sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Os pergaminhos de Cacilhas

Era ao anoitecer e eu estava inda em Lisboa. 

Praça do Comércio e Rio Tejo, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Circumstancia desagradavel para quem se tem demorado pelo Caramujo a saborear os ultimos sorrisos e a placida melancholia do ameno Outono d'este anno. 

Ora o Caramujo, como de certo sabem, fica na margem esquerda do Tejo de cristal; a nossa querida Lisboa fica na margem direita. Daqui se deduz, por um syllogismo incontroverso, que para se ir de Lisboa ao Caramujo tem de se atravessar o rio, e para se atravessar um rio é necessario um barco, a menos que algum Moysés condescendente não haja por bem rasgar com a sua varinha as aguas, e conceder-nos a passagem a pé enxuto, como se o nosso itinerario fosse para a Palestina.

Cova da Piedade, Arnaldo Fonseca, 1890
Boletim do Grémio Portuguez d’Amadores Photographicos

Ora em consequencia d’esta serie de raciocinios andava eu pelos caes de Lisboa á procura não de um Moysés, mas de um bote, exactamente como Jeronymo Paturot andava por esse mundo de Christo á procura da melhor das republicas. 

Mais feliz do que Paturot, encontrei o que procurava. E verdade que o encontrei no caes do Sodré. Ora as republicas dos "caes do Sodré" são, segundo assevera o Senhor Francisco Palha, as mais anarchicas e as mais difficeis de governar.

O bote appareceu. Estava cercado de escaleres americanos, de barcos abandonados já pelos seus patrões, e que, baloiçando-se e embalando-se com o murmurio dé agua negra que lhes beijava a amurada, pareciam preparar-se para dormir á luz das estrellas e da lua, que surgia larga e vermelha, como um escudo em braza, no horisonte Oriental. 

Os remos cairam na agua, o bote deslisou silencioso, como um espirito dos humidos abysmos, por entre esse labyrintho de, mastros, e a final entrámos na esteira luminosa que a lua projectava sobre o rio.

Soprava do norte uma fresca viração encrespando levemente as ondasinhas, que se franjavam de espuma. Soltou-se a vela, O bote curvou-se graciosamente ao impulso d'essa aza branca, infunada pela brisa, e partimos.

Catraio e cacilheiro, gravura, João Pedroso, 1860.
Hemeroteca Digital

Pouco a pouco Lisboa foi fugindo de nós, involta, como fada nocturna, no seu véo de chammas. O confuso ruido que se lhe exhalava do seio foi esmorecendo com a distancia e transformando-se n'um murmurio vago, respiração immensa d'essa Babylonia, que antes desperta do que adormece com as primeiras horas da noite.

Era o rumor das carruagens, era o enxamear da turba ás portas dos theatros, era o ultimo vozear dos pregões confundindo-se nesse indisivel sussurro que vinha expirar no silencio augusto de uma noite de luar no Tejo.

O bote corria, ligeiro como um corcel generoso que sente a espora do cavaleiro, e como ele ora abaixava a cabeça, procurando afrouxar o passo, e deixando bater a vela no mastro, ora erguia garboso o collo, galgava o cume boleado de uma vagasinha que vinha, enrolando-se, quebrar no costado do barco, e deslisava de novo rapidamente na esteira espumosa branqueada pelo clarão da lua. 

Já lá ficava longe a Babylonia rumorejante, e os vultos immoveis dos navios do quadro estampavam, por um e por outro lado, a sua mastreação fina e airosa no fundo transparente da atmosphera inundada de luar.

Além Lisboa tornava-se já unicamente visivel por uma larga faxa de luz scintillante que orlava o rio. Ao seu eterno clamor succedera o murmurio flebil e queixoso das aguas.

Depois a margem fronteira foi avultando, avultando, e veio ao nosso encontro com a sua casaria branca, e silenciosa, illuminada apenas em cheio pelo clarão argenteo e melancholico da pallida rainha da noite.

Cacilhas vista do Tejo, gravura xilográfica, João Pedroso, 1846
Imagem: revista O Panorama, n° 18, 1847 [*]

Cacilhas dormia á beira do rio que lhe espumava no caes; a sua tranquilidade eremitica, o silencio em que estava immersa, o alvor deslumbrante das suas casas, apenas illuminadas pelo jorro de luz, que lhe chovia do carro prateado de Diana, contrastavam de um modo notavel com tumultar de Lisboa, sua donosa visinha.

E eu, encostado na popa do bote, affastava os olhos do immenso esplendor com que a grande capital incendiava o espelho do Tejo, e ficava-me enlevado a mirar essas casinhas brancas, tão socegadas, tão mudas, todas banhadas pelo luar, agrupadas timidamente, não ousando sequer mirar-se nos crystaes do Tejo, e molhando timidamente os pés na espuma, que resaltava da vaga aos degraus lodosos do caes.

E pensava:

O que é a popularidade! Ente caprichoso que ao acaso escolhe um homem, uma aldeia, uma cidade, um reino, e o eleva ao fastigio da gloria, e o illumina, e o immortalisa, e o cinge de capellas de loiro, deixando no olvido outro homem, outra aldeia, outra cidade, outro reino, que tem titulos iguaes!

Pontal de Cacilhas, ed. Alberto Malva/Malva & Roque, 135, década de 1900
Delcampe

Cacilhas! É quasi a incarnação da prosa. A celebridade dos jumentos atou-se fatalmente a esta aldeia ou villa, e condemnou-a para sempre a ser proscripta do dialecto poetico. Ser o cantor de Cacilhas equivale a ser o Camões da guerra do pão barato, ou o Petrarcha d’uma forçureira. Nicoláu Tolentino, querendo estampar o ultimo vergão do ridiculo nas faces d'um pobre versejador, depois de interpellar asperamente Jove por consentir que "um homem de couros baios — siga ás musas suas filhas"

Potente Jove onde estão
Os teus vingadores raios!

requer-lhe formalmente que, para se desaggravar de tamanha injuria, ordene a esse malvado que

Saia logo do Parnaso
E passe para Cacilhas. 

