quarta-feira, 22 de julho de 2015

Os dias 23 e 24 de julho de 1833 (parte I)

Cartas portuguezas*

Cova da Piedade, 23 de outubro [de 1886]

As condições biologicas favorecem neste sitio, ao que parece, a longevidade humana, porque noto que, quase não ha familia que não tenha o seu macrobio. O cantoneiro da estrada, homem indigena do logar, conta cento e dous anos de idade.

Jardim da Cova da Piedade, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 13
Imagem: Fundação Portimagem

Uma senhora minha vizinha conheceu pessoalmente, no tempo da invasão franceza, o general Junot, e embarcou para o Rio de Janeiro com o sequito de D. João VI, na memorável viagem em que muitas senhoras da corte, não levando outra roupa branca alem da que tinham no corpo, chegaram ao Brazil cobertas da "vermine" que se desenvolvera na imundice de bordo.

É sobre um conjunto de informações dadas pelo mais antigos habitantes, que eu pude aqui reconstituir, na maioria dos seus detalhes, a historia da famosa batalha da Piedade, que no dia 23 de Julho de 1833, na vespera da entrada em Lisboa do exercito libertador, decidiu da causa da revolução liberal portugueza.

O duque da Terceira, saindo do Porto por mar com uma expedição de 1,500 homens, desembarcara na praia da Cacella no principio de junho. A divisão realista, que a esse tempo ocupava o Algarve sob o comando do visconde de Molellos compunha-se de tropas de segunda linha, milicianos de Lagos, e de Beja, voluntarios de Tavira, Faro, Moura e Beja, e cavalaria de Ordenanças, de grandes plumas nas barretinas, sabres curvos e fortes eguas de andadura.

Batalha do Cabo de S. Vicente em 1833, Morel-Fatio.
Imagem: Wikipédia

Molellos, achando esta força insufficientemente disciplinada e extremamente dispersa para um encontro immediato com os guerrilheiros portuenses, retirara na direção de S. Bartholomeu de Messines, onde reuniu as tropas do seu commando, deliberando em seguida desoccupar o Algarve, vindo cobrir a estrada de Lisboa no Alemtejo, emquanto esperava na villa de Messejana que o duque de Cadaval lhe mandasse, de Lisboa, algum reforço, principalmente de officiaes, de estado-maior, para o fim de dar batalha.

Um acontecimento imprevisto veiu alterar o projecto do general realista. Uma guerrilha liberal, formada em Hespanha, cahe de repente sobre Beja e encurrala n'um convento toda a guarnição da praça. Molellos, obrigado a socorrer os voluntarios de Beja, dirige-se para esse ponto, abandonando Messejana e deixando a descoberto o caminho de Lisboa.

Emquanto a divisão de Molellos saqueava Beja, e, accrescentada com os contingentes recolhidos da provincia e chegados da capital, atingia uma força de 8,000 a 9,000 homens, com 400 cavallos e 10 boccas de fogo, o duque da Terceira, de accôrdo com Napéer [Napier], cuja esquadra sahira igualmente do Algarve para ir bloquear o porto do Lisboa, corria a marchas forçadas sobre Setubal, por uma estrada limpa, deixando atras de si o exercito realista conglobado em Beja e tendo na sua fronte o fosso do Tejo, poderosamente fortificado nas duas margens pelas tropas de Cadaval.

É difficil dizer qual fosse positivamente o plano do duque, no iniciar este arrojado movimento. Moço, valeste, audacioso, instigado pelo coronel José Jorge Loureiro e pelo capitão de engenheiros Luiz da Silva Martinho de Albuquerque, acompanhado de soldados perfeitamente disciplinados e aguerridos de uma bravura e de uma intrepidez a toda a prova, é natural que elle tivesse principalmente em vista bater-se, deixando o resto ao acaso.

Feliz no primeiro arranco, acclamado por sucessivas ovações populares em Villa Nova de Mil Pontes. em Cines, em Santiago do Cacem, em Alcacer do Sal, sabendo-se com dous dias de avanço sobre qualquer movimento que Molellos tentasse para o perseguir, o duque da Terceira, depois de tomar no dia 22 a praça de Setubal, cuja guarnição submeteu ou afugentou aos primeiros tiros, quasi que nem teve de commandar o movimento que se seguiu.

Os soldados impellidos pela abalada da victoria foram os primeiros a levantar o grito prophetico da campanha:
— Amanhã a Cacilhas, depois de amanhã a Lisboa!


Sobresaltado com as noticias desta marcha invasora e triumphante, o duque de Cadaval mandou reforçar com tres batalhões de infantaria e com tres esquadrões a guarnição de Cacilhas, que d'este modo atingiu a força do 3,000 homens sob o commando do brigadeiro Telles Jordão, o famigerado governador da fortaleza de S. Julião da Barra. 

