quarta-feira, 11 de julho de 2018

Cova da Piedade (1873-1886)

1873

Logo ao nascer do sol embandeiraram quasi todas as cazas, e subiram ao ar muitos foguetes em signal de regosijo pelo anniversario da entrada das tropas liberaes. (1)

Almada, vista sul, Joaquim Possidónio Narcizo da Silva, 1862.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

As casas da villa estavam illuminadas. No largo da Piedade tocavam, antes da chegada da commissão, tres philarmonicas.

Divisava-se em todos os semblantes o maior regosijo. Correu tudo com o maior enthusiasmo, o que se deve ao muito amor dos portuguezes á liberdade, e sem o mais pequeno incidente desagradavel, o que se deve á muita cordura dos cidadãos. (2)

Terreiro da Cova da Piedade, actual Largo 5 de Outubro.
ICMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes

A direcção dos festejos por tão fausto acontecimento tinha sido confiada a uma grande commissão composta dos seguintes cavalheiros: — Presidente, Eduardo Tavares — Wenceslau Francisco da Silva — Jose Maria do Valle — Augusto Cesar de Lima — A. L. J. Quintella Emauz — João Antonio Xavier Carvalho Freirinha — Julio Cesar Coelho — Antonio Faria G. Zagallo — S. Duarte Ferreira — Rafael Fortunato Alves Cunha — Antonio Francisco Silva Junior — Manuel Francisco da Silva — Christovam de Mattos— Antonio Candido Lopes — João Alegro Pereira Ernesto — Alvaro Seabra — Barreiros (Delegado) e Guilherme Maria de Nogueira.

Esta commissão veiu de Almada para o largo da Piedade, ás 7 horas da tarde, acompanhada da philarmonica da villa, e de muitas senhoras que todas vestiam de azul e branco.

Banda da Incrível Almadense, c. 1894 - 1896.
Restos de Colecção

Ahi, collocando-se na frente da egreja, o sr. Eduardo Tavares, presidente da mesma commissão e deputado por aquelle circulo, fez um brilhante improviso, commemorando os factos da batalha dada n'aquelle sitio; disse que os que o acompanhavam n'aquella occasião não estavam ali como vencedores, nem tão pouco revestidos de odios de partidos; e appellou para o patriotismo de todos os portuguezes para conservarem a independencia e a liberdade que ha quarenta annos desfrutámos.

Concluído o discurso, o sr. Tavares levantou vivas á liberdade, sendo correspondido pela grande multidão que o cercava. Então deram-se também vivas aos veteranos da liberdade e ao sr Eduardo Tavares.

Eduardo Tavares (1831-1875).
Biblioteca Nacional de Portugal

Em seguida foi distribuído a 50 pobres um bodo que se compunha de 230 grammas de carne, um pão, meio kilo de arroz e 100 réis em dinheiro.

Este bodo foi oflerecido por uma commissão especial composta dos srs. Eduardo Tavares — João Allegro Pereira — Padre João Netto — A. L. J. Quintella Emauz — Manuel Joaquim Motta e Lourenço Anastacio Ferreira de Aguiar.

Durante o bodo tocou uma philarmonica difíerentes peças de musica. Acabado o bodo, dirigiram-se todos ao largo onde se achava collocado o busto do duque da Terceira; e ahi foram levantados novos vivas á liberdade e entusiasticamente correspondidos.

Estátua do Duque da Terceira (detalhe).
Desenho de Simões d'Almeida, gravura J. Pedrozo, 1877.
Biblioteca Nacional de Portugal

Todas as senhoras, como dissemos, trajavam de azul e branco; e todos os cavalheiros traziam ao peito um ramo de perpetuas preso com fitilhos também azues e brancos. (3)

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1874

Damos hoje á estampa a fachada do elegante hotel que ha de inaugurar-se amanhã na Cova da Piedade.

Hotel Club na Cova da Piedade, inaugurado a 31 de maio de 1874.
Hemeroteca Digital

O sitio é realmente lindissimo. Não podia o seu proprietário escolher melhor local. Defronta com o jardim publico que servirá de recreio aos visitantes. 

O hotel tem excellentes accommodações para hospedes. Conhecemos o proprietario e podemos assegurar que o tratamento será excellente.

Deve ser muito concorrido no tempo dos banhos, principalmente porque está proximo de Lisboa e offerece grandes commodidades. (4)

HOTEL CLUB
NA PIEDADE, OUTRA BANDA

DOMINGO, 31 do corrente se imaugurará o novo Hotel Club, casa de café e bilhar, estabelecido em casa apropriada e acabada de construir; reunindo ao mais esmerado aceio todas as commodidades a desejar.
Serviço de almoço, lunch e jantar por lista, e nos domingos e dias santificados jantar de meza redonda. (5)
HOTEL CLUB
NA PIEDADE, OUTRA BANDA

CONTINUA servindo todos os dias por lista.
Aos domingos e dias santificados, ha tambem jantares de meza redonda. (6)

[...] propriedade de Pompeu Dias Torres, dono do "Hotel Club" e da maior parte dos terrenos da comunidade piedense. [...] (7)

Entrada do Jardim, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900

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Fez-se um jardim, que está povoado de arbustos ainda tenros. Ao meio d'elle, um coreto onde ás tardes dos domingos uma orchestra entretem os passeantes. 

