quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Indevidamente chamada de Caparica

O desenvolvimento da propaganda turística em torno da Costa da Caparica chocava, porém, com o nítido atraso ao nível de infra-estruturas básicas de que a povoação padecia – a electrificação e a instalação de água canalizada, o saneamento básico e a construção do Bairro dos Pescadores eram reivindicações locais desde há muito colocadas, bem como a ligação por estrada à Fonte da Telha ou a construção de um estabelecimento hoteleiro [...]

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Este era, na realidade, o grande móbil das elites locais, determinadas em constituir uma estância balnear na margem sul do Tejo.

Turistas na Costa da Caparica, década de 1920.

A acção de Manuel Agro Ferreira (1879-1943) insere-se neste contexto. Este solicitador proveniente da zona de Aveiro, com escritório em Lisboa, desde alguns anos que procurava as praias da Costa por motivos de saúde do seu filho, que sofria de raquitismo.

Em 1933, aproveitando a "política de realizações" do Estado Novo e o investimento então feito na construção rodoviária, Agro Ferreira propôs a construção de uma estrada marginal ao Tejo, que ligasse Cacilhas à Costa da Caparica, à semelhança da Marginal entre Lisboa e Cascais que seria inaugurada no contexto dos centenários.

Agro Ferreira defendia que Lisboa deveria ter acompanhado o Tejo no seu desenvolvimento urbanístico, ao invés de se ter desenvolvido para o interior, pois a sua vocação natural e histórica era desenvolver-se em duas margens.

Para isso, era necessário tornar a margem sul um núcleo importante de actividades industriais, comerciais e turísticas, criando uma avenida marginal que impulsionasse este desenvolvimento.

Esta proposta suscitou o interesse do Ministério das Obras Públicas e Comunicações, presidido por Duarte Pacheco, que na mesma altura lançava um concurso público para a concessão da ponte sobre o Tejo, que viria depois a ser cancelado, mas que serviria de mote para os anos 50-60.

Agro Ferreira não deixou de continuar a sua luta ao apresentar no I Congresso Nacional de Turismo (1936) duas comunicações: "As praias da Costa, indevidamente chamada de Caparica" e "A Avenida da Margem Sul".

Na primeira, Agro Ferreira salientava o crescimento da Costa como fenómeno singular em Portugal e desenvolvia as suas teses anteriores, ao projectar na margem sul um complemento turístico a Sintra e aos Estoris, tendo como pólos centrais a Costa da Caparica, a Arrábida e o rio Sado.

Hotel da Praia do Sol,inaugurado em 1934.
Imagem: Restos de Colecção

Para que tal acontecesse, era urgente a intervenção estatal para levar a cabo um plano de urbanização na Costa da Caparica que pusesse termo à construção desordenada que até aí se havia verificado , bem como um conjunto de melhoramentos ao nível das vias de comunicação e transportes, do saneamento básico e do abastecimento de água.

Na segunda intervenção, Agro Ferreira sintetizava o seu projecto de 1933, acrescentando-lhe uma alteração, supostamente por sugestão de Duarte Pacheco: em vez de ligar Cacilhas à Trafaria, a Avenida Marginal deveria prolongar-se entre a base do Alfeite e a Costa da Caparica. (1)

A Praia do Sol - Uma vista parcial. Subida para os "Capuchos", dd. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 110.
Imagem: Fundação Portimagem

Só quem não tenha entrado a barra, a bordo dalgum transatlântico é que desconhece a impressão humilhante de ver desaproveitada a margem sul do Tejo, a "margem interdita". É uma vergonha, com franqueza!

Uma avenida que, partindo de Almada, fosse até à Trafaria, transformava magicamente a perspectiva inteira do porto. Dava, em pouco tempo, uma outra vida e uma outra animação ao rio. Modificava em meia dúzia de anos, e com todas as vantagens, a própria fisionomia da capital do País [...] (2)

Publicações de Agro Ferreira, Turismo e o Tejo e Avenida Sul do Tejo, 1933.
Imagem: Livraria Alfarrabista

As Praias da Costa — indevidamente chamada — de Caparica

A região da Costa de Caparica interessa á maior parte da população de Lisboa, pelo menos como seu melhor e mais próximo refugio, durante o verão: interessa a todos os que não queiram fazer a vida faustosa dos nossos Estoris; 

Costa da Caparica, pic-nic da Aliança Libertária, 1932.
Imagem: Mosca

os que tenham os filhos a tratar de doenças para que o regime marítimo é recomendado; aos que buscam repouso e bons ares de pinhais; áquêles para quem o regime especial com que melhor se definam estas praias, é tratamento único em Portugal.

