quinta-feira, 21 de abril de 2016

Praia do Sol

A Caparica é uma inversão do Estoril. Uma inversão de nomes, bem entendido. Enquanto a praia do Estoril se chama a Costa do Sol, Praia do Sol se chama a Costa da Caparica. Ambas lindas e atraentes, embora com encantos diversos. Quem se dispõe pela primeira vez a pisar os areais da Caparica tem a impressão de entrar numa dessas extensões de deserto que o "simun" revolve e o "écran" dos cinemas nos apresenta como cenário de filmes portentosos.

Costa da Caparica, Praia do Sol, grupo de banhistas animado de comunicativa alegria, 1934.
Imagem: Hemeroteca Digital

Areia e sol. Ao fundo, o mar, o mar caprichoso, ora calmo, ora agitado, que, após uma convulsão capaz de subverter continentes, se espreguiça na areia com a gracilidade felina duma gatinha angora entre as espumas de rendas duma almofada caríssima.

Deserto chamamos nós a essa praia encantadora e silenciosa. Assim é, mas um deserto salpicado de oásis acolhedores em que andam ainda versos da "Paquita" ciciados pelas brisas na ramaria dos pinheirais distantes. 

Nessa formosa praia quási paradisíaca vive-se à vontade e sem ultrapassar nunca os limites da decência. Em tempos, dando um certo crédito a um eminente geólogo que afirmava ter encontrado o verdadeiro local do paraíso terreal, seguimos as suas maio sobre a investigações que tinham areia dourada verdades irrefutáveis.

Costa da Caparica, Praia do Sol, grupo de banhistas animado de comunicativa alegria, 1934.
Imagem: Hemeroteca Digital

O ilustre sábio garantia, por exemplo, que o Eden dos nossos primeiros pais devia ter estado situado nas alturas de Lisboa, abrangendo o Tejo, que seria nesse tempo um regato murmuroso, e terras de Cacilhas, Almada, Cova da Piedade e Caparica. 

A base científica de tão sensacionais afirmações não nos foi dado penetrar, visto que o citado sábio — e era êle! — após quarenta e tantos anos de locubrações ainda tinha umas dúvidas que o acompanharam à sepultura. Não queremos continuar os trabalhos do malogrado geólogo, como será de supôr, mas não deixamos de dar um certo crédito à hipótese de ter sido ali o local da tentação da maçã.

Daqueles barcos tão característicos de bico arrebitado como as babuchas dum pachá surge uma reminiscência, muito vaga, é claro, dos troncos de eucalipto que o nosso primeiro Pai teria furado a pedregulho para dar o seu passeio na baixa-mar e mostrar a nossa mãi Eva as belezas das algas e dos sargaços formando jardins multicôres o fundo das águas transparentes e mansas.

Costa da Caparica, Praia do Sol, um dos típicos barcos de pesca que fazem parte do panorama..., 1934.
Imagem: Hemeroteca Digital

Os idílios que ali visionamos, a cada passo, trazem-nos à lembrança a candura da primeira mulher escutando, indolentemente sentada na areia, o primeiro segrêdo malicioso do único homem que ela poderia amar... porque não havia mais nenhum para escolher. Não bastaria isto para convencer o mais scéptico dos mortais?

Mas não param aqui as provas. Da última vez que visitámos a praia da Caparica fomos atraídos por uma cena que nos impressionou profundamente. Um casal, de consórcio muito recente pela aparência, empenhava-se numa bem intencionada disputa.

Na altura da sobremesa a mulher uma Eva de formas esbeltas e tentadoras — oferecia ao marido a única maçã que levara no cabaz. O homem, pelo que depreendemos dos seus gestos, não estava muito disposto a aceitar. Que não queria, que comesse ela, que êle ficava muito grato, mas não tinha mais vontade. 

Pois a Eva tanto teimou, tantas carícias urdiu, tanta vez fez beicinho de amuada que o nosso Adão acabou por trincar a maçã, tal como o nosso primeiro pai no Paraíso. Onde estaria a serpente? Se a procurassemos bem, devia estar nalgum vestido de "tweed" beige ou em certo chapéu de preço que a moda passou a impôr. 

Costa da Caparica, Praia do Sol, idílio sobre a areia dourada, 1934.
Imagem: Hemeroteca Digital

O nosso veraneante de Caparica, no seu regresso a Lisboa, não deixou de acompanhar a esposa a uma das mais acreditadas lojas de modas, depois duma pequena paragem no Monte Pio. — Aqueles dois contos do vestido — diria êle, no dia seguinte, aos seus colegas de repartição — estão-me ainda atravessados na garganta... Deviam estar, deviam... (1)


(1) Illustração n.° 211, outubro de 1934

2 comentários:

Luis Eme disse...

É sempre um prazer passar por aqui.

Abraço Rui

Rui Granadeiro disse...

Fico grato Luis,

Um abraço