Rue de Paris, temps de pluie, Gustave Caillebotte, 1877. Imagem: WikiArt |
— É um anjinho cheio de dignidade! — dizia então Sebastião, o bom Sebastião, com a sua voz profunda de baço.
Estavam casados havia três anos. Que bom que tinha sido! Ele próprio melhorara; achava-se mais inteligente, mais alegre... E recordando aquela existência fácil e doce, soprava o fumo do charuto, a perna traçada, a alma dilatada, sentindo-se tão bem na vida como no seu jaquetão de flanela!
— Ah ! — fez Luísa de repente, toda admirada para o jornal, sorrindo.
— Que é?
— É o primo Basílio que chega!
[...]
Foi com duas lágrimas a tremer-lhe nas pálpebras que acabou as páginas da Dama das Camélias. E estendida na voltaire, com o livro caído no regaço, fazendo recuar a película das unhas, pôs-se a cantar baixinho, com ternura, a ária final da Traviata: Addio, dei passato...
Cena de La Traviatta de Giuseppe Verdi (1813 - 1901). Imagem: Guernsey Arts Commission |
Lembrou-lhe de repente a notícia do jornal, a chegada do Primo Basílio...
Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos vermelhos e cheios. — Fora o seu primeiro namoro, o primo Basílio! Tinha ela então 18 anos!
Ninguém o sabia, nem Jorge, nem Sebastião [...]
João de Brito, que fazia parte da firma Bastos & Brito, faliu. A casa de Almada, a quinta de Colares foram vendidas.
Basílio estava pobre, partiu para o Brasil. Que saudades! Passou os primeiros dias sentada no sofá querido, soluçando baixo, com a fotografia dele entre as mãos. Vieram então os sobressaltos das cartas esperadas, os recados impacientes ao escritório da Companhia, quando os paquetes tardavam...
Terrasse à Sainte-Adresse, Oscar-Claude Monet, 1867. Imagem: Wikipedia |
[...]
Fora sempre o seu desejo viajar — dizia — ir ao Oriente. Quereria andar em caravanas, balouçada no dorso dos camelos; e não teria medo, nem do deserto, nem das feras...
— Estás muito valente ! — disse Basílio. — Tu eras uma maricas, tinhas medo de tudo... Até da adega, na casa do papá, em Almada!
Ela corou. Lembrava-se bem da adega, com a sua frialdade subterrânea que dava arrepios! A candeia de azeite pendurada na parede alumiava com uma luz avermelhada e fumosa as grossas traves cheias de teias de aranha, e a fileira tenebrosa das pipas bojudas. Havia ali às vezes, pelos cantos, beijos furtados [...]
— Lembras-te da capela da nossa casa em Almada?
Tinham passado ali lindas tardes! Ao pé da velha capela morgada havia um adro todo cheio de altas ervas floridas, — e as papoulas, quando vinha a aragem, agitavam-se como asas vermelhas de borboletas pousadas...
Papaverveld, Vincent van Gogh, 1890. Imagem: Wikimedia |
— E a tília, lembras-te, onde eu fazia ginástica?
— Não falemos no que lá vai!
[...]
Luísa recebeu, na manhã seguinte, da parte de Sebastião, um ramo de rosas, magenta-escuro, magníficas. Cultivava-as ele na quinta de Almada, e chamavam-se rosas D. Sebastião. Mandou-as pôr nos vasos da sala, e como o dia estava encoberto, de um calor baixo e sufocante:
— Olhe — disse a Juliana — abra as janelas.
— Bem — pensou Juliana — temos cá o melro. O melro veio com efeito às três horas. Luísa estava na sala, ao piano.
Sebastião não conhecia Basílio pessoalmente, mas sabia a crónica da sua mocidade. Não havia nela certamente, nem escândalo excepcional, nem romance pungente.
Basílio tinha sido apenas um pândego e, como tal, passara metodicamente por todos os episódios clássicos da estroinice lisboeta: — partidas de monte até de madrugada com ricaços do Alentejo; uma tipóia despedaçada num sábado de touros; ceias repetidas com alguma velha Lola e uma antiga salada de lagosta; algumas pegas aplaudidas em Salvaterra ou na Alhandra; noitadas de bacalhau e Colares nas tabernas fadistas; muita guitarra; socos bem jogados à face atónita dum policia; e uma profusão de gemas de ovos nas glórias do entrudo.
