quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Duas Uniões Victoriosas, de Jaime Ferreira Dias

"Duas Uniões Victoriosas" estreou-se, ainda manuscrita, no teatro Garrett, da Cova da Piedade, em 24 de Maio de 1931, de-sempenhada pelo grupo dramático "A Juventude', cujos papeis foram assim distribuidos: Mestre Macedo — Leonel Borges, Angela — Dorinda de Carvalho, D. Martinho — José Coelho, Mario — José da Cruz, Raul —João Miguel Pereira.

Duas Uniões Victoriosas, edição do autor, 1931.
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Sebastião Lopes e Artur Ramos, que representavam respectivamente "O Almadense" e "Republica Social" na primeira representação fizeram ao original e ao seu autor referências extremamente lisongeiras que agradecemos num sincero abraço.

Jaime Ferreira Dias.
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DUAS  UNIÕES VICTORIOSAS

PERSONAGENS

Mestre Macedo, 60 anos, cego,
Angela, 19 anos, operária filha de Macêdo
D. Martinho, jovem rico.
Mario, jovem operario
Raul, 35 anos, ex-companheiro de Macédo.

Actualidade

ACTO ÚNICO

Num quarto andar. Sala pobremente mobilada: ladeada por algumas cadeiras, a desconjuntar-se, uma pequena mêsa coberta por um pano já desbotado, tendo em cima um candieiro acêso, costura e alguns jornais operarios. Uma cadeira de repouso e nas paredes alguns quadros alusivos á causa do proletariado. Dez horas da noite.

SCENA I

MARIO e ANGELA (que estão sentados á mesa conversando).

MARIO — (tomando as mãos de Angela que chorou) — Sim, minha Angela. Verás que havemos de ser felizes. Mas é preciso que afastes de ti esses pensamentos que te entristecem e acredites só, minha querida, no nosso amôr... Ainda duvidas da nossa felicidade?

ANGELA (Reanimada). — Duvidas... dizes-me tu. Como se eu não cresse cegamente no que tu me tens dito... Não és tu, Mário a minha unica esperança, todo o meu amôr?! Eu sei que não és como os outros, que cultivam o amôr como uma banalidade desta época. Nem eu seria também, como tantas das minhas pobres companheiras de oficina, um objecto de frivolidade perigosa. Compreendi desde o primeiro instante os teus sentimetos generosos. E tu, Mário, que és digno, que sofres com a dôr dos nossos irmãos de oficina, compreendes também todo o meu entristecimento. Bem vês. Não tenho mãe, uma irmã.... (Comovida). Resta-me apenas o meu velho pai, trôpego, e cego, a quem tenho que sustentar com o meu magro salario. E só tenho a proteção dele e o teu amor.

MARIO. — E eu não te exijo outra fortuna. Dentro de bem poucas semanas as nossas existencias ter-se-hão ligado no mais enternecido sonho. Viveremos um para o outro e gosarêmos, querida, a felicidade sadia dos pobres. Que aspiras mais?...

ANGELA. — E como havemos de ser felizes!

MÁRIO. — Então não terás que preocupar-te tanto com a exploração de que és vitima nem com o trato grosseiro dos mandões [...]

*
*     *

D. MARTINHO (continuando cinicamente). — Mas, não teem que surpreender-se. Mário, esse fami-gerado socialista que anda a sublevar os meus operários com utopias subsersivas, êsse terá um passaporte para a África. E não me esquecerei de si, descance, sr. Raul.

RAUL. — Canalha! Tudo há a esperar do seu estofo moral. Mas nada receio de si, miserável. Eu tenho, tambem, uma recompensa para esta pobre gente que o sr. persegue. Ei-la: é o seu último recibo. (Entrega-o a Macedo). E agora, miserável, sáia! imponho eu. Sáia!

D. MARTINHO (Fixando o recibo). — E' falso esse recibo. Exijo-o. Você é um falsificador.

RAUL. — É assinado por seu pai e foi o sr. que o perdeu há instantes, colérico, por certo, com o insucesso das suas diligências donjuanêscas.

(já se tem houvido, da rua, o rumar da multidão que canta a Internacional e que passa sob a janela)
.

A pé, ó victimas da fóme!
A pé, famélicos da terra!
Da ideia a chama já consome
A crôsta bruta que a soterra!
Cortai o mal bem pelo fundo!
A pé! A pé! não mais senhores.
Se nada somos em tal mundo,
Sejamos tudo ó produtores!
Bem unidos façamos,
nesta luta final
duma terra sem amos
a Internacional! [...]

*
*     *

MACEDO (Voltado para a plateia). — É a inexoravel justiça da rua, meus filhos. Os burguêses e senhores inventaram-na com os pelourinhos e a igrêja com os autos de fé. E o povo não soube subtraír-se ainda a essa ferocidade, e quere ser tombem juiz. (Vai cessando o ruído e as personagens afastam-se da janela).

RAUL. — Passou, victoriosa, a união dos trabalhadores. E agora meu querido méstre, deixe que eu denuncie uma outra união não menos fervorosa e indivizível que existe há muito entre dois jovens que se amam: Mário e Angela. Graças ao amôr dêles, a virtude triunfou, como nos romances, tornando fortes e arreigadas as convicções emancipadoras d'este moço idealista.

Jaime Ferreira Dias.
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MACEDO. — Mas, meus filhos. Eu sinto-me venturoso por vos saber amados. Sède pois muito felizes, mas com uma condição: não desampareis este velho cego como dois egoistas tontos de felicidade.

ANGELA e MÁRIO. (acercando-se mais dele e afagando-o). — Oh não, meu pai, nunca nos separaremos.

MÁRIO. — Sim. E de hoje em diante, consinta que, em vez de méstre vos chame pai. Seremos cada vez mais unidos.

RAUL. — Pois sim, mas não vão esquecer-se da bôda...

OS NOIVOS (Reconhecidos). — Pois não...

MACEDO (Contente). — Assisto, meus filhos, depois de tantas vicissitudes que tenho sofrido, a duas uniões que tornam felizes os meus últimos dias: — a victória d'ideia libertadora e o triunfo do vosso amôr. Elas viverão em meu coração de pai afectuoso e de velho idealista como duas uniões victoriosas... (Tem-se ouvido rumores da Internacional cantada pela multidão).

TODOS (Dirigindo-se para a janela). — Viva União dos Trabalhadores!... (O pano baixa lentamente, continuando a ouvir-se o cobro até este cair definitivamente).

FIM (1)


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