quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O Theatro d'Almada

Em 16 de Julho de 1849, o famoso Actor Isidoro, Isidoro Sabino Ferreira de sua graça completa (1828-1876), estreou-se neste palco como artista profissional. Mais tarde, em 1868, este comediante, de sociedade com o popularissimo actor Taborda (1824-1909) assinaram a escritura para a compra do referido teatro,que restauraram e exploraram por uns tempos.

Entrada do pátio do Prior do Crato em Almada, espólio Cassiano Branco.
Arquivo Municipal de Lisboa

A título de curiosidade se transcreve parte da escritura notarial:

"...Cenifico que em 19 de Agosto de 1868 se verificou a apresentação n.° 5 no diário de três escrituras com data de 14 do presente mês celebradas a 1.a a folhas 97 a 2.a a folhas 99 e a 3.a a folhas 99 verso do livro 325 das Notas do Tabelião de Lisboa João Baptista Pereira, sendo apresentante Isidoro Sabino Ferreira, casado, actor dramático, morador na Rua das Escolas Gerais, n.° 9, freguesia de S. Vicente, Bairro de Alfama. 

Isidoro Sabino Ferreira por Joaquim Pedro de Souza, 1859.
FBAUL

E por virtude destes títulos se inscreve em seu nome e no seu com-possuidor Francisco Alves da Silva Taborda, também actor dramático, casado, morador na Rua dos Calafates n.° 76, freguesia da Encarnação, Bairro Alto, o domínio pleno sobre o prédio n.° 278 descritos a linhas 143 verso do livro terceiro."

Actor Taborda, 1880.
Album de Glorias, Raphael Bordallo Pinheiro.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Para localização do dito teatro nos dias de hoje se transcreve outra e elucidativa passagem da mencionada escritura:

"Prédio urbano (teatro) que consta de sala de espectadores com seu pátio e duas galerias, sotão e corpos contiguos de loja e primeiro andar, dependências do mesmo edifício, tendo na sala de espectáculos uma janela, outra no salão do teatro, outra no 1.° andar da casa contígua do lado do Pátio do Prior e  mais duas janelas para o lado da Rua da Boca do Vento.

É situado na freguesia de São Tiago de Almada, e tem os números de policia quatro a sete para o lado do dito Pátio do Prior e números um e dois para a referida Rua da Boca de Vento.

Confronta pelo norte com o prédio de António José Alves de Bastos e com o Pátio do Prior, pelo lado sul com prédio de António Ferreirade Pinho e Rua da Boca de Vento, pelo nascente pelo dito António Ferreirade Pinho e com o dito Pátio, e pelo poente com Domingos Caetano Rodrigues. 

Calçada da Barroquinha, espólio Cassiano Branco.
Arquivo Municipal de Lisboa

Calcula-se o valor venal deste prédio com duzentos e oitenta mil réis e o seu rendimento líquido (...) em trinta mil réis. 

Esta descrição foi feita à vista de três escrituras públicas, datadas de 14 do presente mês lavradas, a 1.a a folhas 97, a 2.a e a 3.a a folhas 99 verso do livro 325 das Notas do Público da Cidade de Lisboa João Baptista Pereira e da declaração suplementar assinada por Isidoro Sabino Ferreira e apresentada pelo mesmo nesta Conservatória sob o número 5 do diário em dia 19 de Agosto de 1868. As escrituras foramentregues ao apresentante e a declaração ficou retirada num maço n.° 3 do corrente ano. Fica o prédio lançado no índice supra."

Perspetiva da rua da Judiaria em Almada,
espólio Cassiano Branco.
Arquivo Municipal de Lisboa

Também a título de curíosídade se transcrevem duas passagens das Memórias do Actor Isidoro, rublicadas em 1878, em que faz referência ao celebrado Teatro de Almada:

"Caprichos da natureza!... Aínda não há dois anos, estava eu tão gordo!... Tinha uma apparencia a tal ponto clerical, que dei motivo ao seguinte caso:

Trazendo obras no theatro d'Almada, fui d'aqui (de Lisboa) n'um domingo de manhã levar a féria aos operários. 

