quarta-feira, 29 de agosto de 2018

A Clínica do Povo

Por iniciativa da L.U.A.R. (Liga de União e Acção Revolucionária) e com o apoio e "empurrão" do povo, o palácio de José Gomes, na Cova da Piedade, foi tomado. No desabitado e inútil palácio foi instalada uma clinica comunitária materno-infantil ao serviço das massas trabalhadoras mais desfavorecidas.

Fachada do palácio tomado pela L.U.A.R. (detalhe).
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A Cova da Piedade e mais concretarnente o Palácio de José Gomes foi escolhido entre os muitos palácios abandonados, desabitados ou subaproveitados, que ainda existem por este País para a instalaçãoo da primeira clínica popular materno-infantil do País.

Concordamos que a designação que transformou uma desabitada e requintada construção do século XIX num edifício para exclusivo serviço das massas trabalhadoras é capaz de ferir sensithlídade das opulentos do século XX.

Fachada do palácio tomado pela L.U.A.R. (detalhe).
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José Gomes, o homem que o engenho e a "eterna" gratidão perpetuou em estátua de bronze no pequeno jardim no Largo 5 de Outubro  — em frente seu palacete  — se deixasse o céu (deve ser lá que se encontram os que suavizaram os "pobres" explorados), teria certamente agradecido L.U.A.R. por ter salvo o seu palácio da ruína, talvez mesmo da pilhagem e com certeza da escandalosa inutilidade.

Os seus herdeiros — cidadãos de um País que segundo as vozes oficiais e oficiosas não possui instalações suficientes e apropriadas para que as reformas (do ensino, da saúde, da habitação...) se possam iniciar com "a urgèncra e necessidades desejadas", — tinham há 14 anos abandonado o senhoril palacete, sem contudo renunciarem ao requintado recheio, como fiéis e legitimos prolongadores de uma herança acumulada numa zona habitada por trabalhadores.

Foi este palácio, de 32 salas com 3 pisos e uma pequena e bem tratada quinta —  nurna vila onde apenas existe um hospital — com urna população de 20 mil crianças e igual número de mulheres casadas. que. no dia 28, pelas 17 horas e 30 minutos, a L.U.A.R. (Liga de Unidade e Accão Revolucionária) tomou com o apoio e "empurrão" da população trabalhadora.

Esta foto não foi tomada no Museu dos Coches...
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Estava dessa forma aplaudida a concretização de uma ideia nascida pela visão da opulência e do esbanjamento e pela vivéncaa de carências e exploração humana. 

São de Ferrando Pereira, responsável da L.U.A.R. na zona, as palavras que transcrevemos: 

"A acção que reabrimos nasceu de uma conversa que tive no Verão passado, com um casal francês que nos visitou. A construção do palácio prendeu-lhes a atenção, e, quando. souberam que estava desabitado, a senhora exclamou: "Que magnifíca clínica para parturientes." A partir dessa altura comecei a convencer os colegas da L.U.A.R. e a espalhar a ideia entre algumas pessoas da populacão".

Se a adesão dos militante da organização foi rápida, pois todas as outras alternativas que surgiram se enquadravam na linha da utilização do edifício para servir o povo trabalhador, já um pouco mais moroso foi no respeitante a uma parte da população. 

Para os privilegiados eram já conhecidos os possíveis destinos do glorioso palacete.

À herdeira, Fernanda Faria de Carvalho, uma senhora que mora na Avenida Sidónio Pais, de Lisboa, era-lhe mais grato saber que a sua herança iria servir para Museu, residència de embaixador ou para Paços do Concelho.

Mas não eram esses os desígnios dos homens que sentem e vivem no pulsar acelerado de uma vila de trabalhadores óptimas condições para ali serem implantados os alicerces do um serviço de saúde voltado para as reais necessidades dos moradora e não para a "massa" dos trabalhadores-habitantes. 

Nesta cozinha se prepararam fartos e opíparos manjares. Agora preparam-se refeições para o pessoal em serviço.
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Num comunicado divulgado à população a L.U.A.R. clarifica as intenções e objectivos revolucionários da tomada do palacete: 

O objectivo é transformar este magnífico palácio, inútil e amplo, numa clínica comunitária materno-infantil administrada exclusivamente pelos populares.

Boletim informativo da LUAR n° 1, outubro 1975.
1969 Revolucão Ressaca

Com os recursos precários de que se dispunha, foi posto a funcionar, tendo acorrido pessoas com crianças, que foram atendidas gratuitamente por alguns médicos que apoiam esta iniciativa. 

Pretende-se com esta acção lançar as ideias básicas de um Serviço Nacional de Saúde ao serviço das massas trabalhadoras mais desfavorecidas e controlado por elas. 

É evidente que acções como esta náo terão significado se não se alargarem à populaçáo de todo o País, se não assumirem uma forma poder popular (contra-poder popular).