Aqui está como fica desacreditada uma povoação! Que tinha a pobre Cacilhas feito a Nicolau Tolentino [v. Nicolau Tolentino, Obras completas, Voume II], para que o maganão do poeta a escolhesse como antithese do Parnaso, e a lembrasse como o unico logar da terra capaz de receber um versejador de má morte?

"Não ajuda ao padre a cara" ilustração de Nogueira da Silva.
Nicolau Tolentino, Obras completas, Voume II

E comtudo a pobre vilasinha alvejava tão serena e risonha, tão banhada de poesia naquella noite em que o meu barquinho cortava as aguas phosphorescentes! Que mais bella póde ser Sorrento, reclinada á beira da sua bahia napolitana, Procida ou Castellamare debruçadas sobre as ondas azues do Mediterraneo?

E comtudo essas cidadinhas de poeticos e sonoros nomes vivem na nossa memoria perfumadas pelas grinaldas de versos, com que todos os poetas desde Virgilio até Lamartine as enramaram, e Cacilhas, a pobre Cacilhas, mal ousa intrometter-se, como rima desdenhada, no fecho d’uma decima satyrica!

Mas não! engano-me! houve um poeta que arrostou o preconceito e que deu a Cacilhas foros de nobreza tradicional. Esse poeta foi Antonio de Sousa Macedo, o embaixador de D. João IV na Inglaterra, o author das Flores d'España, o cantor da Ulyssipo.

Este Ulyssipo é um maravilhoso poema! Trata da fundação de Lisboa, segundo a acreditada versão de frei Bernardo de Brito. Ora é o caso que no tempo em que Ulysses andava ás aranhas pelo Mediterraneo, reinava em Lisboa até Santarem um poderoso rei chamado Gorgorís, que morou, segundo parece, no paço das Necessidades, e cujo exercito já n'esse tempo manobrava em Tancos. Ulysses, que era rei de Ithaca, o que vem a ser quasi o mesmo que ser rei da ilha do Fayal, andando á procura da sua ilhota do Archi pelago veio ter á foz do Tejo, engano que se parece muito com o d'um capitão de navios que, querendo ir de Lisboa a Setubal, fosse parar á Islandia. Mas d'este engano resulta muita bulha entre o tal Gorgoris e Ulysses, bulha que se acabou casando este com D. Calypso, filha d'aquelle, e fundando a cidade a que deu o seu nome, nome que, pela corrupção da linguagem se veio a transformar em Lisboa.

Ora, segundo nos informa o senhor Antonio de Sousa Macedo, não é menos digna de menção a origem dos nomes dos arredores de Lisboa. Arroyos era o nome d'um gigante que requestava uma nympha, e a nympha para fugir d’elle transformou-se n’uma fonte, que é nem mais nem menos que o chafariz, de Arroyos! De fórma que a magana da camara municipal, que nós julgavamos um modelo de pudicicia, tem um verdadeiro harem nas praças da capital, harem de nymphas que se transformaram em chafarizes!

E Cacilhas?

The Harbour of Lisbon (praia de Cacilhas), Charles Henry Seaforth (1801-c. 1854).

Cassilia, que ditosa companheira
Jupiter déra a Gorgoris famoso,
Teve d’ella a Calypso, unica herdeira 
Dos reinos que domina poderoso. 

Estes reinos eram Lisboa, Santarem, Aldeia-Gallega, e não sei se a Lourinhã. 

Amava a mãe á filha de maneira, 
Que, por saber seu fado duvidoso, 
Consulta a Chiron, sabio cuja essencia
Abonou ante nós larga experiencia.

Este Chiron, que depois de ensinar Achilles, andava naturalmente por este mundo, dando lições por casas particulares, prophetisa-lhe toda essa tramoia do Ulysses, e amnuncia-lhe que sua filha, a poderosa herdeira dos reinos de Santarem, Lisboa e Aldeia-Gallega, virá a casar com um rei não menos poderoso, que lá na Grecia governa uma ilha formidavel, ilha que não tem menos de meia legua de comprimento. Cassilia fica louca de alegria com tal notícia, e tanto que morre, mas, antes de morrer, diz assim:

No monte, que mais alto se levanta
Nas enseadas do Occéano por onde,
Movendo o Tejo a cristallina planta,
No mar as aguas não a fama esconde,
Por onde me ha-de entrar ventura tanta,
Se aos astros o successo corresponde,
Sepultem minhas cinzas, que ali quero
Dos fados esperar o bem que espero.


Vinha ella a dizer na sua que queria ser sepultada no monte d'Almada para dar fé de quem entrava a barra. Assim se fez, e de Cassilia, essa curiosa endemoninhada, que até depois de morta o era, veio, como podem suppôr, o nome de Cacilhas.

Portugal, Costumes 8, Carregando um burro, En chargeant un âne (imagem editada),
cf. Luís Bayó Veiga, Crónicas d'agora sobre Cacilhas d'outrora, vol. I.
União das Freguesias de Almada, Cova da Piedade, Pragal e Cacilhas

Já vêem que não são para despresar os pergaminhos cacilhenses, e que um poeta qualquer poderá cantar Cacilhas sem que os famigerados jumentos intervenham forçosamente nos seus versos. (1)


(1) Manuel Pinheiro Chagas, Scenas e phantasias Portuguezas, 1867

Informação relacionada:
Morte de Manuel Pinheiro Chagas, O Occidente, 15 de abril de 1895

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