Vista parcial de Almada, reprodução do postal duplo Almada, Lado Sul, Lado norte, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 09, 10, c. 1905. Imagem: Hemeroteca Digital |
Lisboa pesa-me sobre o coração; sinto-me esmagado de tristeza, e procuro fugir ao contacto da realidade citadina.
Em vão invoco a grandeza heróica da sua população revolucionária; inutilmente me ofereço visitas aos seus museus e aos seus jardins.
É outro ar que desejo. Lá longe, o próprio sol tem para mim mais calor, a luz é mais cariciosa ... E, se as aves cantam de entre a ramaria densa, é no alvoroço de que eu as oiça!
Não deve haver — decerto não ha — quem mais do que eu apaixonadamente ame a liberdade, E sair de Lisboa é, hoje, para mim uma libertação...
Sôbre a tolda dum pequeno vapor, que deslisa na travesssia do Tejo, vamos seguindo, com o olhar distraído, a esteira da espuma branca, erguida entre bandos de gaivotas. Acompanhando o vôo, o nosso olhar encontra a vastidão do rio, no fantástico reverbero de oiro e púrpura acendido pelo sol. Os navios embalam-se na amplidão das águas, por uma extensão de léguas, enquanto a ligeira brisa enfuna a vela dos barcos, que, ao largo, semelham aves aquáticas, de palpitantes asas desprendidas.
Cacilhas! Ao gritar alto o conhecido nome do povoado, o homem de bordo não pode supôr que vou tocar a terra com a ânsia de Colombo, aportando à América. O meu filho, que tem quatro anos, pergunta-me se vamos longe, e só então reparo que não fixei o itinerário.
Enquanto a mãi compra, para o animar à caminhada, alguma fruta, decido-me pelo Alfeite.
"É meia legua"" declaro-lhe. O pequeno não faz idéia da aventura em que se mete, mas sorri, e afirma com todo o ar solene, possível na sua idade: "Não canso, papá. Eu sou forte, papá. Eu quero".
Querer é uma cousa muito grave; Êle o sabe, Êle o tem já experimentado. Querer é comprometer-se a poder. E fica assente que faremos a pé a légua, de ida e volta.
Almada à vista, 1937. Imagem: Hemeroteca Digital |
Já Almada nos fica, com o seu castelo, à direita. Vamos descendo para o Caramujo. As oliveiras estão carrega-das, notamos, e aquele fruto já maduro faz.nos lembrar oliveiras distantes, e minha mulher recorda que as duzentas oliveiras que seu pai plantou há cinco anos na terra onde nascemos, na Beira Alta, já em dezembro terão dado seis ou sete alqueires de azeite.
E falamos deste poucochinho com ufania de lavradores.
— Mas que lindo deve estar aquele olival do Monte Grande! — digo. E cito-lhe o dono, que é um dos homens a quem no mundo eu tinha direito a querer mal! Meu filho, a ouvir-nos falar, fila-me interrogadoramente, e o olhar de minha minha mulher tem menos brilho. A sombra do ódio que passa! E é necessário que eu evoque tida a doçura bíblica da paisagem, todo o encanto daquelas montanhas agrestes, daquelas várzeas férteis, a abundância dos prados e os rebanhos e a nossa casa, tão graciosa entre a verdura, lar amorosissimo onde três famílias, pelas festas do ano, vão encontrar-se num só coração, para que essa nuvem sombria se dissipe.
O que temos sofrido!
Ranchos sobrevém, e as moças levam ao peito ramos de flores, como sôbre um altar votivo. O riso canta, e não há ver-sos que à viola sôem mais claros do que êle, e digam mais da paixão, da ânsia da vida.
O riso canta, e nas faces, tão de saúde, de rapazes e raparigas, a alegria exulta.
Aqui uma dança começa; enlaçam-se os primeiros pares, e a música vai ge-mendo o que o amor em todos os peitos soluça.
Levanta-se o pó na estrada... É uma "cavalgada.... de burros de Cacilhas. Os "cavaleiros" andam quási todos pelos doze anos, e agüentam-se valorosamente na asinina desfilada; um, porém, vai oscilante, não podendo garantir-lhe os seus oito anos que não saía pela cabeça da montada.
Grito-lhes, detenho-os, e restabelece-se a ordem. O dos oito anos vai na frente, agora.
O meu pequerrucho não deixa mais que se converse de outra coisa, e tenho de obrigar a minha palavra sobre a compra de um burrinho como aquele, para quando éle andar na escola...
