quinta-feira, 28 de maio de 2020

O fim do neo-realismo: António Lobo Antunes e o elogio do subúrbio

A ter de extrair, da vasta obra romanesca do escritor, um excerto passível de configurar um manifesto do “ser português”, quer pelos componentes tradicionais que retoma, quer pelas sugestivas modulações que lhe imprime, a opção terá de recair sobre este desabafo de Alice, personagem de "O Manual dos Inquisidores", em cujo nome ressoa, em modo paródico, um país que não será o das "maravilhas":

António Lobo Antunes e José Cardoso Pires na década de 1980.
Luar de Janeiro

se houvesse menos mar sempre tínhamos um bocadito de espaço para umas nabiças e umas couves, se houvesse menos mar plantávamos batatas e jantávamos, existindo nesta terra um Governo inteligente vendia logo a porcaria do mar e do calor aos suíços que são ricos ou aos ciganos que são espertos e arranjavam maneira de se livrar das ondas a retalho, vendia o mar aos suíços que se pelam por iodo e comprava uma postazinha de bacalhau do alto para a gente, a minha prima Alda que preferia a Cova da Piedade ao Paraíso 


Cova da Piedade, avenida da Fundação, 1973.
Maria Alfreda Cruz, A Margem sul do estuário do Tejo

— Ai quem me dera em Almada quem me dera no Feijó Alice [O Manual dos Inquisidores, 212].

* * *

De "Tratado das Paixões da Alma", onde esse espaço periférico surge amplamente descrito, vamos colher uma passagem significante, dada por meio de um esquema de lateralizações sucessivas. 

Numa disposição gráfica que sugere uma carta (nunca escrita), o espião Alberto, personagem que encaixa no tipo cómico do "marido traído/corno manso", vai evocando episódios de vida em comum, numa espécie de devaneio poético, e ensaiando as palavras que nunca dirá à ex-mulher, Manuela, cuja traição surpreendeu, em flagrante. 

Tudo isso representa, na economia narrativa, matéria excrescente, mas alimenta generosamente a atmosfera cómica do romance: 

Almada, Manuela, esconde-se inteira atrás dos recessos dos pilares de cimento da estátua do Cristo Rei, e é uma espécie de enorme Santa Iria da Azóia invadida pelos assopros do Tejo, com gaivotas à deriva que os anúncios dos restaurantes e as cores dos semáforos alucinam, a impedir-lhes o rastro de alface, sopa de grão e óleo dos cargueiros, compelindo-as a inundar as cervejarias em crocitos desesperados de fome, tentando pousar na espuma das canecas como no visco da margem, à cata dos pequenos caranguejos que trotam entre os seixos. 

Vista parcial de Almada, década de 1970.
Delcampe

Os edifícios e as árvores esbarram em bombas de gasolina, sucursais de banco e moradias de gárgulas no telhado, nas quais um braço de rio vem espichar nos lavatórios quebrados a sua fetidez de peixe. 

Edifício Meia-Proa, na Costa da Caparica, onde num dos apartamentos José Cardoso Pires escrevia.
Delcampe

Em Almada até o centro é subúrbio [Tratado das Paixões da Alma, 94].


(1) Susana Carvalho,  A ficção de António Lobo Antunes: os mecanismos do cómico, 2018

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Leitura recomendada:
António Lobo AntunesO Manual dos Inquisidores, 1996
António Lobo AntunesTratado das Paixões da Alma, 1990

Leitura relacionada:
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2 comentários:

Anónimo disse...

A terceira foto é na Costa ;)

Rui Granadeiro disse...

Tem razão.

Trata-se do Edifício Meia-Proa, na Costa da Caparica, onde num dos apartamentos José Cardoso Pires escrevia.