Chegado a Cacilhas,montei n'um jumento, e elle ahi marcha para Almada vergando com o meu peso!

Ao fim da calçada, apenas dobro o cotovello, d'onde se descobre a porta da egreja da Misericordia, vejo um immenso grupo de gente, que apenas me avista, se põe em movimento entrando atropeladamente para a egreja!... O sino toca apressado, dando o signal de ultima vez!...

Aproximo-me, e oiço uma estrepitosa gargalhada solta pelas pessoas que ainda estavam na rua, por não terem achado logar na egreja!... 

Perspectiva da rua Direita de Almada,
espólio Cassiano Branco.
Arquivo Municipal de Lisboa

Era eu o motor de tal gargalhada... porque vendo-me tão gordo, de chapéo de sol debaixo do braço e o chapéo da cabeça inclinado para traz, segundo o meu uso ordinario, marchando a cavallo tão pachorrentamente, como eu dizia n'um couplet da Loteria do Diabo:

E n'aquelle passo lento
Em que tanto me fiava,
Era ás costas do jumento
Que melhor eu ressonava... 


Por todas estas apparencias tinham-me tomado pelo padre que se esperava para a missa, e aqui está
o motivo de todo o movimento operado á minha apparição!..." (págs. 69 e 70 da citada obra.) 

Outra passagem:

"O melhor expediente que a sociedade achou foi, dar de prompto um espectaculo no theatro d'Almada, em seu benefício, composto de peças que já tinham sido dadas no seu theatro particular.

Fez a direcção os maiores sacrificios para arranjar os meios indispensáveis para preparar a partida da sociedade para o theatro d'Almada. 

Realisou-se o projectado beneficio em 16 de Julho de 1848, com a comedia em tres actos, O Rachador escocez. e a comedia em um acto, A Sociedade dos 3, sendo os papeis de primeira dama desempenhados por um dos directores da sociedade o sr. José Maria da Cruz Moreira, vulgo, José Maria Alfaiate, que apesar da differença do sexo, e da falta de formosura indispensavel nas damas amorosas, no mais preenchia perfeitamente o seu lugar!...

Fazia os primeiros papeis de baixo comico, o sr. José Maria Rodrigues, conhecido nos theatros particulares d'aquella época por José Maria Carpinteiro, era tal o seu merecimento no alludido genero, que por mais de uma vez foi chamado a represenlar em theatros publicos... mas o seu acanhamento ou excessiva modestia, o deixaram ficar até hoje, amarrado ao banco...de carpinteiro!

Eu representei n'esta recita o papel de galan sério... e lá me escapei como pude...

Do resto a sociedade não houve nada de maior a notar.

Acabada a representação, foi-se a contas, e verificou-se que a receita mal tinha chegado para as luzes!... 

Novos embaraços para a direcção!... 

N'estas occasiões, nunca faltam amigos officiosos dando os seus pareceres sobre os acontecimentos da noite!... Os d'esta vez disseram que a falta de concorrencia, era devida ao estar o espectaculo mal annunciado... portanto que annunciassemos melhor para o dia seguinte, e teriamos uma enchente!...

A promessa era tentadora, vista as precarias circumstancias da sociedade!... 

Depois de seria conferencia da sociedade, decidiu-se dar a segunda recita no dia seguinte, e para evitar a falta de que fomos accusados, mandou-se vestir com fatos apropriados, dois rapazes que tinham ido para tocar clarim na peça, e montados em jumentos correr as ruas d'Almada tocando clarim em ar de bando!... 

Chegou a noite, e nem um camarote alugado!... 

A direcção na esperança ainda de avisar o anuncio que o bando tinha feito de dia, mandou tocar os clarins á porta do theatro... e... nada!... Tornou a mandar tocar... e... nada!...  Mandou ainda tocar, e ainda nada!

