terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Cova da Piedade, 1874

Atravessando o Tejo, e desembarcando em Cacilhas, outro campo de distracções se nos depara.

Praça do Comércio e Rio Tejo, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Onde ainda ha pouco se encontrava por unico vehiculo o proverbial burro de Cacilhas, com o seu peito hirsuto de animal faminto, burro explorado cruelmente pelo burriqueiro seu dono, que engordava de rico á proporção que emmagrecia a olhos vistos o animalejo, capital vivo da sua industria asinina, encontram-se hoje numerosas seges e carros, que por uma estrada fácil e curta conduzem os passeantes á Cova da Piedade.

Chafariz de Cacilhas, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 4, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Confessemos que este nome tem um não sei quê de mysticismo sombrio. Cova da Piedade! Não faz lembrar esta designação os titulos d aquellas paisagens, ora melancólicas, ora medonhas, entrevistas por Bunyan na "Viagem do Peregrino" [John Bunyan (1628-1648), The Pilgrim's Progress], uma das obras primas da litteratura ingleza e da imaginação humana?

Vista parcial do lado sul de Almada, Possidónio da Silva, 1863
Imagem: Revista pittoresca e descriptiva de Portugal


É nessse livro de comoçoes violentas e de horríveis visões da alma, que se rasgam as gargantas dos montes mais sinistros que a nossa imaginação pôde phantasiar; é ali que se abre a nossos olhos o abismo sombrio e terrível a que Bunyan chamou "O valle da sombra da morte", valle tenebroso, em que se erguem pilhas de ca da veres desfigurados dp gente morta pelos gigantes que hahitam aquellas cavernas. A cidade de destruição, a lagoa tristonha, o valle da humilhação, valle retirado e verdejante, não podiam ter por companheiros mais outro logar que se chamasse "A cova da Piedade"?

Entrada do Jardim, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900

Pois apesar do titulo, que convida aos terrores do ascetismo solitário, não conhecemos logar que mais se anime de rumores profanos. Fez-se um jardim, que está povoado de arbustos ainda tenros. Ao meio d'elle, um coreto onde ás tardes dos domingos uma orchestra entretem os passeantes. Á roda do jardim edificações novas, alegres, e a poucos passos d'ali o hotel Club, que respira limpeza e aceio.

Hotel Club na Cova da Piedade, inaugurado a 31 de maio de 1874.
Imagem: Hemeroteca Digital

Á beira da estrada o Salão Veneziano, com os seus gelados e sorvetes e o seu champagne democrático, porque se serve aos copos, e cada copo a troco de um tostão. Digam-me se ha cerveja mais barata do que este champagne, que por escrupulos de seriedade não se atreve a espumar nos copos, tão grave é a sua compustura e tão urbana a sua effervescencia mesmo debaixo dos tectos de um salão veneziano, titulo que nos despeita na memoria as orgias pintadas por Paulo Veroneso, e as desinvolturas tempestuosas do Byron na poética cidade dos Doges.

Terreiro da Cova da Piedade, actual Largo 5 de Outubro.
Imagem: CMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes

Os ranchos cruzam-se com vivacidade meridional; no hotel nota-se continuo fluxo o refluxo de hospedes; de toda a paisagem allumiada pelas scintillaçòes e pelos raios do nosso bello sol exhala-se um aroma de contentamento, e de bem estar; n'uma palavra, respira-se na margem de além Tejo o ar saudavel da civilisação, ar perfumado de um certo conforto, que até agora não era o distinctivo dos areiaes ardentes e das povoações tristonhas da outra banda.

Cova da Piedade, Rua das Salgadeiras.
Imagem: CMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes


N'um paiz, em que o gosto pelas diversões marítimas fosse um sentimento popular, profundamente gravado na imaginação e nos hábitos communs, que admiravel theatro lhes estava aberto na vasta enseada do Tejo, a qual encurvando-se largamente diante da cidade, e bordando-se em suas margens ora de vinhedos, ora de praias arenosas, ora de pinhaes, ora de logares e de villas, que na brancura do seu cáio parecem lavradas de alabastro, aproxima-se de Lisboa pelo pontal de Cacilhas, que, n'este ponto, dá á margem fronteira, entalada entre a enseada e o rio, a apparencia de um isthmo  [...]

Paisagem com casa, Bertha Ortigão.
Cat. Palácio do Correio Velho, 17 de dezembro de 2008.
Imagem: Arcadja

Que vastidão de aguas, e que largueza de margens, ali e em toda a extensão do rio, desde Marvilla diante da qual elle se espraia como um mar mediterrâneo (na expressão feliz de Garrett) até á sua foz! [...]

O Tejo em frente do Caramujo, Revista Illustrada, fotografia de A. Lamarcão, gravura de A. Pedroso, 1892.
Imagem: Fábrica de molienda António José Gomes

Com o "fora da terra" paralysou-se de todo o movimento da sociedade elegante [...] (1)

Do Commercio do Porto
Cartas Lisbonenses, Visconde de Benalcanfor [Ricardo Augusto Pereira Guimarães]


(1) Diário Illustrado, 31 de julho de 1874

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