quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

A escola da dona Assunção

A escola da dona Assunção ficava num primeiro andar, por cima do posto de enfermagem dos Bombeiros Voluntários de Cacilhas. Da rua, viam-se as três janelas de guilhotina que iluminavam a aula durante o dia.

Escola da D. Assunção sobre o Posto de Socorros dos Bombeiros Voluntários de Cacilhas no Largo do Poço em Cacilhas.
Ilustração de Anyana (Idalina Alves Rebelo), 1980.
Imagem: Boletim "O Pharol"

A escada estava a ser esfregada por uma rapariga magra e de cabelos pretos em desalinho. O pai pediu licença para passar e a mulherzinha colou-se à parede, arredando o balde com a água porca, a escova e o esfregão. Subimos até ao patamar e ele bateu à porta. Uma menina de tranças loiras com laçarotes azuis apareceu entre umbrais. 

— A dona Assunção está? — indagou o Rogério Correia.
A menina voltou-se para dentro, e disse: 

— Minha senhora, está aqui o senhor que esteve cá ontem. Traz o menino.

Apareceu então uma mulher gorda, cabelos brancos mal penteados , nariz saliente e vermelhusco. Trajava uma bata branca como o enfermeiro do rés-do-chão. Com voz de homem, perguntou:

— Este é que é o seu filho, senhor Rogério?

Ms. Finster, Paul Germain and Joe Ansolabehere, Recess TV Series.
Imagem: Recess Wikia

— Aqui o tem: é uma bela prenda! — E o bruto do meu pai fez ainda esta recomendação:
— Eduque-o, minha senhora, faça dele um Homem! O rapazinho tem vivido à rédea solta, lá no cais! Não faça cerimónias, arreie para baixo quando for preciso! Basta que me apresente a pele dele lá em casa!...

Ao escutar estas terríveis palavras do autor dos meus dias, ericei de forças para fugir escada abaixo. Ainda consegui um passo atrás, mas várias mãos caíram sobre a minha fraqueza, atirando-me para dentro da aula. 

Gritei, esperneei, sem resultado: quando dei por mim já o meu pai havia abalado para o emprego e eu estava sentado num banco. À minha beira, a menina das tranças pedia-me para que não chorasse mais, pois ali na escola ninguém me faria mal. Ela era mais alta do que eu (que olhos bonitos!, que maminhas!, que pernocas!...),

Lou ! par Julien Neel, éditions Glénat.
Imagem: BDzoom

e a sua voz muito doce. Enxuguei as lágrimas e pude então observar quem assistia à aula. Talvez uns trinta rapazes e raparigas, havendo vários miúdos espalhados sobre pequenos bancos. Ao fundo, estava a secretária onde a professora dirigia as operações. Atrás dela, na parede, um quadro negro não sei quantas vezes maior do que a minha ardósia. Dois rapazes davam lição debruçados no tampo da mesa da dona Assunção.

Em dado momento, a professora pôs-se de pé e exigiu:
— Dá-me a tua mão, Daniel! 
Ao que o rapaz recuou, amedrontado. Então a velha saiu da cadeira, puxou de um pau com a ponta redonda, e começou a bater na palma das mãos. Seis palmatoadas em cada. O Daniel gritou de dor, aflito, escondendo as mãos sob os sovacos. Dançou por momentos diante de todos nós, pois as mãos ardiam-lhe como brasas.

A minha bonita companheira apercebeu-se do meu pânico e tentou sossegar-me:
— Ele nunca sabe as lições e a senhora bate-lhe para que ele estude. Dito isto, a menina retirou-me o boné da cabeça. Resisti, ao que ela esclareceu:
— O teu boné vai para o cabide, vai o boné e o cabaz do almoço. Ainda de pé, fiquei a vê-la afastar-se de mim. — Que ia guardar lá dentro as minhas coisas, dissera ainda para a professora. Pouco depois a rapariga voltou para a minha beira, baixando eu o rabo sobre o banco.

