Pátio do Prior, Júlio Diniz, década de 1950. Imagem: Visita Virtual Rotas de Almada |
Corriam os tempos impetuosos para a politica em que Cabral governava absoluto e tirânico e os partidos monárquicos agitavam-se convulsionados.
Saldanha, que era contrário à politica daquele João Franco doutras eras, fora a Almada, afim de preparar com os seus amigos e influentes, uma manifestação popular, em harmonia com as suas ideias e princípios.
Agitaram-se as multidões, houve quase lutas com os partidos oposicionistas, quando alguém se lembrou de ir com os seus partidos pedir a Cabralista para acompanhar a manifestacão.
Esta, obedecendo à politica interna dos seus influentes, negou-se, mas à noite, como se visse coagida por outros elementos, apareceu a tocar na antiga praça ou largo de Almada, hoje praca de Camões.
Almada, rua Direita, década de 1890. Imagem: Hemeroteca Digital |
Assim que começou tocando, houve grande tumulto, choveram as pedras sobre os executantes, e a música teve de fugir, acabando os sócios com a Cabralista, pouco depois, para evitar novos dissabores.
Dois anos se passaram e, em princípios, de 1848, diversos rapazes principiaram a falar em fundar uma sociedade musical, mas lutavam com falta de dinheiro. Compraram uma cautela de sociedade, saiu com o mesmo dinheiro e com este compraram outra que saiu branca. Começaram então a cotizar-se semanalmente e foram fazendo o pé de meia, até que em 1 de Outubro, inauguraram uma sociedade musical. Faltava o titulo e uma vez, em converse, um dos assistentes mais cepticos disse:
— Uma sociedade em Almada?! Não vai avante!... Era uma coisa incrível!....
— Pois há-de ser esse o titulo — respondeu um dos seus fundadores. Fica sendo a Incrivel Almadense!
Sociedade Filarmónica Incrível Almadense. Imagem: Restos de Colecção |
E com este nome ficou até o presente. Foi seu primeiro regente o mestre da banda de Caçadores 5, sr. Pavia, que criando amor a sociedade, em pouco tempo a tomou florescente. Os partidários e influentes politicos da terra, como quisessem servir-se dela para fins eleiçoeiros, e como fossem banidos, porque a politica tinha sido posta de parte desde a sua fundação, reuniram-se e deliberaram formar em Cacilhas uma outra sociedade, o que fizeram, intimando os seus operários a deixarem a Incrível, sob pena de despedimento das suas oficinas e obrigando-os a entrarem na Cacilheira.
Foi um golpe quase de morte para a Incrível. Ficaram apenas com 11 sócios, sendo 7 da música e 4 contribuintes...
Quando todos esperavam vê-la morrer, aparece, mesmo doente, o mestre Pavia que enche os lugares vagos de rapazes, ensina-lhes música, ensaia-os, e, num domingo de Ramos, quando na procissão devia aparecer pela primeira vez em público a banda Cacilheira, aparece de repente a Incrível, com fardamenfos novos comprados a expensas do seu mestre, tocando e desafiando, com mocidade e amor próprio dos executantes, os transfugas que a queriam aniquilar. Mas para chegar a esse ponto o que não custou!... Havia da parte desses 7 homens, que se tinham mantido fiéis, abnegação de não arriar a bandeira da Incrível; e, para iludir a toda a gente, davam ensaios à noite, tocando instrumentos diversos, fazendo barulho, enquanto os rapazes não sabiam solfejar!...
Banda da Incrível Almadense, c. 1894 - 1896. Imagem: Restos de Colecção |
E venceram. Até que um dia, a Sociedade dos ricos, a de Cacilhas, morreu pela falta de capricho, pois que só fora fundada com intuitos malévolos. Os músicos e sócios que então a tinham abandonado, forçados pela ameaça, tornaram a entrar novamente na sua Incrível, mas desta vez para sempre com firmeza e dignidade.
Vinte e dois anos depois, uma nova cisão se dá na banda. Saem sócios executantes também e funda-se em Almada, desses elementos dissidentes, a Academia Instrução e Recreio Familiar Almadense, que actualmente conta 30 anos de existência.
E nesta data que a Incrível começa a ser apelidada pela Sociedade Velha, enquanto que a Academia é conhecida pela Sociedade Nova. (1)
[...] por volta de 1894 (tinha José Maria de Oliveira 41 anos de idade), um conflito que originou uma cisão entre os associados da Incrível Almadense. Mas explica-se porquê:
José Maria de Oliveira (1853 - 1898). Imagem: Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada |
O nosso biografado e outros incríveis opinavam pela obtenção de um novo edifício para sede social da colectividade. As instalações utilizadas há anos eram exíguas para novos e urgentes empreendimentos. Havia um prédio que interessava. Mas esse edifício era igualmente disputado pela direcção da Cooperativa Almadense (esta fundada em 1891). E quando José Maria de Oliveira. que tinha o prédio apalavrado com o proprietário em nome da Incrível, se dirigiu com o dinheiro para efectuar a transacção, verificou que o edifício pertencia já à Cooperativa, constituida, na sua maioria, por associados da Incrível...
Após a tradicional procissão da Senhora do Bom-Sucesso, em Cacilhas. a 1 de Novembro de 1894, José Maria de Oliveira e outros associados da velha colectividade, uma vez cumpridos todos os compromissos assumidos perante a banda musical, abandonaram a Incrível.
Daqui resultou a fundação da Academia de Instrução e Recreio Familiar AImadense. Assim, a 27 de Março do ano seguinte (cinco meses depois), nascia em Almada uma nova e importante colectividade [...]
Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense. Imagem: A.I.R.F.A. |
Quando a banda da Academia saiu pela primeira vez [22 de março de 1896] e foi cumprimentar a congénere mais velha encontrou todas as janelas e portas cerradas.
Banda da Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense, 1925 Imagem: Restos de Colecção |
Edifício sede da Incrível Almadense — Sede da colectividade situada na avenida Gomes Neto (actual av. Heliodoro Salgado), fazia esquina com a actual rua Carvalho Serra, em 1898.Este corte de relações iria durar 53 anos. A reconciliação das duas colectividades teve lugar no dia 1 de Outubro de 1948, ano do Centenário da Incrível. (2)
Edifício sede da Incrível Almadense e habitação de José Carlos de Melo de 1938 a 1959.
Imagem: Castanheira, Alexandre, Romeu Correia, Memória Viva de Almada
Almada, Edifício do Cine Teatro Incrível Almadense, Mário Novais,1946. Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian |
A aula de mestre Damião era um cubículo da velha Incrível, lugar dos armários do arquivo da Banda, anexo ao bulhento gabinete da Direcção. As terças e sábados. o septuagenario subia a escada no seu passo alquebrado, estacionando no primeiro patamar, a renovar fôlego para trepar os restantes degraus. Raramente faltava. E, quando o rapazio pressentia que passavam alguns minutos da hora marcada, repetia logo: "O velhadas está pior da quebradura!".
Banda da Incrível Almadense com o maestro Manuel da Silva Dionísio, nas comemorações do 100º aniversário, em 1948. Imagem: Restos de Colecção |
Era magro, afilado, guedelhas brancas e olhar vivo. Arrastava uma perna, dava saliência as ancas, curvava o tronco adiante da linha dos pés. Desprovido de abalos e de conforto. aparecia, em muitas noites de chuva, encharcado, triste de figura, a ponto de provocar compaixão aos rapazes. Residia na Rua da Judiaria, num vago casebre, onde reunia, numa balbúrdia de pocilga, os seus parcos tarecos caseiros com a tralha do ofício. O banco de carpinteiro servia muitas vezes de mesa de cozinha, de refeitório, de cabide para roupas — e era lá que lia também o jornal e tratava da gaiola do pássaro. Vivia rodeado de recordações: fotografias e programas encaixilhados, suspensos das paredes-relíquias amarelecidas. Enviuvara há muito. Filhos, perdera-os tambem na voragem do tempo. Restava a sua arte, a menina dos seus olhos, a paixão de uma vida toda: a Música.
A ela dedicara o melhor do seu entusiasmo, todo o seu vigor. A Incrível tinha-o desde catraio. Quase medrara sob os seus tectos. Seu pai, executante da Banda, logo o metera ao solfejo, antes de as suas maos manobrarem a plaina e o formão. Durante largos anos, cumpriu a tradição da familia. Foi contramestre, director da Banda, e ocupou numerosos cargos no quadro directivo da colectividade. Mas, mais do que tudo isto um motivo havia que o tornara venerávei no meio associativo: ser o único sobrevivente da famigerada cisão — a rixa que originara a fundação da Outra. Damião fora dos teimosos, dos poucos do finca-pé ao Zé Maria d'Oliveira e quejandos. Dias heroicos, inesquecíveis!
Desfalcada, sem recursos, a colectividade estivera prestes a soçobrar. Meses de comédia, de vida artificial— mesmo depois de a Academia surgir pelas ruas, com pessoal fardado e a tocar. Debelada a crise, regressados alguns desavindos, novos candidatos preencheram a proposta... E a vida associativa serenou.
Morreram companheiros, amigos, discípulos. Melhoraram-se instalações, ampliaram-se beneficios — caprichando-se sempre por fazer mais do que na Outra. Grupo cénico, escola de músisa, orfeão, concertos, arraiais, passeios terrestres e marítimos — assinalavam actividades memoráveis. O cunho familiar predominava no espirito de associação. E, embora as relações entre as rivais fossem tensas, o movimento associativo criava ramificações por toda a vila. Recreio, cooperativismo, socorros mútuos, humanitariamo, desporto — borbotaram a cada necessidade da grei.
Envelhecido. pálida sombra do que fora, Damião entregara o instrumento e a farda, incapaz de aguentar o andamento de uma marcha. Caducara, é certo, mas jamais abandonaria a menina dos seus olhos... Os seus ensinamentos, a sua paciência, seriam preciosos para a gente nova. Enquanto as secas pernas lhe permitissem sair de casa para vir aturar os rapazes, a sua contribuição não cessaria. E, naquela noite, subiu a escada com muito esforço; fez paragens, resfolegou, mas ainda entrou a horas:
— Boa noite.
Os aprendizes vieram da sala de Jogos e corresponderam a saudação:
José Carlos Lírio (1870 - 1954), o mestre Damião em Os Tanoeiros de Romeu Correia. Imagem: Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada |
— Boa noite, mestre Damião! (3)
(1) Francisco José da Silva (1884 - 1949) citado em Correia, Romeu, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada, (nas Artes, nas Letras e nas Ciências), Almada, Câmara Municipal de Almada, 1978, 316 págs.
(2) Correia, Romeu, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada, (nas Artes, nas Letras e nas Ciências), Almada, Câmara Municipal de Almada, 1978, 316 págs.
(3) Correia, Romeu, Os Tanoeiros, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1976.
2 comentários:
é também pelo "maestro Damião", que sou da "Sociedade Velha". :)
O que não deixa de ser incrível...
Um abraço Luís
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