Bal du moulin de la Galette, Pierre-Auguste Renoir, 1876 Imagem: Wikipédia |
As únicas mulheres mesmo que apareciam na sua história, além das Lolas e das Carmens usuais, eram a Pistelli, uma dançarina alemã cujas pernas tinham uma musculatura de atleta, e a condessinha de Alvim, uma doida, grande cavaleira, que se separara de seu marido depois de o ter chicotado, e que se vestia de homem para bater ela mesmo em trem de praça do Rossio ao Dafundo.
Un bar aux Folies Bergère, Édouard Manet , c. 1881. Imagem: Wikipédia |
Mas isto bastava para que Sebastião o achasse um debochado, um perdido; ouvira que ele tinha ido para o Brasil para fugir aos credores; que enriquecera por acaso, numa especulação, no Paraguai ; que mesmo na Baía com a corda na garganta, nunca fora um trabalhador; e supunha que a posse da fortuna para ele, seria apenas um desenvolvimento dos vícios. E este homem agora vinha ver a Luisinha todos os dias, estava horas e horas, seguia-a ao Passeio...
Sebastião era só. Tinha uma fortuna pequena em inscrições, terras de lavoura para o lado do Seixal, e a quinta em Almada, — o Rozegal.
Cova da Piedade, zona rural, Francesco Rocchini, anterior a 1895. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
As duas criadas eram ruito antigas na casa. A Vicência, a cozinheira, era uma preta de S. Tomé já do tempo da mamã. A tia Joana, a governanta, servia-o havia trinta e cinco anos; chamava ainda a Sebastião o "menino"; tinha já as tontices duma criança, e recebia sempre os respeitos duma avó [...]
Sebastião tinha estado nos últimos três dias em Almada, na quinta do Rozegal, onde trazia obras.
Voltara na segunda-feira cedo, e, pelas dez horas, sentado no poial da janela de jantar que abria para o terraçozinho, esperava o seu almoço, brincando com o Rólim — o seu gato, amigo e confidente da ilustre Vicência, nédio como um prelado, ingrato como um tirano.
A manhã começava a aquecer ; o quintal estava já cheio de Sol ; na água do tanque, sob a parreira, claridades espelhadas e trémulas faiscavam. Nas duas gaiolas os canários cantavam estridentemente [...]
Sebastião, que tinha estado na quinta de Almada quase duas semanas, ficou aterrado quando, ao voltar, a Joana lhe deu as grandes "novidades": que a Luisinha agora saía todos os dias às duas horas, que o primo não voltara; a Gertrudes é que lho dissera; não se falava na rua noutra coisa...
[...]
Uma ideia amparava-a: era que apenas Sebastião viesse de Almada, estava salva; e apesar daquela agonia miúda de todos os momentos, quase receava saber que ele tivesse chegado, — tanto a confissão da verdade lhe parecia uma agonia maior! Foi por esse tempo, então, que lhe veio uma lembrança — escrever a Basílio.
O terror permanente amolecera-lhe o orgulho, como a lenta infiltração da água faz a uma parede; e todos os dias começou a achar uma razão, mais uma, para se dirigir "àquele infame": fora seu amante, já sabia todo o caso das cartas, era o seu único parente... E não teria de "dizer" a Sebastião ! Já às vezes pensara que não aceitar dinheiro de Basílio fora uma "fanfarronada bem tola"! Um dia dia enfim escreveu-lhe. Era uma carta longa, um pouco confusa, pedia-lhe seiscentos mil-réis. Foi ela mesmo levá-la ao correio, sobrecarregando-a de estampilhas.
Nessa tarde, por acaso, Sebastião, que chegara de Almada, veio vê-la. Recebeu-o com alegria, feliz por não ter de lhe contar... Falou da volta de Jorge; aludiu mesmo ao primo Basílio, à "pouca vergonha da vizinhança..."
Déjeuner sur l'herbe, Édouard Manet, 1863. Imagem: WikiArt |
[...]
E foram descendo a rua, de braço dado, até ao Aterro.
No cais do Tejo, Alfredo Keil, 1881. Imagem: MNAC (museu do Chiado) |
O dia estava glorioso; um friozinho subtil errava; no ar luminoso, leve, traspassado de Sol, as casas, os galhos das árvores, os mastros das faluas, as mastreações dos navios tinham uma nitidez muito desenhada ; os sons sobressaíam com uma tonalidade cantada e alegre; o rio reluzia como um metal azul; o vapor de Cacilhas ia soltando rolos de fumo que tomavam a cor do leite; e ao fundo as colinas faziam na pulverização da luz uma sombra azulada, onde as casarias caiadas rebrilhavam. (1)
Vapor da carreira de Cacilhas, 1890, Óleo, Alfredo Keil Imagem: |
(1) Queirós, Eça de, O primo Basílio: episódio doméstico, Porto, Lello e Irmão, 1900.
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