sábado, 19 de setembro de 2020

A filha do povo — 1486 (III de IV)

No longo, obscuro e tormentoso periodo de quasi dez seculos que fórma a idade média, constantemente, se pelejou uma lucta encarniçada entre os varios elementos constitutivos da sociedade europea. 

O feudalismo, a theocracia, a democracia e a realeza, tomando va-riadas fórmas, debateram-se, triumpharam, successiva e momentaneamente uns sobre os outros, e dcsfalleceram para tornar a surgir, trium-pbar e desfallecer. 

Estas tentativas de organisação social, todas grandiosas e mais ou menos fundadas no espírito do homem e nas circunstancias do tempo, abortaram, ora pelo seu exclusivismo, ora pela extincção do proprio fundamento, ora, finalmente, porque obstavam á civilisação que do reciproco attrito de todas começava a raiar.

Áquem do facto, momentoso por si e sobre tudo pelos seus effeitos, que separa os tempos modernos dos da meia idade, a lucta continuou até hoje; mas em períodos mais vastos, mais definidos, ou antes com luz mais intensa sobre elles, que n'ol-os deixa ver mais em relevo e côres mais vivas. 

Pereceram quasi de todo já o feudalismo e a theocracia; os estremecimentos que, de quando em quando, ainda lhes senlimos são os arrancos do moribundo. Tentar dar-lhes vida é emprehender uma resurreição, o que só compete ao espírito de Deus e não ao do homem. Extinguir-lhes antes os raros bafejos d'ella que ainda conservarem: é poupar-lhes soffrimentos, é alliviar a humanidade d'esse espectaculo de receios e dôr.

Agora luctam ainda, n'um ou n'outro ponto, a realeza, que julga vigorosos os moribundos e por elles illudida, pois os sente ainda es-trebuxar por toda a parte, e a democrncia que aspira á liberdade e ao progresso. Ba de finalisar-se esta peleja, e hão de os contendores, dando um abraço de fraternidade e paz, conhecerem que está no seu amor reciproco o conseguimento da pacificação e do mais facil era-pido desenvolvimento da sociedade humana.

Ora ao sair da idade média, na segunda metade do seculo quinze, a realeza alliara·se com o povo para destruir o seu maior inimigo, aquelle que mais de perto a offuscava e affrontava.


Os dois alliados davam então no feudalismo o mais terrivel golpe, o que o prostraria no solo, e de que não mais se havia de levantar. Predominava este facto por toda a Europa.

Henrique VII na Inglaterra, Maximiliano na Atlemanha, Luiz XI na França, Fernando e lzabel na Hespanha e João nem Portugal eram os athletas reaes n'aquella peleja, em que os populares foram illudi-dos e espoliados, e de que só victoriosos e preponderantes saf ram os sceptros.

Foi D. João II dos mais terriveis contendores: o seu panegyrista, sem querer mesmo, retingir-lhe de sangue, assombreou-lhe de terror muitas paginas da Chronica.

Com sua vontade ferrea immolou sem piedade os nobres mais altivos e poderosos que receiava lhe fizessem estremecer o throno.

Atravez dos seculos e das paginas da historia, ainda hoje divisamos o pavor, que infundia na classe, por tão largo tempo, rival dos reis e oppressora dos povos, o olhar de João II.

Não devem pois maravilhar as hesitações e receios do filho do conde de Caminha. Apenas chegado a Lisboa, viu elle quanto eram justas; prenderam·n'o e conduziram-n'o a um carcere do Limoeiro, já então convertido em prisão real.

São passados quinze dias que ali jaz.

Eil'o pallido, magro e enfraquecido; sentado junto de um bofete, n'uma cadeira d'espaldar de lavor simples. Á primeira vista não parece o mesmo; desfigurou-o a tortura, esse meio hediondo e cruel que a justiça antiga empregava para descobrir a verdade. Dilacerou-Jbe os membros, rasgou-lhe as carnes, infligiu-lhe as dõres mais vivas, e conseguiu apenas ouvir ao cavalleiro reiterados protestos de innocencia.

Proximo a D. Alvaro, de joelhos, sobre um coxim de panno escuro, os cotovellos apoiados na cadeira e uma das mãos de Sotto-Maior, meigamente, apertada entre as suas, está Maria, triste, mas acariciadora, empregando todo o amor e ternura que lhe transparecem nos olhos formosissimos em confortar o cavalleiro, em lhe inspirar resignação, em distrahil-o de seus dolorosos soffrimentos do corpo e do espírito.

Não foi possível retel-a na sua casa d'Almada; penetrou no paço quasi escusamente, lançou-se aos pés do monarcha e disse-lhe que a neta de um dos mais honrados procuradores do povo, durante os tres reinados anteriores, lhe rogava ir encerrar-se na prisão com o misero cavalleiro seu noivo. Tantas foram as supplicas e as lagrimas que se apiedou o rei... é que tinha coração para os infelizes o filho de A ffonso V. 

View of Lisbon.
Convento de S. Paulo e do Castelo de Almada no séc. xviii, autor desconecido, séc. xix.
Museu de Lisboa (MC.DES.1141)


Um dos letrados da casa da Supplicação, com o seu rosto pallido e a sua garnacha escura, estava defronte dos dois amantes. 