Observei melhor a sala e notei agora que havia mapas pelas paredes. Sobre terras, pesos e medidas. Mas nenhum me deixou tão surpreendido como o boneco de um homem, de pé, rodo feito com ossos...

— É um esqueleto! — esclareceu a menina. — Sabias que todos nós temos aqueles ossos cá dentro? — Saber, sabia... mas nunca tinha visto. Nesta altura a rapariga que esfregava a escada apareceu com o balde e a escova. 

A dona Assunção, ao vê-la atravessar a sala, gritou-lhe:
— Ó mulher, cada vez estás mais lesma! Por rua vontade gastavas roda a manhã na limpeza! A uma hora destas e ainda não tenho almoço em casa! A mulherzinha ficou araranrada com aqueles gritos e arriou o balde no chão, o que acabou por irritar ainda mais a dona da casa:
— Agora ficas aí armada em paspalhona?! Mexe-te! Mexe-te, Elvira! A Elvira então correu para a cozinha, aparecendo pouco depois com um cesto, indo de seguida pedir dinheiro à patroa para as compras. 

Cacilhas, Almada, Largo Costa Pinto, ed. José Pinto Gonçalves, década de 1920.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Junto de mim havia uma fila de banquinhos onde estavam sentados vários putos a fazer contas nas ardósias. De quando em quando, tocavam no braço da menina das tranças e perguntavam-lhe se a conta ia bem... Percebi ser ali, na última fila, o lugar dos mais atrasados, e que aquela malta miúda estava ao cuidado dela.

Arrisquei uma pergunta: 
— Vossemecê é filha da dona Assunção? A rapariga riu-se e deu-me um piparore numa orelha: 
— Porquê? Por estar aqui a passar as contas aos miúdos? Então a menina fez-me um pedido: que a tratasse por Raquel, pois era uma aluna como qualquer outra. Andava na 4.a classe e esperava fazer o exame no próximo ano. Tinha doze anos. O pai era proprietário de uma leitaria em Cacilhas. 
— E tu onde moras? 
— No cais do Ginjal. O meu avô é dono daqueles grandes armazéns de vinhos. Esta mentira saíu-me pela boca fora sem eu dar por isso. Mas não me arrependi, pois a Raquel ficou muito admirada da importância do avô Zé Correia [...]

Cacilhas, cais e farol, ed. José Pinto Gonçalves,  década de 1920.

A menina Raquel fez-me uma pergunta: 
— Sabes contar? 
— Até vinte e nove... esclareci. 
— E daí para cima? Encolhi os ombros: 
— Não sou certo... 
— Eu passo-te uma continha para ver o que sabes, sim? — ofereceu-se a filha do dono da leitaria. Observando os números que ela escrevera na minha pedra, perguntei-lhe, a medo: 
— Estando errada... a professora bate-me? A minha companheira riu-se, despenteou-me numa carícia e... deu-me um beijo.

Tremi da cabeça aos pés, e alvitrei cheio de espanto e receio: 
— Veja lá, menina Raquel, se a dona Assunção nos vê...! 
Parando de rir, bruscamente, a rapariga dos laços azuis encarou-me admirada!... Mas a professora estava atenta ao que se passava entre nós, e indagou na sua voz de homem: 
— Que risos são esses, Raquel? Esse menino entrou a espernear e agora está tão divertido? 
— Fui eu que lhe passei uma conta, minha senhora. Uma pequena conta de somar. E a voz forte da dona Assunção voltou a ouvir-se com um terrível aviso: 
— Esse menino amanhã vem para o pé de mim. Vamos ouvi-lo chilrear... — E, erguendo a palmatória negra, provocou-me:
— Quem sabe se não vai apanhar uns beijinhos desta menina de cinco olhos!... (1)




(1) Correia, Romeu, O Tritão, Lisboa, Editorial Notícias, 1982, 174 págs.

Leitura adicional:
Boletim "O Pharol"
Farol, O, Associação de Cidadania de Cacilhas, As Margueiras, Contributos para a história de Cacilhas, Junta de Freguesia de Cacilhas, O Farol, 2013, 248 págs.

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