Praia do Sol, Caparica, ed. Guia de Portugal Artístico, M. Costa Ramalho, 1934.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Nesta vastíssima e salubérrima região encontra a população de Lisboa, além de extensos areais e mar aberto - "um grande parque florestal, relvados frescos, árvores copadas, onde brinque, ria, jogue, tome ar puro e verdadeiramente se divirta em intimo convívio com a Natureza durante os dias em que possa fugir ao triste acotovelamento pelas ruas estreitas da cidade e dos cafés em que a mocidade vicía as horas de ócio"; basta atravessar o Tejo...

A Praia do Sol, Panorama dos Capuchos, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 107, década de 1930.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Estas praias são terapeuticamente indispensáveis á saúde moral e física da população, ao revigoramento, higiéne e formação dos filhos da décima parte da população do país — que tantos são, pelo menos, os habitantes de Lisboa [...]

Lançada a Praia do Sol, foi forçoso reconhecer que a multidão se aglomerava em dois ou três quilómetros dos 40 ou 50 quilómetros que constituem esta costa ao sul de Lisboa.

Dezenas de milhar de pessoas de diferentes tendencias, de diferente educação e de diferentes meios sociais, acorriam ao mesmo ponto restrito, prejudicando-se mutuamente, criando assim, uns aos outros, mal estar, contrariedade e desagrado.

Costa da Caparica, Vista geral, ed. Passaporte, 01.
Imagem: Delcampe

Inventou-se então a Lisboa-Praia, mais perto da Capital, servida pela ponte da Cova do Vapor e a cêrca de uma légua da Praia do Sol, pela beira-mar.

É indispensável e urgente elaborar uma planta para a Praia do Sol, planta em que se definam arruamentos urbanos de forma a que se não possa construir fóra do que fôr projectado.

Costa da Caparica, Vista parcial e o Hotel Praia do Sol, ed. Passaporte, 24, década de 1950.
Imagem: Delcampe

Para garantia de que essa planta seja respeitada por tôdas as entidades locais, deverá ela ser aprovada pelo Conselho Superior de Obras Públicas.

Assim se evitarão os inconvenientes observados e que tão justos protestos têm levantado, de se estar a construir uma povoação tendente a tomar grandes proporções, sem visão larga do seu futuro, em moldes acanhados e inestéticos, em que muitas vezes as construções ultrapassam os alinhamentos, sem respeito pelas plantas existentes, actualmente, bôas ou más que sejam.

Costa da Caparica, Hotel Praia do Sol, ed. Passaporte, 10, década de 1950.
Imagem: Delcampe

A continuar assim, a povoação resultará um aglomerado de casas não só banal mas condenável sob muitos aspectos. (3)


(1) Martins, Pedro, A caminho de um novo paradigma de praia: a Costa da Caparica nos anos 1920-1970
(2) Casario do Ginjal cf. Ferreira, Manuel d’Agro, Avenida Sul do Tejo, Cacilhas-Trafaria", Lisboa, 1933
(3) Ferreira, Manuel d’Agro, As Praias da Costa - indevidamente chamada - de Caparica: Relatório e Plano Geral, I Congresso Nacional de Turismo, Lisboa, 1936

3 comentários:

Falésia Caparicana disse...

Excelente artigo. Mérito o tributo prestado ao Agro Ferreira pelo seu empenho no desenvolvimento da Costa da Caparica, ficando com o nome de uma rua.
Um artigo muito bom, aliás como todos que escreve.
Obrigada.

Rui Granadeiro disse...

Agradeço as suas simpáticas palavras. Seja sempre bem-vinda a este espaço.

Diogo disse...

Obrigado! É a minha rua desde que nasci e nunca soube quem tinha sido o Manuel Agro Ferreira.