Torre de S Julião da Barra, João Christino, c. 1855.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Era entre esta força e a do duque da Terceira, composta de pouco mais de 1,500 homens, infantaria, caçadores, soldados do regimento academico e 16 homens de cavallaria montados em pequenos cavallos de lavoura, que tinha de se decidir a sorte da guerra civil.

Telles Jordão, cuja atrocidade com os prisioneiros da Torre se tornou lendaria, era tão bravo quanto era bronco. Ainda ha poucos dias eu vi em Azeitão, na colecção dos manuscriptos do Sr. Joaquim Rasteiro, dois requerimentos de um preso das masmorras de S. Julião, cujos despachos escriptos e assignados por Telles Jordão sao perfeitamente caracteristicos.

O supplicante em ambos a documentos é o padre Domingos Gonçalves Velloso, o qual n'um d'eles pede que lhe seja entregue una pequena caixa com pastilhas de altéa, que mandara vir de Lisboa para se tratar de uma bronchite, o que lhe não fora entregue. Telles Jordão pôz a esta petição o seguinte despacho, a que conservo fielmente a fôrma orthograhica:
"Com receita de facultativo tem Lugar aintrada deremedios. — Telles Jordão gov."


No segundo requerimento padre Domingos, tendo mudado de enxovia, requer que da masmorra de que sahiu lhe seja enviada a barra em que dormia, feita de dous bancos e tres taboas, sendo todas as peças marcadas com o nome de Velloso, e alega em justificação de seu pedido o ter comprado a barra por lhe não permittir o estado deterioradissimo da tua saude o dormir na humidade do chão. Eis o textual despacho:
"Indefrido. — Telles Jordão gov."

Em estratégia o brigadeiro não era consideravelmente mais forte do que em orthographia. Na escolha dos seus cabos de guerra, D. Miguel, n'este como em quasi todos os casos, confundia a arte de mover soldados em campanha com a arte de jogar o páu n'uma feira e era sobretudo a força physica individual que o captivava e o decidia.

Elle mesmo tinha pelo militarismo, na accepção scientifica e disciplinar d'esta palavra, um desdem de valentão paisano e nunca poz em si galões de uniforme. O seu trage durante a guerra era invariavelmente a sobrecasaca lisa do pano azul, as meias de lã acima do joelho, as botas de cava com tacões de prateleira e o chapéu de dois bicos atravessado na cabeça, á "Napoleão". A sua predilecta insignia de poder era o cacete argolado, suspenso do pulso pelo fiador de couro, ou entalado entre o selim e a perna.

N'um quarto, que o principe habitava nas casas do Infantado, em Queluz, que, ha poucos annos ainda, foi pela primeira vez aberto por El-Rei D. Luiz, encontrou-se, entre guizados de machos e petrechos de caça e de gineta, um volumoso mólho d'esses varapáus, — sceptros de marmeleiro, de sobro ou de carvalho cerquinho, eloquentes symbolos do poder soberano, tal como n'esse tempo geralmente o comprehendia a phliosophia politica, genuinamente portugueza, da aristocracia nacional.

Telles Jordão collocou os seus postos avançados nas cumeadas da Amora e nas collinas sobranceiras a Corroios, postou a cavalaria por traz dos armazens do Caramujo, e foi esperar a approximação do inimigo na quinta da Ordem do S. Domingos, ainda hoje chamada a Quinta dos Frades e situada em frente da casa em que eu habito.

Pinheiro dos Frades, Cova da Piedade, ed. desc.
Imagem: A árvore do centenário

Eram cerca de duas horas da tarde quando Telles Jordão quasi consecutivamente ouviu os primeiros tiros na estrada da Amora e viu retirar em debandada pelas barroca de S. Simão as avançadas da infantaria, atraz das quaes descia em columna aceleradamente a divisão do duque da Terceira. Jordão deliberou destroçal-a com uma carga de cavallaria, que os regimentos liberais de bayoneta ralada repelliram com sucessivas descargas.

Estrada das Barrocas, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900
Imagem: Delcampe

Deu-se então no recinto plano da Piedade, hoje ocupado pelo jardim publico e pelas novas edificações do logar, um encontro rapido, sangrento, extremamente rebolido e confuso. Muitos soldados, desarçonados pela fuzilaria, cahiram mortos ou feridos na primeira investida.

Vista Geral, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

Emquanto a cavallaria se retirava para se formar com esquadrões novos de reserva ao abrigo dos edificios do Caramujo, a infantaria realista debandava tumultuariamente, varejada pelas balas, de envolta com os cavallos espantados e soltos pelas estradas do Alfeite e de Pragal.

