terça-feira, 1 de setembro de 2020

A filha do povo — 1486 (I de IV)

Bellos arraiaes d'Almada! Sois em noites estivas, quando não sopra com violencia a ventania do norte, o regosijo d'aquellas formosas filhas da margem esquerda do Tejo. Formosas sim, que ainda as não vi tanto e em tão grande numero em outro algum logar!
 
View of Lisbon (detalhe).
Castelo de Almada no séc. xviii, autor desconecido, séc. xix.
Museu de Lisboa (MC.DES.1141)

E ali perpassam, á palida luz das lanternas festivaes, dezenas e dezenas d'ellas; todas moças, alegres, lindas e trajadas com simples e encantadora elegancia.

São reuniões aquellas, como de familia: todos se conhecem, fallam e tratam intimamente. É vasto o salão, e sublima-lhe o tecto a abobada amplíssima do céo; ora escuro e recamado de eslrellas rutilantes, ora azul e explendidamente illuminado pelo brilho suavíssimo da lua.

Amo os arraiaes d' Almada! Gosto de ver todas aquellas raparigas, pavoneando-se ao mesmo tempo modestas e vaidosas, gosando do ar puríssimo da villa, embriagando-se no doce amor da juventude. 

Pois não sabeis, lindas, que o mesmo solo, que tão descuidadamente pizaes, foi, ha mais de tres seculos e meio, scenario de amo-res tão puros como os vossos; porém mais ardentes e mais contrriados do que são por certo os que boje tendes. 

Era por uma noite de lua cheia do mez de agosto de 1486. 

Nunca de nuvens fôra tão limpo o céo, nem tão luzido o luar; similhava uma noite dos tropicos, em que a rainha aerea brilha mais do que o sol de inverno cm terras europeas. 

N'aquelle pequeno adro do convento de S. Paulo dos dominicos de Almada batia a lua em chapa. De junto á cruz de pedra, que se le-vanta no meio, via-se ao lado a simples casa religiosa; lá ao longe a linha escura e longa das casarias de Lisboa; mais longe ainda a serra de Palmella; mais proximo um mar de prata, que scintillava e' bramia, correndo para o oceano; e, então, mui perto já, mas na frente e do outro lado, o castello d'Almada e as habitações da villa.

View of Lisbon (detalhe).
Convento de S. Paulo em Almada no séc. xviii, autor desconecido, séc. xix.
Museu de Lisboa (MC.DES.1141)

E era uma noite linda, e, para mais augmentar o encanto da natureza, o orgão da egreja e o cantar dos frades vinham povoar o espaço com as harmonias magestosas dos canticos sagrados.

Ha nas mesmas fórmas externas do catholicisrno uma poesia divina, que as mais das vezes dá uncção e sublimidade a tudo. 

Junlo á cruz estava sentada uma esbelta menina, vestida de branco, e preso na cabeça um véo preto que lhe descaia donairoso sobre as costas. A alvura do seu rosto quasi que excedia á do vestido; não se divisava porém se eram bcllas as feições, porque estava como occulta na penumbra do cruzeiro. De quando em quando voltava a fronte na direção da porta do templo. 

Havia alguns minutos que assim estava como em expectativa, quando saiu da igreja um moço cavalleiro, muito conhecido n'aquelles sitios, D. Alvaro de Sotto Maior; nobre de nascimento e mais nobre ainda pela gentileza do seu porte, pelo seu valor muitas vezes provado, pelos sentimentos elevados de sua alma.

— Então rezaste, Alvaro? — disse com voz melodiosa o vulto branco, levantando-se e indo para o mancebo. 

— Rezei! Sinto n'alma doce consolação, prazer ineffavel, quando ajoelho ante a imagem da Santa Virgem e lhe peço por ti, Maria; e lhe imploro que te dê felicidade junto de mim, que t'a conceda por intermedio meu. 

— Nem de ti me póde vir senão felicidade, meu Alvaro. Mas senti agora grande pena de não te acompanhar á egreja. 

— Pezou-me tambem a mim ... Que pela nave do templo havia apeuas tres ou quatro vultos de devotos, bons velhos, affeiçoados nossos; mas o côro estava cheio de frades... se te vissem entrar comigo sósinha, e a estas horas, o que diriam ámanhã por toda a villa em suas murmurações?
 
— Foi melhor assim. Eu esperei, e tu foste prostarte junto do altar illuminado da Mãe de Deus. — Já que nos roubaram a nossa imagem de tanta uncção e milagre...

