terça-feira, 26 de novembro de 2019

Brigue Pedro Nunes

O cahimento de hum navio no mar, hé o acto mais solemne que tem a marinha, e sem entrarmos agora nessa demonstração, conhece-se desde logo a sua importância e belleza, pelo afan com que o publico em todos os paizes do mundo civilisado concorre a presencia-lo attrahido por quantas maravilhas o mesmo acto, e o navio comprehendem. 

Brigue Pedro Nunes, João Pedroso Gomes da Silva, 1857.
Palácio Nacional da Ajuda

Com effeito a scena da fuga, ou ausência daquelle volume inerte e pesadíssimo, que se move como animado de força própria, ou impellido por mãos de fadas, hé tão singular, e produz na alma sensações tão gratas e novas, apesar de esperadas, que nos extasiam. 

Por pequeno que hum navio seja, hé sempre grandíssimo em relação ao individuo (homem) que o ha de tripular, e fazer mover pelo mechanismo da roda do leme que o ajuda a dar-lhe direcção: duzentas toneladas, por exemplo que hé só a parte que hum pequeno navio immerge, corresponde ao volume e peso de dois mil e seiscentos homens; e hé hum homem só, nesse acto do lançamento ao mar, que parece dar-lhe o primeiro impulso, para a carreira que o leva a fender o fluido que o ha de sustentar na posição conveniente ao seu arriscadíssimo e aventuroso serviço.

Na sua carreira fumegante, como que se despede para sempre da terra que o vio levantar-sc pouco a pouco d'entre hum montão de madeiros dispersos a destacados, sem figura alguma regular, até ao admiravel aggregamento delles, que, á primeira vista nada tem de commiim entre si, e donde resulta a final aquelle composto das mais bellas formas, das mais graciosas linhas curvas em tão diversos planos, dos contornos mais elegantes e variados, que apresenta o lindo casco de hum navio bem construído; onde só ha de rectilinea a quilha, na construcção moderna, pois na antiga era esta também curva: 

"Que a morte intimam com fragor horrendo, 
De longe ás curvas quilhas." 

como descreve o nosso Diniz [Ode a Vasco da Gama].

Que esmero no calafeto do fundo, que segurança no cavilhame das cavernas e braços, na pregadura do costado, e do forro impermeável ao filtramento de qualquer gola d'agua; que união nas taboas do convés e cobertas, que meio engenhoso e solido de fixar os váus, dormentes, e trincanizes?!

Como de tantos milhares de partes disparatadas e heterogeneas, se compoz hum todo movel em todos os sentidos, invariavel na sua forma, qualquer que seja a posição que occupe, e resistindo ao choque poderosíssimo das ondas encapelladas sem se desconjunctar?! 

Admirável cousa na verdade, e tanto mais admirável, quanto mais se medita na perfeição e complexo desta machina chamada navio, onde todas as artes, e sciencias que a industria e intelligencia humanas imaginaram, são necessárias para o acabamento e desempenho a que se destina.

Navio de guerra disse o imaginativo creador da Revolução de Setembro, era em si "idéa, espada e caminho"! Sim, hé "idéa, espada e caminho"; e só a sua idéa podia compor esta definição que resume quanto o mesmo navio significa, tripulado e conimandado por quem entenda e falle correctamente a lingua do militar marítimo.

Brigue Pedro Nunes (detalhe), João Pedroso Gomes da Silva, 1857.
Palácio Nacional da Ajuda

Dois navios de guerra, pois, ainda que pequenos, cahiram no dia 21 de junho de 1850 ao mar, dos estaleiros do arsenal da marinha de Lisboa, em presença de milhares e milhares de espectadores!

O menor delles que hé a escuna Angra riscada pelo sr. Moraes, parece-nos poder desde já affirmar que ha de servir bem e nobremente ao seu fim; quanto ao de maior lote, o brigue Pedro Nunes aguardaremos as provas que a experiência der, para fazermos juizo do seu mérito como navio de guerra. 

