Praça do Comércio e Rio Tejo, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
Onde ainda ha pouco se encontrava por unico vehiculo o proverbial burro de Cacilhas, com o seu peito hirsuto de animal faminto, burro explorado cruelmente pelo burriqueiro seu dono, que engordava de rico á proporção que emmagrecia a olhos vistos o animalejo, capital vivo da sua industria asinina, encontram-se hoje numerosas seges e carros, que por uma estrada fácil e curta conduzem os passeantes á Cova da Piedade.
Chafariz de Cacilhas, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 4, década de 1900. Imagem: Delcampe |
Confessemos que este nome tem um não sei quê de mysticismo sombrio. Cova da Piedade! Não faz lembrar esta designação os titulos d aquellas paisagens, ora melancólicas, ora medonhas, entrevistas por Bunyan na "Viagem do Peregrino" [John Bunyan (1628-1648), The Pilgrim's Progress], uma das obras primas da litteratura ingleza e da imaginação humana?
Vista parcial do lado sul de Almada, Possidónio da Silva, 1863 Imagem: Revista pittoresca e descriptiva de Portugal |
Entrada do Jardim, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900 |
Pois apesar do titulo, que convida aos terrores do ascetismo solitário, não conhecemos logar que mais se anime de rumores profanos. Fez-se um jardim, que está povoado de arbustos ainda tenros. Ao meio d'elle, um coreto onde ás tardes dos domingos uma orchestra entretem os passeantes. Á roda do jardim edificações novas, alegres, e a poucos passos d'ali o hotel Club, que respira limpeza e aceio.
Hotel Club na Cova da Piedade, inaugurado a 31 de maio de 1874. Imagem: Hemeroteca Digital |
Á beira da estrada o Salão Veneziano, com os seus gelados e sorvetes e o seu champagne democrático, porque se serve aos copos, e cada copo a troco de um tostão. Digam-me se ha cerveja mais barata do que este champagne, que por escrupulos de seriedade não se atreve a espumar nos copos, tão grave é a sua compustura e tão urbana a sua effervescencia mesmo debaixo dos tectos de um salão veneziano, titulo que nos despeita na memoria as orgias pintadas por Paulo Veroneso, e as desinvolturas tempestuosas do Byron na poética cidade dos Doges.
Terreiro da Cova da Piedade, actual Largo 5 de Outubro. Imagem: CMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes |
Os ranchos cruzam-se com vivacidade meridional; no hotel nota-se continuo fluxo o refluxo de hospedes; de toda a paisagem allumiada pelas scintillaçòes e pelos raios do nosso bello sol exhala-se um aroma de contentamento, e de bem estar; n'uma palavra, respira-se na margem de além Tejo o ar saudavel da civilisação, ar perfumado de um certo conforto, que até agora não era o distinctivo dos areiaes ardentes e das povoações tristonhas da outra banda.
Cova da Piedade, Rua das Salgadeiras. Imagem: CMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes |
N'um paiz, em que o gosto pelas diversões marítimas fosse um sentimento popular, profundamente gravado na imaginação e nos hábitos communs, que admiravel theatro lhes estava aberto na vasta enseada do Tejo, a qual encurvando-se largamente diante da cidade, e bordando-se em suas margens ora de vinhedos, ora de praias arenosas, ora de pinhaes, ora de logares e de villas, que na brancura do seu cáio parecem lavradas de alabastro, aproxima-se de Lisboa pelo pontal de Cacilhas, que, n'este ponto, dá á margem fronteira, entalada entre a enseada e o rio, a apparencia de um isthmo [...]
Paisagem com casa, Bertha Ortigão. Cat. Palácio do Correio Velho, 17 de dezembro de 2008. Imagem: Arcadja |
Que vastidão de aguas, e que largueza de margens, ali e em toda a extensão do rio, desde Marvilla diante da qual elle se espraia como um mar mediterrâneo (na expressão feliz de Garrett) até á sua foz! [...]
O Tejo em frente do Caramujo, Revista Illustrada, fotografia de A. Lamarcão, gravura de A. Pedroso, 1892. Imagem: Fábrica de molienda António José Gomes |
Com o "fora da terra" paralysou-se de todo o movimento da sociedade elegante [...] (1)
Do Commercio do Porto
Cartas Lisbonenses, Visconde de Benalcanfor [Ricardo Augusto Pereira Guimarães]
(1) Diário Illustrado, 31 de julho de 1874
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