Para que o povo futuramente ganhe o Poder é necessário para já, a n´vel político e económico, haver um controlo efectivo por parte das massas trabalhadoras. 

É aqui que surge a necessidade dos contrapoderes populares, significando isto que ern regime da exploração cápitalista quem comanda o Poder não pode servir o povo..."

"SERVIR O POVO" 

A clínica cornunitária materno-infantil já está a funcionar. Diariamente, aproximadamente 20 pessoas são gratuitamente recebidas pelos serviços clínicos — pediatria e clínica geral — assegurados por 4 médicos e enfermeiros que livremente puseram as suas horas disponíveis e os seus recursos ao serviço da revolução económico-social.

O dr. Açucena, pediatra que aderiu, ainda no tempo da incubação do ideia, à tomada do palácio e desde e primeira hora presta assistência clínica disse-nos: 

Como médico municipal que sou tinha de aderir e sempre aderi a iniciativas de carácter humanitário. Não sou um militante da L.U.A.R. mas sim um médico progressista.

Dr. Açucena numa consulta de pediatria na clínica popular materno-infantil ao serviço exclusivo das massas trabalhadoras.
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A uma pergunta que lhe fizemos sobre a viabilidade de urna assistência médica contínua e progressiva — o que implica maior aderència da parte de médicos que queiram pôr verdadeiramente a medicina ao serviço do povo — disse-nos: 

Há ainda alguns médicos que põem certas reticências em virtude do modo como os serviços foram iniciados, preferindo aguardar uma legalizaçáo.

De qualquer modo contamos para já com médicos suficientes para não só dar concretização a urna ideia que nasceu de uma organização revolucionária mas também para alargar a clínrca a outros serviços médicos indispensáveis nesta zona. O que está em jogo nesta altura é querer ou não servir o povo trabalhador.

Por enquanto apenas as salas do rés-do-chão estão a ser utilizadas. Brevemente outras salas serão utilizadas para instaurar um serviço de obstetrícia e ginecologia.

O recheio, revelador ainda de uma opulência ali vivida, está devidamente inventariado e guardado em salas fechadas.

Interior de uma das salas requintadas do palácio que foi pertença de José Gomes.
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Os militantes da L.U.A.R. esperam, e fazem esforços nosso sentido, que no prazo de uns mês a população da vila, em Assembleia, nomeie uma Comissão que tome conta de clinica comunitária materno-infantil e vigie para que ela cumpra a missão a que está destinada. 

"Os dados foram lançados".  É ao povo da Cova da Piedade que cumpre assumir e desenvolver contra a exploração Capitalista, que tem sido longa e tudo nos leva a supor que será dura.

Se podemos dizer que a L.U.A.R. deu o exemplo, é ao povo que compete extirpar do seu seio as formas parasitárias e exploradoras que continuam e travar e marcha para o socialismo. 

Joaquim António Aguiar, sentado de fronte da estátua de bronze do benemérito José Gomes, tentando recuperar as energias gastas ao longo dos seus 75 anos do vida, revelou-nos as suas impressões que coincidem com muitas outras opinióes que auscultámos.

Isto foi muito bem feito. Não se admite que uma casa destas estivesse aos ratos. Mas ainda aí há mais casas que precisam do ser arejadas. 

De facto outros casas já foram arejadas e transformadas em instalaçõeses de serviço público. Na Parede, no Barreiro o ern Lisboa o exemplo dado pela L.U.A.R. em conjunto com a pooulacão do Cova da Piedade produziram fruto  um fruto que é bem digerido pela debilitada população. 

Ouçamos alguns dos depoimentos que recolhemos durante uma consulta na clinica popular materno-infantil da Cova da Piedade, que tem funcionado diariamente das 16 às 20 horas. 

Sala de espera da nova clínica materno-infantil da Cova da Piedade.
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Luísa Miranda do Jesus tem 23 anos e veio há dois meses de Mocambique:

Cheguei há pouco tempo de Moçambique e como a vida está cara e eu estou sem dinheiro trouxe o rnenino aqui para ser consultado. 

Maria de Lourdes Pires chegou há dois meses de Angola. Tem 26 anos e 2 filhos:

A criança estava tratamento em Angola, mas quando cheguei tive de parar o tratamento. Não me era possível recorrer aqui a um especialista de pele, que não são tão baratos como isso. 

Estrudes Maria Tavares explica porque optou pela clínica popular:

Anteriormente ia a urn consultório, era atendida à pressa e pagava 150$00 cada consulta. É a segunda vez quo trago aqui o meu filho e além de ser de graça parece-me que consultam melhor. 

Maria Amélia tem 46 anos. Disse ser doméstica e mal atendida nas "Caixas":

Vim aqui porque o meu marido não pode pagar para eu levar o filho a um medico particular. Na Caixa não nos atendem como deve ser. Passam o tempo a fazer croché. A minha filha já por três vezes que tirou análises, mas nunca mais aparecem. O médico bom a, pode, mas elas não as conseguem encontrar.