Á roda do jardim edificações novas, alegres, e a poucos passos d'ali o hotel Club, que respira limpeza e aceio.

Cova da Piedade, Arnaldo Fonseca, 1890
Boletim do Grémio Portuguez d’Amadores Photographicos

Á beira da estrada o Salão Veneziano, com os seus gelados e sorvetes e o seu champagne democrático, porque se serve aos copos, e cada copo a troco de um tostão [...] 

Os ranchos cruzam-se com vivacidade meridional; no hotel nota-se continuo fluxo o refluxo de hospedes; de toda a paisagem allumiada pelas scintillaçòes e pelos raios do nosso bello sol exhala-se um aroma de contentamento, e de bem estar; n'uma palavra, respira-se na margem de além Tejo o ar saudavel da civilisação, ar perfumado de um certo conforto, que até agora não era o distinctivo dos areiaes ardentes e das povoações tristonhas da outra banda.

Terreiro da Cova da Piedade, Rua das Salgadeiras.
ICMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes

N'um paiz, em que o gosto pelas diversões marítimas fosse um sentimento popular, profundamente gravado na imaginação e nos hábitos communs, que admiravel theatro lhes estava aberto na vasta enseada do Tejo, a qual encurvando-se largamente diante da cidade, e bordando-se em suas margens ora de vinhedos, ora de praias arenosas, ora de pinhaes, ora de logares e de villas, que na brancura do seu cáio parecem lavradas de alabastro, aproxima-se de Lisboa pelo pontal de Cacilhas, que, n'este ponto, dá á margem fronteira, entalada entre a enseada e o rio, a apparencia de um isthmo  [...]

O Tejo em frente do Caramujo, Revista Illustrada, fotografia de A. Lamarcão, gravura de A. Pedroso, 1892.
Fábrica de molienda António José Gomes

Com o "fora da terra" paralysou-se de todo o movimento da sociedade elegante [...]

Do Commercio do Porto
Cartas Lisbonenses, Visconde de Benalcanfor [Ricardo Augusto Pereira Guimarães] (8)

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Cacilhas está se tornando um dos passeios mais lindos para a gente de Lisboa.

Vapor da carreira de Cacilhas, 1890, Óleo, Alfredo Keil
  Casario do Ginjal



A chamada Cova da Piedade acaba de ser elegantemente ajardinada com um coreto de música no centro.

Jardim da Cova da Piedade, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 13
Fundação Portimagem

No último domingo abriu-se ali um Hotel Club magnífico.

O local é encantador. Todos os domingos há música no jardim e é grande a concorrência do povo.

Paço Real do Alfeite, Aguarela, Enrique Casanova
ICabral Moncada Leilões

Perto da Cova da Piedade há a magnífica quinta real do Alfeite, cujas portas el-rei deu ordem para estarem abertas para os visitantes passearem. (9)

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1886

Escrevo-lhes estas linhas de uma pequena, mas bem interessante povoação, aonde vim passar o verão.

Ramalho Ortigão (1836 - 1915).
Wikipédia

A Cova da Piedade fica ao sul do Tejo, a vinte minutos da ponte dos vapores, na estrada de Cacilhas a Cezimbra.

Da bacia da Piedade faz parte a praia do Caramujo para léste, e para oeste o lindo e fértil valle de Mourellos, todo elle um pomar, em que a bella uva trincadeira, de bagos grossos e duros como cerejas, amadurece em enormes cachos, por entre as romanzeiras, as figueiras moscatel, as macieiras e os medronheiros cobertos de fructo.

É uma terra abençoada para a producção.

N'uma estreita nesga de quinta, uma familia habilidosa e diligente vive n'um confortável commodo burguez sem outra renda além da que resulta do cuidadoso amanho da sua vinha e da sua horta [...]

Cova da Piedade, zona rural, Francesco Rocchini, anterior a 1895.
Arquivo Municipal de Lisboa

Durante a mocidade de nossos paes, a Cova da Piedade foi celebre pela casa de pasto do antigo Escoveiro, theatro de memoráveis noitadas de amor e de batota.

O pretexto da concurrencia ao Escoveiro era a sua afamada sopa de camarões e os salmonetes, que elle preparava do um modo especial, mettendo-os no forno envoltos n'um papel com manteiga, e servindo-os em sumo de limão, polvilhados de pimenta. 

Botequim de Lisboa no século XIX, Alberto de Sousa, 1924.
Museu da Cidade de Lisboa

Uma belleza! Comidos os salmonetes, armava-se a mesa do monte e muitos dos estroinas celebres da terrível Lisboa de ha trinta annos abancavam ao jogo até o outro dia pela manhã [...] 