Entrada do Alfeite, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

A segunda carga da cavallaria foi recebida á ponta da bayoneta pelo fogo, mais nutrido agora que da primeira vez, da infantaria do duque, formada por meio de uma rapida e precisa evolução em columnas contiguas de batalhões. Na retirada d'esta segunda e ultima carga a cavallaria realista debandou como debandara a infantaria.

Na fuga desordenada e panica os soldados largavam as armas e ou se acoitavam nas vinhas e por tras dos vallados do valle de Mourellos e da encosta do Pragal, ou tomavam as eminencias d'Almada para descer ao rio e embarcar para Lisboa.

Almada, Pragal, Vista Parcial, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

Muitos se rendiam com armas e bagagens, mas o duque da Terceira, sem forças para guardar os prisioneiros mais numerosos que os soldados do seu commando, formou estes em columna e, passando por cima dos mortos que juncavam o campo, avançou impacientemente para Cacilhas pela estrada da Mutela, com as espingardas engatilhadas e os sabres em punho.

Plan de Lisbonne son port, ses rades et ses environs avec une petite carte routière du Portugal (detalhe), 1833.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Em Cacilhas a confusão era enorme. Soldados, officiaes, frades, paisanos, procuravam embarcar á pressa, enchendo o largo em que se tinham amontoado bagagens, armas, munições. Os pelotões do duque da Terceira, procurando assenhorar-se do cáes, abriam caminho á bayoneta. Foi n'este conflicto que um soldado de caçadores 2, voltando-se para o coronel Romão José Soares, lhe disse:
— Meu commandante, vê V.S. aquelle homem, que está á esquina, voltado para o cáes! É o Telles Jordão, que o conheço eu!


O coronel Soares correu então de espada desembainhada para o homem que estava á esquina, voltado para o cáes, o deitou-o por terra com uma cutilada. Era, com effeito o Telles Jordão, que, achando-do-se já com seu filho a bordo da canoa que devia leval-o para Lisboa, desembarcava para ir buscar o cavallo.

Depois do primeiro e unico golpe, Soares, vendo o brigadeiro rolar n'uma onda de sangue, voltou costas, com a espada ao ar, dizendo a um dos caçadores:
— Acaba-me esse homem.


O soldado, fazendo um passo á retaguarda e pondo á cara a espingarda, matou o governador da Torro de S. Julião com um tiro á queima roupa. Foi no dia seguinte que o povo, descobrindo o cadaver, o mutilou e arrastou profanado pelas ruas. 

Era ao sol posto quando as falúas trazidas a remo de Lisboa, porque não havia ponta de vento, se aproximaram conduzindo o regimento de reforço mandado pelo duque de Cadaval. Uma descarga cerrada de fuzilaria fez-lhes saber que vinham tarde para socorrer a divisão desbaratada.

E as falúas retrocederam levando para a capital a noticia de que eram do vitorioso exercito do duque da Terceira as escorvas cujo clarão de lá teriam visto espelhar-se nas aguas mortas do Tejo a toda a extensão do caes de Cacilhas.

Cacilhas, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 20, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Segundo a versão oral que serve de base á minha narrativa, os regimentos auxiliares de Telles Jordão chegaram tarde pela razão de que, na mesma tarde do dia 23, se procedia a uma execução no patíbulo do caes do Sodré, e o duque de Cadaval, receiando que este acontecimento provocasse da parte do povo de Listoa uma manifestação hostil ao governo, não quis desfalcar a guarnição emquanto se não achasse concluida a lugubre cerimonia.

Na ocasião de subir á forca. o condemnado ouviu os tiros disparados na Outra banda, presentiu que esse era o começo da victoria para a causa liberal, e considerando a impassivel indifferença com que o povo o deixava morrer precisamente no momento em que a liberdade chegava.

— Já não ha portugueses em Lisboa! exclamou tristemente. E foi essa a derradeira palavra quo elle proferiu. 

Um minuto depois o seu corpo, suspenso verticalmente do baraço, oscillava no vacuo, voltado para a outra banda do rio, d'onde cada vez mais proximos estalavam os tiros, e na sombra crescente do cepusculo começavam a tremoluzir como fugidios pirilampos as chammas das escorvas, emquanto do outro lado da collina, na pequena igreja da Cova da Piedade, se accumulavam os cadaveres dos que haviam morrido na batalha d'esse dia em ultimo holocausto ao velho e expirante despotismo do throno e do altar.

Museu Militar, Sala das Campanhas da Liberdade.
Imagem: Delcampe


* Reservando-se o direito de reedição, o auctor d'este artigo roga aos seus confrades da imprensa portuguesa o obséquio de o não transcreverem.

Ramalho Ortigão (1)


(1) Gazeta de Noticias, 8 de dezembro de 1886

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O Caramujo, romance histórico
Guerras Liberais

Leitura relacionada:
Zan, João Carlos, Ramalho Ortigão e o Brasil, São Paulo, Universidade de S. Paulo, 2009

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