E discutiamos ainda — do caso, a idade do burro, a sua mansidão, mesmo a sua cor, quando chegámos à Quinta.
O Alfeite é uma vasta herdade, mal tratada, de inferior rendimento, decerto; mas, com as suas arribas banhadas pelas águas, e as suas matas coroando as colinas, é geralmente julgada um dos mais apraziveis arredores de Lisboa, que é célebre por os ter excelentes.
Mas, para mim, o Alfeite não é só um sítio pitoresco; é um lugar de repouso espiritual, de inefável recolhimento, em que todas as sensações dolorosas se apagam na contemplação da natureza, no silêncio do bosque e no doce marulho das vagas.
Sentamo-nos; e a vista logo abrange o panorama da cidade. Brilham a cúpula da Estrela e as flechas da Sé; e a cidade tumultuosa, áquela hora, assim de longe, parece-me adormecida na outra margem, como se a corrente serena, que nas minhas veias agora estúa, fôsse a mesma que bate no seu coração sempre febril...
Através da ramaria dos pinheiros mansos copados, voltando-nos para os montes de Almada, Lisboa evoca um quadro de Nápoles.
Em baixo a praia estreita, muito areada, sem rochedos, é uma fita de alvura nupcial.
Perde-se a vista no Tejo, embevecido na serenidade das suas águas, na ridente grinalda das vilas e aldeias ribeirinhas, que o saúdam das encostas.
Alfeite, 1937. Imagem: Hemeroteca Digital |
No ar puríssimo, essências fortes de floresta tonificam; ha mais doçura em nosso olhar, mais paz em nossa alma. É um banho lustral. Quando nos erguemos, sentimo-nos mais dos, mais vigorosos, melhores e enternecidos.
O pequeno mesmo, na esperança de colher medronhos, propõe "caminhar mais", e perdôa a algumas borboletas que com o chapeu colhêra. Fizeram pazes; desprenderam elas as asitas, e voou ele aos medronheiros.
Estávamos na colheita, quando da mais alta arriba unia voz chamou. Era algum que descia, a trazer-me um ramo grande, cheio de frutas róseas, para a "menina". O meu José trepou comigo a meia encosta, protestando pela sua virilidade.
O autor do artigo com o seu filho José no Alfeite, 1911. Imagem: Hemeroteca Digital |
Voltou contente. Mas eu é que tive de subir. Era um espanhol que, com dois patrícios seus, celebrava ali um pacto de amizade, de fraterna aliança, na luta amarga da existência. Pertenciam a essa generosa raça galega, tão boa, tão sofredora e tão resignada.
Falámos da sua vida; e cada um teve uma história breve e comovedora: a orfandade, o abandono, a miséria.
Calámo-nos; e todos nos fitávamos melancólicamente, quando um deles, de súbito, ergueu a voz, cantando. Foi o entusiasmo! E as insistências para que eu merendasse com eles, começaram...
"Então passe um copo de vinho?". Escusei-me, falei do almõço tarde, de doença, de dieta. Sorriam... Mas — "com permisso" — e aquele que levára o ramo a meu filho segredou algumas palavras aos outros. Todos se levantaram, e, deixando um copo cheio sôbre a relva, bradaram-me em côro: — "Beberá usled saludando su Pátria!"
Peguei no copo, e, mal os meus lábios o haviam tocado, logo os três espanhóis, celebrando o seu triunfo, gritaram — "Viva la República!" tão clamorosamente que meu filho correspondeu lá do fundo do carreiro onde ficára, o tirso coroado de róseas frutas, como um ceptro glorioso de pacificação, bem alto erguido na sua mão infantil que, pela minha, entra na vida, já liberta.
Quando os deixei, eu era amigo daqueles homens. nascidos em terra estranha.
Como os sentia muito mais perto do coração do que alguns portugueses que hoje tanto fiz por não lembrar!
ooOoo
É meia noite; da Cidade nenhum rumor se levanta — sossegada e tranqüila — como se, de todo, houvesse aquietado a sua cólera a boa nova do triunfo das armas republicanas na fronteira. Acabaria a luta fratricida?
Meu filho dorme em minha frente, sereno, e minha mulher, serenamente, está junto de mim, velando.
Alfeite, 1937. Imagem: Hemeroteca Digital |
Porque sinto, pois, que no meu rosto lágrimas vem tombando?
Lisboa, Outubro de 1911. (1)
(1) Lopes d'Oliveira, Um passeio ao Alfeite, Illustração n.° 271, 1 de abril de 1937
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