segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A casa cor-de-rosa

Fernanda de Castro (1900-1994)

Quando voltei de África, esmagada pelo horror das últimas semanas, compreendi logo que a casa da minha infância já não era a casa da minha infância. Os móveis eram os mesmos e estavam no mesmo sítio, as dimensões do sótão eram as mesmas, as flores continuavam a desabrochar nos canteiros da tia Emiliana, a malva-rosa continuava a enfeitar o muro esboroado do velho poço, do mirante via-se o mesmo Tejo e avistavam-se as mesmas gaivotas e as mesmas fragatas. E, contudo, nada estava igual, tudo parecia diferente.

Fernanda de Castro e Antoninho Gabriel (detalhe) por Sarah Affonso, 1928.
MNAC/Flickr

Levei muito tempo mas acabei por compreender que a mudança não estava nas coisas, mas nas pessoas. Todos andavam vestidos de preto, incluindo as criadas que há muito faziam parte da família. Ninguém punha uma flor numa jarra, as portadas das janelas estavam fechadas e as janelas só se descerravam à noitinha, não fosse entrar um raio de Sol que aliviasse, por momento que fosse, o luto das paredes e das pessoas.

A minha bisavó, que era, como o meu pai dizia, a trave mestra da casa, fora a única que reprovara, que não aceitara o luto integral. Sobre o vestido de là de todos os dias, sobre o vestido de seda preta lavrada dos domingos e das visitas, usava um grande avental de seda roxa com uma algibeira de onde continuavam a sair maravilhas: libras, cigarros e garrafinhas de chocolate, berlindes e abafadores coloridos para os rapazes, cautelas sempre brancas para o tio António.

Um dia apareceu uma modista com figurinos e amostras de tecidos pretos e dias depois a minha irmà e eu tínhamos os nossos vestidos de luto pesado, sem os quais não poderíamos ir à rua. Porque era a mais velha, o meu vestido tinha uma golinha de crepe também preto. Quando a minha avó me viu com aquele vestido, pálida, triste e desajeitada, pegou deliberadamente numa tesoura, descoseu a golinha de crepe que mandou substituir por outra de piquet branco sem se importar absolutamente nada com o mau humor e a reprovação da tia Emiliana.

— Que vão pensar, minha mãe, quando virem a pequena, já tão crescida, de luto aliviado dois meses depois de lhe ter morrido a mãe? (...)

Pontal de Cacilhas, ed. Alberto Malva/Malva & Roque, 135, década de 1900.
Delcampe

Não, a casa da minha infância já não é a casa da minha infância. Agora, mais do que nunca, está vazia, para sempre vazia. Numa noite de Verão, calma e sem sofrimento, a minha avó adormeceu e nunca mais acordou.

A casa inteira ficou outra vez de luto pesado, mas desta vez, como ela queria, não se fecharam janelas, e na velha terrina da Índia, no meio da mesa, havia sempre rosas frescas, as rosas da tia Emiliana que não ousou desta vez ignorar as últimas vontades da mãe, vontades não expressas em cartas ou testamentos, mas em toda a sua vida de noventa e sete anos.

As pessoas agora movem-se na casa como fantasmas, como se nenhum gesto tivesse já razão de ser, como se o silêncio fosse a única linguagem da casa deserta.

Acabados para sempre os mistérios do sótão, os segredos do poço, o óculo do mirante pelo qual se via o Tejo até à barra. Acabadas a malva-rosa, a mesa de pedra das merendas e as rosas-de-toucar: a casa já não pertence à família.

Aliás a família já não se interessa pela casa que não é a mesma, sem a mãe, sem a avó, sem as rosas da tia Emiliana, sem as crianças que em breve serão adolescentes, com saudades de si próprias e do puro cristal das suas almas.

Quando a casa se vendeu e a família se dispersou, surgiu nas nossas vidas uma nova personagem (...)

Quando fechei pela última vez a porta da casa cor-de-rosa puxando pela mãozinha de ferro que era o batente dessa porta, sabia perfeitamente que não estava só a despedir-me da casa e da quinta, do mirante e do poço nem mesmo das presenças invisíveis mas muito reais da minha avó e da minha mãe, mas ainda e sobretudo da minha infância.

Cacilhas, Rua Direita (ed. Martins & Silva para distribuidor local), década de 1900
Delcampe, Oliveira

Ficavam ali para sempre os meus últimos bibes de menina, as últimas fitas que prendiam as minhas tranças, os meus pequenos sonhos, os meus pequenos segredos. Os meus pequenos segredos... Lembras-te, Pedro?

Uns amigos dos meus pais tinham um filho que vinha às vezes passar o dia connosco. Chamava-se Pedro e era um pouco mais velho do que eu. Um dia pegou-me por um braço, levou-me para um canto, e meteu-me na mão um embrulhinho, dizendo-me em voz baixa, quase ao ouvido:

— Não o percas, não o deites fora! Olhei para ele com espanto e afastei-me para ver o que tinha dentro o papelinho. Era um pequeno coração de barro que tinha um P gravado dum lado e um F do outro. Não me foram precisos muitos segundos para perceber que P queria dizer Pedro e F, Fernanda. Apertei com força o pequeno coração pensando no que ia fazer, até que resolvi enterrá-lo à sombra da amoreira.

"Não, Pedro, um coração não é coisa que se deite tora". Com um sacho abri uma pequena cova, forrei-a com musgo tenro, pus o coração sobre o musgo e tapei-o com duas rosi- nhas-de-toucar. Depois enchi a cova de terra que calquei e alisei com as mãos.

Fernanda de Castro e Antoninho Gabriel por Sarah Affonso, 1928.
MNAC/Flickr

Passaram anos e só hoje, Pedro, ao fechar a porta da casa cor-de-rosa pela última vez me surpreendi a pensar: "O que será feito do coraçãozinho de barro? Terá sido desenterrado pelo vento e pela chuva, calcado por uma bota ferro ferrada ou pelo ferro duma enxada ou continuará intacto sob os cadáveres de duas rosas-de-toucar?" (1)


(1) Ao fim da memória,  Memórias (1906-1939), Porto, Verbo, 1986

Artigos relacionados:
Ao fim da memória
Liberato Teles
Ofélia

Leitura adicional:
Fernanda de Castro, Maria da Lua, Lisboa, 1945
Paula Morão, "'Ao Fim da Memória / Memórias' de Fernanda de Castro", Colóquio/Letras, n.º 181, Set. 2012, p. 102-116
Voies du paysage: représentations du monde lusophone cf. Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Porto, Verbo, 1986

Informação adicional:
Fernanda de Castro (Fundação António Quadros))
Revista Colóquio/Letras n° 98 (julho 1987)



Fernanda de Castro (1900-1994) descreve-nos a casa pombalina da sua bisavó, Maria Maurícia Telles de Castro e Silva casada com Francisco Liberato e Silva [ref. no Arquivo Distrital de Setúbal], 2.° comandante da Guarda Municipal, pais de Francisco Liberato Telles de Castro e Silva (1842-1902), nascido em Cacilhas [v. artigo dedicado].

A autora nasce do casamento de Ana Isaura Codina Teles de Castro da Silva (1879-1914), filha de Liberato Telles, com João Filipe das Dores de Quadros (1874-1943), Capitão-Tenente da Marinha e Comendador da Ordem Militar de Avis.

Do casamento de Fernanda de Castro em 1922 com António Ferro, nasceram António Quadros, filósofo e ensaísta, e Fernando Manuel de Quadros Ferro. A escritora Rita Ferro é sua neta.

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