segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O casamento de Elvira e Bordallo

Apesar das determinações paternas, Raphael Bordallo continuou sempre desenhando tudo que lhe apparecia: e em 1857, pequenote ainda, estando em Cacilhas, fugido da febre amarella com sua familia, pintou um quadrito a oleo, que existe hoje no Alemtejo, em casa de uma tia sua, cópia — o quadro, não é a tia — de uma lithographia representando uma família de camponezes á espera de um filho ausente, todos sentados á beira-mar; composição em que se notou desde logo sentimento e gosto... (1)

Regata dos barcos da Channel Fleet em Lisboa, 1869.
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Conhece-se o amor no muito que se sacrifica; é talvez uma das differenças mais intimas que ha entre elle e a amizade: a amizade faz sacrificio de muitas cousas, o amor sacrifica-se muito a si. Por isso na hora em que Raphael Bordallo se apaixonou pela senhora [Elvira Ferreira e Almeida] com quem veio a casar [no dia 15 de setembro de 1866], cortou logo por todo o genero de prazeres e de divertimentos que lhe tornavam a vida agradavel, e foi viver uns poucos de mezes na Outra-banda, onde essa menina estava a banhos.

Viria como um assassino, como um malfeitor, como um homem muito facinoroso, sempre escondido, sempre disfarçado, por causa da mãe da menina, que costumara reprehendel-a asperamente quando o avistava. O primeiro amor ó muilo cantado, mas não lhe fazem n'isso favor nenhum, porque realmente o merece; basta ser o unico tão isento de amor proprio quanto o amor póde chegar a sel-o! 

Raphael Bordallo Pinheiro, 1876.
Museu Bordalo Pinheiro

No fim de um anno d'aquella vida quasi melodramatica, pela fórma, resolveu casar-se, casar-se ou morrer. 

Pede-se a noiva; mas ha recusa; elle tira-a aos patrios poderes por meio de justiça; o casamento faz-se em 13 dias; a noiva, menina. gentilissima, é depositada em Cacilhas; o casamento tem logar em Almada. Se quasi toda a gente se casa moça, muito moça, é provavelmente por ser essa a idade da audacia, da coragem, estavam com medo que eu dissesse, das loucuras? nunca! 

Elvira Ferreira de Almeida.
Museu Bordalo Pinheiro

No dia do seu casamento fazia uma ventania que ia tudo pelos ares. Elle passeava no caes de Cacilhas, vestido como é proprio nas grandes occasiões, casaca, gravata branca, esperando pessoas de amisade que deviam ir de Lisboa...

O tempo a passar, o vento cada vez mais rijo, e elle passeando, passeando...

Antes que cases, olha o que fazes.
Raphael Bordallo Pinheiro, Album de caricaturas

Já se dizia que não queria casar. Perguntava-se por elle a quem se encontrava:
 
Que é do homem?
Qual homem?!
O noivo?
— O Bordallo?
Ainda não veiu?   
Não. Vossê viu-o?
— E vossê?
Quem o viu?
É celebre!...

Veiu o padrinho por alli abaixo procural-o, e queria que elle fosse n'um burro para chegar mais depressa:

— Monte no burro, avie-se!
— Não vou, não vou; no burro, não vou! retorquiu Raphael com dignidade.
— Estamos ha que tempos na egreja á sua espera!
— Pois agora vamos; mas vamos a pé; é só mais um instante...

O janota de chapeu alto, Raphael Bordallo Pinheiro.
Bordallo Pinheiro

Escapou do burro, mas não poude fugir ao chapeu de chuva, e marchou para Almada, "en grand tenue", de guarda-chuva aberto. 

Chega emfim a S. Thiago de Almada, tranquillisa pela sua presença os animos agitados dos circumstantes, fecha o chapeu de chuva; momentos depois, tudo está dito: casou. 

