quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Tristezas não pagam dívidas

Cacilhas e Almada foram outras estâncias onde os "ruços" se aproveitaram para as folgas divertidas dos lisboetas. Cacilhas ganhou até foros de Universidade pela abundância de "bacharéis" que se estadeavam no seu largo, oferecendo-se ao apetite viajeiro da estúrdia elegante primeiro, de patuscada popular depois. A burricada perdeu com o tempo os seus pergaminhos de elegância.

Os ingleses em Cacilhas, Os costumes antigos - Portugal de algum dia, ilustração de Roque Gameiro, 1931.
Roque Gameiro.org

D. Fernando 1.° era amador estreme dêsse divertimento cacilheiro. Quando a política zumbia muito e os generais e os políticos fervilhavam no paço à volta da rainha, o rei preferia os burros aos cortesãos guerrilheiros e, com três ou quatro âulicos, cavalgava os jumentos da Outra-banda e ía divertir-se a Almada, à Cova da Piedade, ao Monte ou ao Alfeite.

A preferência régia impôs como moda a burricada de além-rio, e esta tornou-se um dos passeios obrigatórios de Lisboa para os seus naturais e até para os estrangeiros. Visitar então Lisboa e não andar de burro na Outra-banda, era como hoje não ir ao Jardim Zoológico ou à Estufa-fria do Parque da Avenida.

Pontos nos ii, 27 de setembro de 1888

O negócio dos burros cresceu: quási que se formaram emprêsas, companhias, trusts de jumentaria que alargavam a sua exploração até os confins de Caparica.

Groupe d'indigènes des déserts du Sud du Portugal faisant la promenade en âne; je suis à l'extrême droite.
— Costa da Caparica. Jour de Pâques Année 1907 —.
Delcampe

Era por isso freqüente os estrangeiros alcandorarem-se até Almada a ver a vista sôbre a cidade, e a marujada inglêsa não faltava a essas excursões de turismo obrigatório, equilibrando-se sôbre o tombadilho extravagante e movimentado das albardas mal seguras das cilhas.

Hoje a própria burricada de Cacilhas caíu em desuso. As camionetas, em vez dos ruços, é que enchem o largo e o negócio faliu inteiramente.

Cacilhas, Carro Carreira da Empreza Camionetes Piedense, Leslie Howard, década de 1930.
Museu da Cidade de Almada

É mais um costume popular que se arquivou no sótão das recordações, e só andam de burro os donos dos burros, até que um dia, dispensado mesmo tal auxílio, êste prestante animal se arquive numa mangedoira de museu. (1)


(1) Roque Gameiro, Matos Sequeira, Portugal de algum dia..., Lisboa, Empreza Nacional de Publicidade, 1931

Artigo relacionado:
Jackass Bay (ou Os ingleses em Cacilhas)

Informação relacionada:
Roque Gameiro.org: Costumes antigos, Os / Portugal de algum dia (1931)

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