Felicidade Mendes, com o mais novo dos 3 filhos ao regaço, contou-nos: 

Estou cheia de ir aos médicos. Agora venho aqui para ver se me curam a menina. Tirei-lhe análises na Estefânia e disseram-me que tinha uma inflamação. Só mandam mudar do leite o mais nada. Fui a um médico particular. paguei 200$00. pata me dizer: "Não encontro nada, não sei porque não come". 

portadaloja

O que eles querem é servir-se dos nossos filhos para estudarem. Façam isso com os filhos deles. (1)

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Os estrangeiros que vieram para Portugal no pós-25 de Abril participaram nas mais diversas actividades. Lembro-me, por exemplo, que a certa altura o grafismo e a paginação do jornal do MES (Movimento de Esquerda Socialista) foram obra de um artista gráfico inglês, ou que na Clínica Popular da Cova da Piedade (freguesia do concelho de Almada), havia vários médicos estrangeiros voluntários. 

Cova da Piedade, palacete António José Gomes (detalhe).

Esta Clínica foi criada em Setembro de 1974 por militantes da LUAR e do PRP, mas dela faziam parte sobretudo independentes, em particular estrangeiros.

A Clínica, instalada num antigo palacete abandonado pelos donos, começou como centro de planeamento familiar que dava informação e aconselhamento sobre medidas anticoncepcionais. Tinha uma permanência aberta 24 horas por dia e acorriam ali muitas pessoas da zona, sobretudo mulheres, muitas das quais puderam resolver gratuitamente os seus problemas, e em 1975 começou a ter consultas de medicina e abriu um infantário. 

As pessoas pagavam apenas, numa caixa de papelão à saída, o que achavam que podiam e deviam pagar, e alguns dos médicos, sobretudo os estrangeiros, estavam ali alojados em instalações improvisadas. 

Tal como muitas outras iniciativas semelhantes, a Clínica foi encerrada por imposição militar após o contragolpe do 25 de Novembro. 

A cineasta Margarida Gil, em 1975, fez o seu segundo filme sobre essa clinica, intitulado Clinica Comunal Popular de Cova da Piedade, e teve grandes elogios no festival de cinema de Leipzig, na Alemanha. (2)

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Clinique Populaire de Cova da Piedade 

L'occupation s'est faite après une intense campagne de popularisation sur le quartier. L'occupation elle-même a été faite par 150 militants de la L.U.A.R. et la participation des habitants du quartier.

Critique Socialiste 25, Paris, Syros, 1976
Gallica

L'aménagement de la clinique, les réparations ont été effectuées par des gens du quartier, des usines avoisinantes et des militants.

Le jour même de l'occupation, une imprimerie fournissait à la clinique enveloppes et ordonnances à en-tête de la clinique populaire.

Le matériel de radioscopie a été payé par les travailleurs de la Lisnave, celui d'anesthésie par les travailleurs de la mairie. Pour faire fonctionner la clinique, il est demandé aux utilisateurs une cotisation de 30 escudos par mois (une consultation en médecine libérale coûte 150 escudos). Ensuite tous les soins sont gratuits. Ils sont assurés par 12 médecins et infirmières qui travaillent bénévolement. Il était prévu par la suite un salaire égal pour tous.

Les médicaments sont fournis par la population ou par les travailleurs des laboratoires pharmaceutiques.

Les habitants du quartier sont très vite venus consulter à la clinique qui assurait au mois de juillet 60 à 90 consultations par jour.

Au cours de la consultation, on explique au malade les causes de sa maladie, la nature des médicaments qui lui sont prescrits.

Toutes les consultations de gynécologie sont suivies d'un entretien entre la malade et une assistante sociale. Il existe une équipe de planning et d'hygiène. Elles se déplacent dans les usines et les bidonvilles. Enfin dans le cadre de la consultation de planning, il est pratiqué la pose de stérilet, des avortements et la prescription de pilules.

Sur le plan de la gestion, il y avait au mois de juillet une réunion par semaine entre les médecins, le personnel et des militants de la L.U.A.R.

La commission de gestion était composée de militants de la L.U.A.R. Nous ne savons si le projet d'élection d'une commission composée de travailleurs et d'habitants a été réalisé. Mais il semble que le projet initial d'intervention populaire n'a pu se développer conformément aux espoirs des promoteurs et que l'action de la clinique soit restée dans les schémas classiques. (3)


(1) Joaquim Gaio, Século Ilustrado, 15 de março de 1975 (ref. portadaloja)
(2) Os estrangeiros na revolução social do 25 de Abril
(3) Parti socialiste unifié (France), Critique Socialiste, Paris, Syros, 1976


Informação relacionada:
Syringues are the new weapons in the Portuguese revolution, New Scientist, 11 March 1976
Margarida Gil, Clínica Comunal Popular de Cova da Piedade, documentário, P/B, 16 m.

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