Roque Gameiro.org

Aquelle acontecimento tinha para elle todas as seducções da liberdade, tinha até certo encanto phantastico; realisar o seu ideal, alcançar a escolhida do seu coração, tudo isso longe de Lisboa e podendo dizer ao padrinho como nos melodramas;

Diante de nós o mar, ao nosso lado o mar, em redor de nós o mar! 

Porque Raphael Bordallo é uma imaginação para tirar partido de tudo, não brincando como se poderá julgar, mas a serio, extremamente a serio, com todo e, enthusiasmo de um temperamento em que as tristezas, as alegrias, e as exaltações são sempre subtis, imprevistas, ardentes, febris. 

Lisboa vista de Almada, J. Laurent (1816-1886), c. 1870.
Archivo Ruiz Vernacci


Diziam-lhe á volta para Cacilhas:

O mar está horrivel! Isto vai ser agora um pouco desagradavel!...
Qual desagradavel! É uma viajata. É tempo de que os portuguezcs comecem a ter estimação pelo movimento, pela novidade, pelo sair da toca!
Pois sim, mas póde a gente sair da toca n'um dia ameno. 
Nada; não senhor. Isso é desconhecer o gosto pelas viagens. As viagens exigem, para serem em termos habeis, commoções, surprezas, perigos. Entre nós ainda nem se percebe isto correntemente porque ha horror a separar-se um homem do Chiado, ou do Rocio. Os portuguezes, ainda teem medo de sair da sua rua. E querem dizer que já isto vae melhor. D'antes acham-se de alguma vez um ou outro, por casos políticos, na França ou na Inglaterra, emigrado. Agora nem isso! E não ê senão pela teima de se deleitarcm em viver quietos, contentando-se com o seu bairro [...]

O vento soprava rijo...

Rafael Bordalo Pinheiro e familia em 1879.
Museu Bordalo Pinheiro (Flickr)

Como elle assovia! diziam os circumstantes segurando os chapeus.
Deixe assoviar. É o modo d'elle de celebrar meus louvores!

Havia uma tempestade.
Os noivos deviam partir para Belem, onde ficariam residindo.
O mar estava medonho.

Retrato de Elvira Bordalo Pinheiro, Columbano, 1883.
MNAC

Ninguem se atrevia a embarcar; quando se consultava os barqueiros, os honestos homens respondiam torcendo o barrete:

Está picadito, o mar está picadito!
—  E se formos a remos?
Vamos metter muita agua!
O melhor é esperar pelo vapor.
O vapor virá só de tarde, e não atraca, provavelmente.
Vamos embora!

Não houve remedio.
Embarcaram [...]

—  Não está mau torrão! dizia o padrinho, embrulhando-se no toldo, em quanto a noiva ria, ria [...]

Ih! Cuidado! O bote vai a metter a quilha na agua...
Não ha novidade! dizia o homem do leme.
Então posso continuar? perguntava Raphael ao padrinho.
Tomára-me eu em terra!

E o noivo, olhando para a noiva, e meigamente:

Tambem eu! 

Zé Povinho e Maria Paciência.
Museu Bordalo Pinheiro (Flickr)

Depois, n'outro tom para o padrinho: 

—  Mas, como eu dizia, deixemo-nos de historias, nada d'isso é tão digno de estimação como passar as aguas, separar-se da cidade, da Lisboa querida, nossa patria e nosso enlevo, e ir de viagem casar a Almada! É ou não é? (2)


(1) Raphael Bordallo Pinheiro, Album de caricaturas, Lisboa, 1876, cf. prefácio de Julio Cezar Machado
(2) Idem

Artigos relacionados:
Egreja de S. Thiago em Almada
Quarentena

Informação relacionada:
Centro Virtual Camoões: Rafael Bordalo Pinheiro
O amor italiano de Bordalo Pinheiro
Bordalo na Gare Rodoviária do Oeste
Museu Rafael Bordalo Pinheiro (Flickr)

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