No entre tanto, mais doas flâmulas portuguezas tremularão nos seus topes por esses mares, e talvez vão ainda a remotas plagas mostrar de novo a intrepidez e sabedoria que n'outras eras tanto distinguiram os Vascos da Gama, os Joões de Castro, os Antonios Galvões, os Farias, e os Magalhães. 

Talvez, dizemos nós, porque não hé só nos grandes navios que se realisam navegações arriscadas, nem tão pouco só nas batalhas de muitas náos e fragatas que se mostra a valentia e audácia dos. homens de guerra, como bem o demonstrou o capitão Pevrieux na noite de 16 de agosto de 1801 a bordo da canhoneira Volcan contra Nelson no ataque de Boulonha, e o nosso destemido Quintella na curveta Andorinha contra a fragata franceza Chiffonne perto da Bahia no dia 19 de maio de 1801.

Cabimento do Pedro Nunes e da escuna Angra.

— Relatando porém o facto de hoje, diremos que ás duas e três quartos da tarde, que era a hora do preamar, deviam estes dois navios cahir na agua, mas como se esperasse por El-Rei até ás quatro, e a maré começasse a baixar, sem que o mesmo senhor apparecesse, permittio Sua Alteza o sr. Infante D. Luiz que o brigue Pedro Nunes partisse em quanto podia nadar; e com effeito elle escorregou admiravelmente pela carreira, deixando os milhares de espectadores maravilhados do modo por que fez aquelle trajecto, e fluctuou sobre as aguas do Tejo que tão fagueiras lhe lambiam o costado. 

Pouco depois chegaram Suas Magestades, El-Rei e seu augusto pai com toda a real familia que assistiram ao cahimento da escuna Angra, a qual ainda mais veloz que o Pedro Nunes levantou pelo attricto dos cachorros na carreira, hum fumo immenso, efendeo as aguas do mesmo Tejo, com huma velocidade de 10 a 12 milhas, cercando-se de cachões de espuma alvíssima que a rapidez do sulco produzio. 

O corpo de marinheiros da armada com a sua musica, achava-se postado entre os dois estaleiros com a frente para o mar, a companhia de guardas marinhas com correias, armas e bandeira fazia a guarda de honra a Suas Magestades, como em tão solemne acto sempre se praticou; o arsenal estava apinhado de curiosos de ambos os sexos e de todas as classes e jerarchias; o reducto da inspecção, era occupado pela corte e ministros estrangeiros com suas famílias; no cáes da mesma inspecção havia hum toldo e cadeiras para os altos funccionarios e membros das camaras legislativas; as janellas da sala do risco e da escola naval foram offerecidas e franqueadas a muitas senhoras que as adornaram com a sua presença e beldade, terminando a funcção ao aprazimento de todos, e sem o menor transtorno ou desgosto, o que hé de bom agouro para os navios que lhe deram causa, e aos quaes desejámos o melhor e mais patriótico futuro. (1)

Brigue Pedro Nunes (detalhe), João Pedroso Gomes da Silva, 1857.
Palácio Nacional da Ajuda

Nascido em 31 de outubro de 1838 [o infante D. Luiz], um anno depois do senhor D. Pedro V, e obedecendo á vocação precoce, assentou praça na armada aos oito annos de idade, e foi nomeado guarda marinha em 9 de outubro de 1846.

Promovido ao posto de segundo tenente em 19 de maio de 1851, ao de capitão tenente em 29 de outubro de 1854, e ao de capitão de fragata em 24 de março de 1858, encetou com menos de vinte annos a vida do mar, assumindo em 12 de setembro de 1857 o commando de brigue Pedro Nunes, e cruzando na costa de Portugal desde o dia 18 de janeiro do seguinte anno, sujeito em tudo como simples official ás obrigações e á responsabilidade do serviço naval. (2)


(1) Joaquim Pedro Celestino Soares, Quadros navaes, 1861
(2) Coroa poética no consorcio de suas magestades fidelissimas... 1862

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