rio, ora subindo-o e descendo-o, no tráfego diário.

Cisnes no rio Tejo, Artur Pastor.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Quando o temporal cai sôbre o estuário, então é que é vê-las juntas, aconchegadas umas com as outras, nas docas de abrigo. É a melhor ocasião de as surpreender na sua beleza casta e recolhida. 

Fragatas na doca da alfandega, Joshua Benoliel.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Melhor se lhes compreende a evolução artística e construtiva, por, assim reünidas em massa, lado a lado, poderem diferenciar-se umas das outrns. Gaivotas em terra e fragatas nos refúgios, sinal é de borrasca.

Fragatas imobilizadas em virtude da greve dos fragateiros, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Uma vantagem de sugestão histórica e artística tem ela pelo menos: a parada galante das fragatas. Lisboa deve rever-se com orgulho nas suas fragatas ornamentadas, jóias do Tejo, e protegê-las como tem de se fazer por bem ao traje regional. E elas merecem-no. (1)


(1) Revista Municipal, n.° 10, Lisboa, 1941

Artigos relacionados:
Todos os barcos do Tejo
Marinha do Tejo


Informação adicional:
Carlos Mateus de Carvalho, Memórias de fragateiros, As embarcações tradicionais do rio Tejo
The Tagus Estuary Traditional Boats

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