Eram os jurisconsultos, que ajudavam e impelliam os reis na sua obra; as leis da antiga e da moderna Roma serviam-lhes de aríete para destruirem a nobreza e enthronisarem o absolutismo. 

— Senhor D. Alvaro, dizia o doutor, n'esla nobilíssima, porém mais que todas pungidora missão de administrar a justiça, jámais me hei sentido affiicto, como no caso que vos diz respeito. Foram empregados debalde todos os meios para descobrir se vós ereis ou não conspirador. João Dagualda porfia em accusar-vos como tal. As vossas relações com o duque de Vizeu e o bispo de Evora, com D. Fernando de Menezes e D. Pedro de Athaide, já todos mortos por justiça de el-rei, — e aqui o doutor fez uma profunda mesura, — e principalmente a vossa ida a Castella são as unicas provas de que tinheis o intento, que vos attribuem, de matar o senhor D. João. — e de novo curvou a fronte, — rei pelo voto dos concelhos, rei principalmente por direito divino.  

IOANNES QVARTVS PORTVGALIAE REX
Kunsthistorisches Museum

— Já a isso respondi cabalmente, doutor, disse o cavalleiro com voz desfallecida. Tinha relações com esses infelizes que Deus tem, porque eram da minha classe, porque estivera com elles nos campos de batalha, porque os encontrava todos os dias nos paços de el-rei. Fui a Caslella, porque tenho lá casa e parentes, porque negocios de familia me chamavam lá. 

— Hoje assim o creio, senhor cavalleiro; os juízes porém da Supplicação não estão conformes ainda todos, e sua alteza o senhor D. João II, outras mesuras a quem sabeis, todos estes feitos são presentes, e de cuja vontade depende sobre tudo a sentença, porque a lei e o querer de Deus; e o querer de Deus é o querer do principe, está de tal modo decidido a manter como lhe compete, o poder da corôa. e a defender este reino contra os conloios de Castella, que, sinceramente, muito vos receio pela vida.

Maria estremeceu, e o seu alvo rosto tin~iu-se d'aquella cór ama-rello-escuro que dá a melancholia profunda e prolongada ou o medo grande. A D. Alvaro não se lhe agitou um musculo, e respondeu no seu primeiro tom:

— Faça-se a vontade da Virgem Mãi de Deus!

— E depois nós os homens de justiça, continuou o doutor, não sabemos explicar aquella contumacia de João Dagualda, antigo servidor dos vossos, em accusar-vos como traidor, e cm querer mal á bclla e santa menina que ahi tendes. O haverdes-lhe fustigado as faces não é sufficiente causa para n'um homem da sua condição arreigar tama· nho odio. De provardes ou não sua calumnia suspensa vos está a vida. E como havemos declarai-a tal não o sabemos nós.
 

— Sei eu! disse Maria, — levantando·se de um salto, as faces affogueadas, os olhos faiscantes, — sei-o eu, e não o disse já, porque me vexava, porque Alvaro ordenou-me que vol-o occultasse, porque pensei que ereis mais providentes, julguei que a cegueira da justiça era em quanto á condição dos réos para a todos applicar igualmente a lei, e que lhe era facil, na sua perspicacia e rectidão, descriminar o bem do mal, o innocente do criminoso, descobrir com todos os seus immensos meios de sciencia e dinheiro aonde a verdade, aonde a calumnia! Mas enganei-me, e, visto que a vida de Alvaro depende d'essa revelação, hei de desobedecer-lhe, tudo direi a el-rei; direi por que o servo abjecto e vil me quer mal, e como sabe, que, se Alvaro morrer, eu morrerei lambem, por isso quer leval-o ao cadafalso. Mas não ha de ir. O cavalleiro e eu, — disse com voz inspirada, — temos por egide a protecção da Virgem; disseram-me que el-rei é tambem devoto da Mãi de Deus: irei fallar-lhe em seu nome, e em nome de todo o povo de Portugal; irei dizer-lhe que o sangue do innocente, espadanando-lhe para a corôa, lhe ha de marear o brilho, mostrar-lhe-hei que os direitos dos populares não se sustentam, sacrificando-lha o justo, dir-lhe-hei que a independencia portugueza tem por si o coração de todos os portuguezes, e que nada podem as ambições de Isabel, a castelhana, contra um povo forte do seu direito; dir-lhe-hei finalmente, o que tiver sobre o coração 1 Vinde pois, doutor 1 levai-me aos paços do rei de Portugal, aos paços. d'aquelle que, segundo vós dizei11~ administra n'esta nossa terra a justiça de Deus!

E radiante de enthusiasmo, de inspiração, de insania talvez, Maria travou do jurisconsulto e lêvou-o apoz si para fóra do carcere.

Coimbra, Março do 1862. 



(1) Revista Contemporânea de Portugal e Brazil n.° 3, 1862

Informação relacionada:
Necrologia de José de Souza e Mello
Pedro Alvarez de Sotomaior, conde de Camiña

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