— Olvida essa que te fará entristecer... a da egreja, com o seu rosto entre as luzes e as flôres, brilhava com um fulgor mysterioso que me penetrou no coração. Olha, Maria, nós os homens, moços ainda sobretudo, levados, como de roldão, entre o ruido e paixões que nos apresenta o mundo, que nos entreteem e occupam inteiramente, olvidamos um pouco, olvidamos demasiado aquella devoção, aquella fé, que a mãe e a família nos infundem em creança. Eu sou como todos. Esqueci o nome dos innumeraveis santos a que minha mãe de joelhos e mãos postas me fazia rezar á noute, esqueci aquellas orações, cujas palavras, machinalmente, repetia sem entender. Hoje apenas sei rezar á Virgem, e de todas aquellas preces só gravada em meu coração ficou a Ave Maria. 

— E essa basta se a disseres com verdadeira fé. 

— Digo. Sinto-me sempre outro, mais forte, invulneravel quasi depois de implorar o soccorro da Virgem: tento as maiores emprezas, sou temerario mesmo. Tenho inabalavel crença de que ha de chamar em meu auxilio a protecção de Deus. No céo, entre os santos, não tenho, nem quero senão a Ella; na terra, só a ti possuo, e só te quero a ti, Maria. Tu que apesar de pobre e filha do povo, és mais, vales muito mais do que essas da minha classe, que tumulluam nos salões de D. João ii; tu, que me tens guiado na quadra procellosa, que vae passando para os. da minha stirpe, que me tens affastado, com o teu amor, d'essas conspirações todas infelizes e sanguinarias dos nobres contra o poder fatal da corôa, que nos vae cerceando os privilegios, mas engrandecendo com elles a nação; tu que me ensinaste, mais pelo coração do que pela palavra, a pospôr o interesse individual e da minha classe ao hem geral da patria portugueza; tu, pois, que te abandonaste a mim de corpo e alma, que inteiramente confiaste na minha honra; tu serás minha esposa. 

— Vossa esposa! nunca! — Gritou um vulto negro que se levantou de traz do parapeito que rodeia o adro. — Nunca! pois que o filho de D. Pedro Alvaro de Sotto-Maior, visconde de Tuy e conde de Caminha, jámais deshonrará o seu nome illustre ha quatro seculos, alliando-se com a filha de um villão!... [o personagem do conto baseia-se em Alvaro de Sotomayor y Távora, 2º conde de Caminha, sobrinho de Lourenço Pires de Tavora, 1º senhor do morgado de Caparica]

— Villão ruim de sangue e sentimentos é esse que me falla! — Clamou o cavalleiro, endireitando-se para o vulto. 

— Quem vos falla, senhor D. Alvaro, é João Dagualda, escudeiro, que foi, de vosso honrado pai, que viveu vinte annos no seio da vossa família, que foi estimado por todos os vossos, e que muitas vezes por elles arriscou a vida.

— Menos quando na batalha de Touro deixou meu pae no campo estendido entre os feridos, e se passou para as bandeiras de Izabel e de Fernando; nem quando acintosameote anda a buscar ensejo de insultar e affrontar as pessoas que estimo e que respeito. 

— Enganaram vossa mercê; foi o senhor conde quem me enviou a Izabel de Castella; o senhor conde, que depois me recommendou á hora da morte, que vos advertisse da bonra do seu nome, para que o não conspurcasseis com o da família d'essa mulher, que, apesar de ser então ainda quasi infante, já amareis, com o d'essa familia que me tem calumniado, que vos tem feito esquecer a vossa verdadeira patria e os interesses, isenções e tymbes da classe a que pertenceis, d'essa família vil e refalsada... 

Ao escutar estas palavras, D. Alvaro estremeceu, levantou rapidamente uma vara flexivel, como um vime, que tinha na destra, e verberou com ella o rosto de João Dagualda. 

Travou este de um punhal que trazia no cinto; mas, vendo Sotto Maior levar a mão á espada, saltou sobre o parapeito e d'ahi para as terras contiguas, bradando: 

— Tu me pagarás, Alvaro de Caminha. 

E desappareceu.

View of Lisbon.
Convento de S. Paulo e do Castelo de Almada no séc. xviii, autor desconecido, séc. xix.
Museu de Lisboa (MC.DES.1141)

A menina de branco tinha caído quasi desfallecida sobre os degráos do cruzeiro. O cavalheiro enclinou-se para ella, dizendo: 

— Perdoa, Maria!

— A Virgem sabe se não lhe perdoei já! — disse meiga, mas dolorosamente a donzella. Porém, voltemos para casa; o luar, que me parecia tão lindo ha pouco, enegrece-me agora o coração.

Coimbra, Março do 1862. 



(1) Revista Contemporânea de Portugal e Brazil n.° 3, 1862

Informação relacionada:
Necrologia de José de Souza e Mello
Pedro Alvarez de Sotomaior, conde de Camiña

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