Entrada do pátio do Prior do Crato em Almada, espólio Cassiano Branco.
Arquivo Municipal de Lisboa

Finalmente, apparece meia dusia de pessoas, que nos explicam, que a falta de espectadores que ainda n'aquella noite se notava, era devida a ter-se espalhado pela villa, quando se ouviu toques de clarim, que tinha chegado uma força a Almada, e que estava tocando a unir, para depois fazer a distribuição dos aboletados [soldados aquartelados em casas particulares] por toda a povoação!... tratou toda a gente de se fechar em casa, em vez de sair para o theatro! Imagine-se que novos embaraços, este ultimo revez acarretou sobre a pobre sociedade!...

Voltei ainda a represenlar, n'este anno de 1848, e no seguinte, sempre em beneficio d'outros, e sem mais responsabilidade, a não ser o desempenho dos meus papeis... mas sem que se desse caso algum digno de menção.

Finalmente tornei ali em 13 d'outubro de 1849, a representar A vingança, drama em cinco actos, e Os politicos do seculo XIX, comedia em um acto, originaes do sr. Adjuto Manuel da Conceição dos Reis, homem de talento, grave e sisudo, que andaria a este tempo, pelos seus quarenta e cinco annos, digno, em tudo de respeito e admiração, mas que tinha a fraquesa de querer representar os papeis de primeira dama, em todas as sociedades particulares, que organisou, sustentou e ensaiou por espaço de muitos annos! 

N'esta noite, representou no drama o papel de Margarida de Santi, um papel entre tragico e o ultra-romantico... e apesar de um sem numero de circumstancias que tinha contra si, fez-se agradar n'esta noite do publico pagante d'Almada!" (págs. 142, 143, 144 e 145 da citada obra) (1)

Isidoro Sabino Ferreira (1828-1876).
HathiTrust

Realisa-se, no dia 15 do corrente [fevereiro de 1879], no theatro de Almada, uma recita extraordinaria, em beneficio,como espectáculo seguinte: o drama em 3 actos "Scenas do Brazil", As comedias: "Um noticiarista" e o "Criado politko", a poesia: "Um artística invalido," e umas cena cómica. 

Tomam parte, por obsequio o sr. Liberato da Silva e os distinctos amadores da sociedade União Dramatica. No salão do theatro toca, também por obsequio, a philarmonica União d'Artistas Cacilhense. 

O espectáculo não pôde ser mais attrahente. (2)


(1) Romeu Correia, Um pátio de comédias em Almada, Movimento Cultural, ano II n.° 3, 1986
(2) Diário Illustrado, sabbado 15 de fevereiro de 1879

Leitura relacionada:
Memorias do actor Izidoro [i.e. Isidoro Sabino Ferreira] / ... Ferreira, Isidoro Sabino, 1828-1876.

Mais informação:
As Bandas de Música no distrito de Lisboa entre a Regeneração e a República (1850-1910)



Este Pátio do Prior, à Boca de Vento, tem uma história de primeiro plano na memória de Almada. Chamava-se assim por as suas casas terem pertencido a D. António. Prior do Crato, que as herdara de seu pai, D.Luís, duque de Beja e irmão do rei D. João III. Este fidalgo fora donatário de Almada e, segundo a tradição, ordenara a sua construção. Após o desastre de 1580, a perda da nossa independência e o exílio de D. Amónio, as casas passaram para a posse dos Abranches, que, em vésperas da revolução de 1640, aí conspiraram e receberam o duque de Bragança, futuro D. João IV.

ASPECTO DA ENTRADA DO PÁTIO PRIOR DO CRATO NO LUGAR DA BOCA DO VENTO - ALMADA
AMRS

No fim da primeira metade do século XIX teve aqui lugar o Teatro de Almada, muito frequentado, na época estival, pelos veraneantes que ocorriam às praias desta margem. Utilizando a sala de espeçtáculos, a Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, fundada em 1 de Outubrode 1848, teve neste teatro a sua primeira sede.

cf. Romeu Correia, Movimento Cultural, ano II n.° 3, Dezembro 1986

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