Ainda hoje, depois de tantos annos, o prédio respectivo, á entrada da estrada de Cezimbra, sempre fechado, de frontaria apalaçada, mas ennegrecida, tem como um ar de desgraça.

Extinto o Escoveiro, veio o José [Joaquim?] dos Melões, e as merendas populares suecederam-se aos jantares e ás ceias da burguezia romântica.

No Lazareto de Lisboa, Joaquim dos Melões, Rafael Bordalo Pinheiro, 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Hoje, o logar é um considerável centro industrial, com uma grande officina da moagem a vapor e quatro fabricas de rolhas, no sitio do Caramujo.

Tejo junto à Praia do Alfeite, António Ramalho, 1880.
Alexandra Reis Gomes Markl, António Ramalho, Pintores Portugueses, Lisboa, Edições Inapa, 2004

Ha abastados agricultores, intelligentes e instruidos, tomando a terra a serio como Pompeu Dias Torres, que amanhece a anoitece a cavallo, e percorre quotidianamente a área de toda a sua lavoura, dirigindo em pessoa as cavas, as mondas, os varejps, as podas, as vindimas, as lagaradas, as cortimentas, todos os serviços emflm da grande lavra; 

e como Paulo Plantier, que na sua quinta do Pombal fabrica o mais especial vinho branco da região e as mais bellas rosas de todo o paiz, em rosaes de dez mil pés, cingidos de sementeiras preciosas de morangos e de melões da mais fina e delicada selecção horticola.

Paisagem com casa, Bertha Ortigão.
Cat. Palácio do Correio Velho, 17 de dezembro de 2008.
Arcadja

Além d'estes elementos de actividado o de riqueza local, quasi todas as pequenas casas da população indígena da Piedade são, mais ou menos, restaurantes campestres, com a taberninha á frente, o retiro bucólico ao fundo, com a mesa de jardim debaixo do parreiral ou do aboboreiro, e o terreno para o jogo da malha ou do chinquilho, a um lado da horta. 

Porque não ha dia lindo, com céu azul, quer de verão, quer de inverno, em que uma alegre burricada ou uma cavalgada impetuosa não passe com os respectivos cavalleiros aguçados de appetite pelo ar vivo do campo, uns ávidos de coelho guizado, de fritura d'ovos e chouriço, e de salada de pimentas, outros sequiosos da frescura de um melão maduro e da espuma vermelha do vinho palhete de Santa Martha ou do S. Simão, sugado pela chupéta ao batoque do casco e decilitrado ao pé da mãi.

Almada [Cova da Piedade], Uma Burricada, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 14, década de 1900.Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia da Cova da Piedade, Almada, Câmara Municipal de Almada, 1990, 318 págs.

Os estudantes e os caíxeiros preferem nas excursões equestres os esgalgados o escancellados cavallos de Cacilhas, aos quaes elles se impõem o dever sagrado de tirar em duas horas de gineta as manhas de uma vida intoira de mortificação e de jejum.

Os mestres d'officios com suas mulheres, os pequenos logistas com as suas famílias, as coristas do theatro do Recreio ou da Trindade com os músicos ou com os poetas seus amigos, as costureiras e as cocottes com os seus companheiros, optam pelos burrinhos, em cujos albardôes o guarda-pó do cavalleiro, enfunado ao sopro, da brisa, e as bamboloantes botinas da dama, descobertas até o ultimo botão, são logo dopois de montar um começo auspicioso de festança. 

Burricada, Veloso Salgado.
Cabral Moncada Leilões

E na minha qualidade de paizagista eu bemdigo os que continuam a ser pela velha tradição da burricada cacilheira, porque não ha cousa que mais avivente e alegre o macadam poeirento, faiscante de sol, entre os aloés e as oliveiras alvacentas da beira das estradas, do que essas luminosas manchas movediças de guardas-sol brancos, azues e vermelhos, trespassados de sol, por baixo das quaes tremeluz em leves e fugidias pulverisações de prata, a terra solta, ferida pelo choto miudinho dos jericos. (10)


(1) Diario Illustrado, 24 de julho de 1873
(2) Idem
(3) Idem, ibidem
(4) Diario Illustrado, 30 de maio de 1874
(5) Diario Illustrado, 30 e 31 de maio de 1874
(6) Diario Illustrado, 7 de junho de 1874
(7) Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial (1847 - 1909), Cova da Piedade, Junta da Freguesia, 1992, 175 págs.
(8) Diário Illustrado, 31 de julho de 1874
(9) Diário do Maranhão, sexta-feira, 26 de Junho de 1874
(10) Gazeta de Noticias, 7 de dezembro de 1886 

Artigos relacionados:
Os festejos de 24 de julho de 1874
Cova da Piedade elegante e encantadora em 1874
Hotel Club da Piedade

1 comentário:

Luis Eme disse...

Mais elementos históricos muito válidos sobre o Concelho.

Grato, Rui.

Abraço